Por Pedro Nascimento Araujo
O que falta para que Bashar al-Assad deixe o poder na Síria? Herdeiro da ditadura criada por seu pai (o exemplo óbvio é a Coreia do Norte, que já está na terceira geração ditatorial - mas o exemplo mais emblemático para nós, brasileiros, é a ditadura fraternal dos irmãos Castro, que há mais de 50 subjuga o povo de Cuba), Bashar, se fosse esperto como imagina ser, já teria buscado refúgio em alguma ditadura amiga (o xá Reza Pahlavi, por exemplo, foi se esconder sob as asas de Anwar al-Sadat, ditador do Egito) ou, ao menos, teria negociado uma transição com proteções, como fez Pinochet. Mas não: al-Assad parece querer repetir al-Gaddafi e massacrar seu povo pelo máximo de tempo possível. Aparentemente, os mais de 5 000 mortos (segundo a ONU) não são o suficiente para fazê-lo enxergar o óbvio: sua queda é inevitável. A batalha, que deve isolar a capital Damasco nos próximos dias, já chega à regão do aeroporto da cidade e aproxima-se cada vez mais das zonas residenciais e governamentais - e, consequentemente, dos palácios de al-Assad, onde o derramamento de sangue pode fazer outros milhares de mortos. Batalha inútil, pois, mesmo que consiga esmagar o levante, matando a todos, al-Assad invariavelmente está acabado politicamente: se seu grupo conseguir manter-se no poder, um golpe interno, com a deposição do ditador, será a melhor saída para dar-lhe uma aura de legitimidade - entregando a cabeça de al-Assad em uma bandeja de prata, o grupo conseguiria apoio (ou ao menos neutralidade) para permanecer no poder. Por isso, a pergunta prossegue: se al-Assad já está acabado, por que ele não vai embora e deixa seu povo em paz, ao invés de prolongar o sofrimento de todos?
Fácil perguntar, difícil responder. Comecemos pelo óbvio: Bashar al-Assad é um ditador. Como todo ditador, não é legítimo. Não foi o povo quem lhe deu um mandato para comandar o país. Ele comanda o país, literalmente, pela força. Corolário direto de comandar pela força: al-Assad comanda a Síria pelo medo. Ele sabe que somente manter-se-á no comando enquanto o povo tiver medo dele. Essa é razão subjacente da brutalidade dele e de todo e qualquer ditador: quem comanda um povo pela força não pode deixar que esse povo perca o medo do comandante porque, quando isso ocorre, o povo deixa de obedecer ao usurpador de sua vontade. O ditador, líder ilegítmo, não pode contar com o povo: ele é seu inimigo, pois foi dele que extraiu seu poder - e sabe que somente através do medo consegue impedir que ele o tome de volta.
O mais cruel é que o mesmo raciocínio que aplica ao povo, o ditador aplica àqueles à sua volta - o seu grupo político. Quem apoia e assessora ditadores sabe muito bem que o poder que o líder ilegítimo tem decorre, antes, de sua capacidade de atemorizar seus próprios cúmplices. Em outras palavras: se um ditador precisa impor medo ao seu povo para manter seu grupo no poder, ele precisa impor terror absoluto ao seu grupo para não ser suplantado, no comando desse mesmo grupo, por outro que possa ser mais capaz de manter o povo com medo que ele e, portanto, mais capaz de garantir que seu grupo estará sempre no comando - e, nesse caso, o instinto de sobrevivência do grupo vencerá: se o grupo perceber outro mais capaz (em linguagem de ditador: mais cruel), o golpe interno será inevitável. Por isso, al-Assad não pode, em hipótese alguma, aparentar fraqueza. E eis aqui a crueldade à qual fiz menção no início deste parágrafo: para não ser suplantado, al-Assad precisa provar, para seu grupo, que é o que menos cederá ao povo nesse momento; ou seja, que está disposto a matar tantos quanto for necessário para manter seu grupo no poder, em uma disputa interna macabra que é contada através dos corpos empilhados nas ruas da Síria. Esperar razoabilidade de al-Assad é como ter esperado razoabilidade de Saddam ou de al-Gaddafi: somente quando não houver mais jeito de comandar seu grupo, quando tudo estiver irremediavelmente perdido, escondido em um buraco de rato ou em um cano de esgoto, que ele mostrará o canalha covarde que é e pedirá para negociar e salvar sua vida - porque as vidas dos outros, para os ditadores, é simplesmente um recurso que é gasto para garantir seu poder.
