Política habitacional: Crime dos políticos, castigo do povo.
Este é o primeiro artigo de uma série especial sobre habitação. Ao final de 5 artigos, teremos mais subsídios para saber o que exigir do poder público para que, daqui a alguns anos, quando a natureza nos castigar com chuvas fortes, possamos lamentar muitos prejuízos e chorar poucas mortes, e não o contrário, como tem sido a regra até agora.
Em meio ao drama humano, é natural que não queiramos fazer contas. Como todo mundo, minha preocupação inicial foi ajudar através de donativos. Entretanto, agora que o principal problema com os donativos é a ser a logística de distribuição do que foi arrecadado e que a reconstrução bate à porta, chegou a hora de nos preocuparmos com a próxima etapa: impedir que nossa gente morra de forma estúpida. Para isso, me pus a fazer uma conta que, eu sabia antecipadamente, me deixaria arrasado.
Falo da relação entre prejuízos e mortes envolvendo as chuvas recordes que Brasil (especificamente, aqui na Região Serrana) e Austrália sofreram neste verão de nosso hemisfério. Após alguns cálculos, chegamos a uma conclusão perturbadora, ainda que tendo como base números estimados e incompletos (de 30 mortos e 10 bilhões de reais de prejuízo na Austrália e 600 mortos e 100 milhões de reais de prejuízo na Região Serrana). Arredondando os números, na Austrália, para cada vítima fatal, há prejuízos da ordem de 300 milhões de reais. Aqui, para cada vítima fatal, há prejuízos da ordem de 150 mil reais. Ou seja: na Austrália, a fúria recorde das águas custa muito dinheiro e poucas vidas; no Brasil, pouco dinheiro e muitas vidas. Há algo muito errado quando, na frieza financeira, um australiano morto custa o mesmo que 2 mil brasileiros mortos. Perturbador, como eu disse, mas triste e vergonhosamente verdadeiro.
Como não há razão para a vida de um australiano valer mais que a vida de um brasileiro – afinal, vidas humanas são iguais perante Deus – é de se perguntar por que, então, as chuvas causam muito prejuízo e matam pouco lá enquanto causam pouco prejuízo e matam muito aqui? Eis a resposta: por causa do descaso criminoso das autoridades. O populismo permissivo com ocupações irregulares fez com que a Região Serrana se transformasse em uma gigantesca favela na qual ainda há alguns bairros organizados, e não o contrário. Tal cultura de favelização, responsabilidade direta de prefeitos, secretários, vereadores, promotores e juízes, teve seu ápice nas décadas de 1980 e 1990 e é perfeitamente descrita na lógica brizolista expressa por Darcy Ribeiro: “favela não é problema – é solução” guiava as ações. Assim, favelização virou uma prática que pode e deve ser estimulada, ainda que ao arrepio da lei e ainda que sujeitando nossos irmãos ao risco de morte sempre que chove mais forte. Levando-se em conta que aqui, por questões geológicas, sempre chove mais forte, minha sugestão é simples: em áreas de ocupação irregular, as mortes causadas por chuvas serão consideradas crimes de responsabilidade das autoridades. Sim, crimes. Se a autoridade constituída não fez seu papel, preferindo o populismo eleitoreiro ao seu dever de zelar pelo bem-estar do povo, ainda que isso lhe cause desgastes pontuais, é justo que responda por tal atitude deliberada.
Sei que muitos considerarão minha proposta exagerada. Todavia, ao estudar melhor o assunto, fica claro que, em termos de lei, o que proponho não configura ineditismo. Com efeito, já é assim, por exemplo, para a combinação álcool-direção. A pessoa que dirige bêbada não necessariamente vai causar um acidente cada vez que o fizer – mas esta pessoa voluntariamente expõe a si e a outros a um risco tão elevado que a lei entende ser necessário impedi-la de dirigir. Ninguém é detido em uma das blitze Operação Lei Seca porque já causou um acidente, mas sim porque pode causar um acidente. Depois que inocentes morrem por conta do risco que o motorista embriagado lhes impôs, não há nada que possa ser feito para salvar aquelas vidas. A lei, então, antecipa-se ao acidente: ao deter o motorista sob efeito de álcool, a lei mira no risco de este vir a ocorrer e reduz sua probabilidade.
Os leitores mais atentos notaram que destaquei três vezes a palavra “risco” no parágrafo anterior. A razão é simples: defendo que assumir riscos conscientemente é crime. Um prefeito que deixa pessoas à mercê da sorte em áreas de risco, nas quais o perigo está presente no próprio nome, comete um crime. Se esse prefeito fosse um motorista, ele dirigiria bêbado e torcendo para que não houvesse nenhum acidente. Porém, ainda que não ocorra nada em muitas vezes, o inexorável não cessou de existir: é mera questão de tempo – mais dia, menos dia, o motorista embriagado causará acidentes e inocentes morrerão. Não é possível que os responsáveis chorem os inocentes mortos enquanto se eximem de suas culpas transformando a força da natureza em bode expiatório. Retorno à prova irrefutável de que a atuação do poder público decide entre a vida e a morte: neste exato momento, vemos outro país sofrendo com enchentes que quebram todos os recordes – a Austrália. Lá, os prejuízos são medidos em unidades de bilhões e as mortes em dezenas, enquanto aqui os prejuízos são medidos em dezenas de milhões e as mortes em centenas. É a atuação do poder público que determina se chuvas implacáveis causarão mais prejuízos ou mais mortes: isso depende diretamente do risco que as pessoas correm em suas habitações. Prejuízos são recuperáveis com trabalho e tempo. Mortes são definitivas.
No segundo artigo, relembraremos o processo de favelização que as cidades do Rio de Janeiro sofreram nas décadas de 1980 e 1990.
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