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Da cracolância à nação do Prozac. Por Tadeu Assis


Padecemos de doença tão bizarra quanto virulenta: Esquizofrenia catarática. Esquizo deriva do grego e significa cindido, dividido. Esquizofrenia é a loucura da divisão, da dissociação, da cisão. Catarata é uma patologia da lente do olho que se chama cristalino. É quando o cristalino fica opaco e a visão fica senil.


Ocorreu-me esta categoria diagnóstica enquanto eu caminhava despreocupado por Cabo Frio, algum tempo atrás. Comecei a ouvir vozes que vinham de dentro de um latão de lixo enferrujado. Eis que aparece das entranhas de ferro uma cabeça despenteada e falante. Um garoto da rua que de sua escotilha azul fazia misturar a fumaça do ambiente com a do crack que fumava.


Enquanto a miséria se enclausura cada vez mais nas latas reviradas de lixo, outra realidade igualmente metálica se define indissociável daquela. Consumidores de antidepressivos, ansiolíticos e de shopping-centers, que almoçam espasmodicamente ao lado de seus celulares, que compram segurança privada, portões eletrônicos e que temem o seqüestro, que vivem em bolhas de primeiro-mundo mais que artificialmente felizes esquizofrenicamente. Jogaram Prozac na caixa d água de Cabo Frio. E os consumidores dessa água tratada não se incomodam com a aparição súbita de um garoto de oito anos, descalço, atrás do cristalino embaçado e da janela fechada pedindo dinheiro ou vendendo Mentex.


Será que esse perverso mecanismo que transforma o resíduo do sistema em combustível de si mesmo, ao fazer da violência um bom negócio, é mera circunstância extirpável dessa insana sociedade e se ajeitará conforme as leis de mercado e os números dos economistas? Não merecemos esses dois artifícios químicos que atenuam respectivamente a fome e a cegueira, que ratificam nossa patologia e que abafam nossa indignação. E tudo continua parecendo natural. Absolutamente natural. Nós, cabo-frienses devemos fazer um grande mutirão da catarata. Curar nosso olhar blindado, misto de medo e repulsa. Os motoristas e pedestres passam apressados preferindo não enxergar.


Às segundas-feiras à noite, eu passo pelo centro de Cabo Frio, o comércio está fechado e o grupo da cracolândia faz da marquise dos prédios e do coreto da praça o seu abrigo contra o sereno da madrugada. Às 7h da manhã seguinte (terça-feira, quando passo para o trabalho) há apenas vestígios do movimento: um tênis rasgado, pedaço de cachimbo e papel alumínio, muitas bitucas de cigarro... O grupo estava encostado no muro 50 metros adiante. Foram estimulados a sair dali porque naquele manhã haveria a inauguração, com pompas e circunstâncias, de uma loja. Às 8h15, encostou um caminhão do serviço municipal de limpeza urbana e com aparatos eficientes iniciou a operação. Dez minutos depois a calçada estava limpa e, como um quadro de natureza morta, crianças e jovens acinzentados migraram mais 50 metros e permaneciam encostados no muro, cobertos por suas mantas encardidas e agora longe da visão dos convidados.


Trata-se aqui de um fenômeno que inclui claro, mas que transcende a esfera do poder local. Essas crianças são privadas de dignidade, de saúde, de educação, de cultura, de moradia, de afeto e são a expressão mais dramática da nossa doença. Quando elas rompem ou interrompem seus vínculos familiares e comunitários, na periferia da cidade, e se dirigem ao centro, são como o incansável quatrocentão Dom Quixote que afirma ao longo dos séculos a potência dos seres humanos de tomarem o seu próprio caminho. Quixotinhos urbanos buscam liberdade para lutar contra moinhos de vento e se exilam no centro de sua própria cidade. Temos todos uma grande dívida com essa pequena gente. Honraremos essa dívida ou continuaremos no calote?


Mas todo o nosso lixo é reciclável e produz sintomas: Balas perdidas, úlcera ou melancolia. A nossa doença pública é também privada e em breve só o que nos restará é optarmos: Crack ou Prozac.



Tadeu Assis, Representante da Equipe Arca, Técnico em Dependência Química, além de colaborador cronista no Blog do Programa Cartão Vermelho

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