A conclusão à qual chego é bastante simples e se apresenta como pergunta: sendo muito improvável que al-Assad deixe de matar seu povo, o que nós, nações democráticas do mundo, faremos? Se China e Rússia (uma, ditadura; a outra, democracia com viés ditatorial cada vez mais explícito) colocam seus interesses geopolíticos e comerciais acima das vidas dos sírios e anunciam vetos no Conselho de Segurança das Nações Unidas para qualquer ação que impeça a carnificina de al-Assad, os demais países devem simplesmente se encolher, acovardados? O medo do povo síro é justificado diante de um facínora que tem muito mais armas. O medo dos governos democratas é justificado em que bases, já que não há como imaginar uma resistência séria de al-Assad contra o poderio militar das democracias? O que falta para que mandemos, de forma clara e inquestionável, a seguinte mensagem aos ditadores do mundo: não matem os povos que vocês oprimem, pois, se o fizerem, nós iremos até seu palácio tirá-lo do poder. O que falta? Estamos mesmo esperando contar com a boa vontade da ditadura chinesa e da protoditadura russa? Sério?
É bom lembrar que, se tivéssemos utilizado essa prerrogativa de somente atuar após a autorização do Conselho de Segurança do órgão de concertação internacional (hodiernamente, Organização das Nações Unidas; antes, Liga das Nações), teríamos registradas apenas duas guerras para defender povos de agressões, interna ou externa: a Guerra da Coreia (1950, aprovada pela soma de uma malandragem americana e de um cochilo soviético) e a Guerra do Golfo (1991, uma guerra para evitar que o Iraque de Saddam continuasse se expandindo a ponto de controlar mais da metade do petróleo exportado no mundo). Todas as outras ações humanitárias foram conduzidas sem que o Conselho de Segurança do órgão mundial tivesse deliberado sobre o assunto: desde a luta contra os avanços totalitários na Segunda Guerra Mundial até a crise humanitária seguida de limpeza étnica contra mulçumanos nos Bálcãs perpetrada por forças sérvias na década de 1990. Nesses casos e nos demais - à exceção daquelas duas guerras que enumerei - quem agiu para impedir a dominação e o massacre de povos não foi o Conselho de Segurança, mas países, individualmente ou através de alianças (os Aliados na Segunda Guerra Mundial e a OTAN na década de 1990).
É necessário, portanto, que as democracias ajam, individual ou coletivamente. Se a Liga Árabe, onde as ditaduras ainda têm um peso grande, embora visivelmente menor que antes da Primavera Árabe, não é ainda um ator coeso o suficiente - basta lembrar a tibieza com que age contra al-Assad - para tanto, que a OTAN, provocada por vizinhos recém-democratizados, o faça. Porque, enquanto os governos preocupam-se demais em não ferir suscetabilidades de demais governos, os sírios morrem à razão de dezenas ao dia e vivem sob terror. O tempo julgará as ações e o futuro dirá que, retirados todos os ruídos, as democracias deveriam ter agido antes - porque as democracias tardarão muito, mas agirão. Ocorre que tempo é algo que o povo sírio não tem para gastar. Ao adiar a queda inevitável de al-Assad, as democracias ganham apenas uma coisa: a acusação favorecer o massacre que o ditador ora executa.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
Fácil perguntar, difícil responder. Comecemos pelo óbvio: Bashar al-Assad é um ditador. Como todo ditador, não é legítimo. Não foi o povo quem lhe deu um mandato para comandar o país. Ele comanda o país, literalmente, pela força. Corolário direto de comandar pela força: al-Assad comanda a Síria pelo medo. Ele sabe que somente manter-se-á no comando enquanto o povo tiver medo dele. Essa é razão subjacente da brutalidade dele e de todo e qualquer ditador: quem comanda um povo pela força não pode deixar que esse povo perca o medo do comandante porque, quando isso ocorre, o povo deixa de obedecer ao usurpador de sua vontade. O ditador, líder ilegítmo, não pode contar com o povo: ele é seu inimigo, pois foi dele que extraiu seu poder - e sabe que somente através do medo consegue impedir que ele o tome de volta.
O mais cruel é que o mesmo raciocínio que aplica ao povo, o ditador aplica àqueles à sua volta - o seu grupo político. Quem apoia e assessora ditadores sabe muito bem que o poder que o líder ilegítimo tem decorre, antes, de sua capacidade de atemorizar seus próprios cúmplices. Em outras palavras: se um ditador precisa impor medo ao seu povo para manter seu grupo no poder, ele precisa impor terror absoluto ao seu grupo para não ser suplantado, no comando desse mesmo grupo, por outro que possa ser mais capaz de manter o povo com medo que ele e, portanto, mais capaz de garantir que seu grupo estará sempre no comando - e, nesse caso, o instinto de sobrevivência do grupo vencerá: se o grupo perceber outro mais capaz (em linguagem de ditador: mais cruel), o golpe interno será inevitável. Por isso, al-Assad não pode, em hipótese alguma, aparentar fraqueza. E eis aqui a crueldade à qual fiz menção no início deste parágrafo: para não ser suplantado, al-Assad precisa provar, para seu grupo, que é o que menos cederá ao povo nesse momento; ou seja, que está disposto a matar tantos quanto for necessário para manter seu grupo no poder, em uma disputa interna macabra que é contada através dos corpos empilhados nas ruas da Síria. Esperar razoabilidade de al-Assad é como ter esperado razoabilidade de Saddam ou de al-Gaddafi: somente quando não houver mais jeito de comandar seu grupo, quando tudo estiver irremediavelmente perdido, escondido em um buraco de rato ou em um cano de esgoto, que ele mostrará o canalha covarde que é e pedirá para negociar e salvar sua vida - porque as vidas dos outros, para os ditadores, é simplesmente um recurso que é gasto para garantir seu poder.
A conclusão à qual chego é bastante simples e se apresenta como pergunta: sendo muito improvável que al-Assad deixe de matar seu povo, o que nós, nações democráticas do mundo, faremos? Se China e Rússia (uma, ditadura; a outra, democracia com viés ditatorial cada vez mais explícito) colocam seus interesses geopolíticos e comerciais acima das vidas dos sírios e anunciam vetos no Conselho de Segurança das Nações Unidas para qualquer ação que impeça a carnificina de al-Assad, os demais países devem simplesmente se encolher, acovardados? O medo do povo síro é justificado diante de um facínora que tem muito mais armas. O medo dos governos democratas é justificado em que bases, já que não há como imaginar uma resistência séria de al-Assad contra o poderio militar das democracias? O que falta para que mandemos, de forma clara e inquestionável, a seguinte mensagem aos ditadores do mundo: não matem os povos que vocês oprimem, pois, se o fizerem, nós iremos até seu palácio tirá-lo do poder. O que falta? Estamos mesmo esperando contar com a boa vontade da ditadura chinesa e da protoditadura russa? Sério?
É bom lembrar que, se tivéssemos utilizado essa prerrogativa de somente atuar após a autorização do Conselho de Segurança do órgão de concertação internacional (hodiernamente, Organização das Nações Unidas; antes, Liga das Nações), teríamos registradas apenas duas guerras para defender povos de agressões, interna ou externa: a Guerra da Coreia (1950, aprovada pela soma de uma malandragem americana e de um cochilo soviético) e a Guerra do Golfo (1991, uma guerra para evitar que o Iraque de Saddam continuasse se expandindo a ponto de controlar mais da metade do petróleo exportado no mundo). Todas as outras ações humanitárias foram conduzidas sem que o Conselho de Segurança do órgão mundial tivesse deliberado sobre o assunto: desde a luta contra os avanços totalitários na Segunda Guerra Mundial até a crise humanitária seguida de limpeza étnica contra mulçumanos nos Bálcãs perpetrada por forças sérvias na década de 1990. Nesses casos e nos demais - à exceção daquelas duas guerras que enumerei - quem agiu para impedir a dominação e o massacre de povos não foi o Conselho de Segurança, mas países, individualmente ou através de alianças (os Aliados na Segunda Guerra Mundial e a OTAN na década de 1990).
É necessário, portanto, que as democracias ajam, individual ou coletivamente. Se a Liga Árabe, onde as ditaduras ainda têm um peso grande, embora visivelmente menor que antes da Primavera Árabe, não é ainda um ator coeso o suficiente - basta lembrar a tibieza com que age contra al-Assad - para tanto, que a OTAN, provocada por vizinhos recém-democratizados, o faça. Porque, enquanto os governos preocupam-se demais em não ferir suscetabilidades de demais governos, os sírios morrem à razão de dezenas ao dia e vivem sob terror. O tempo julgará as ações e o futuro dirá que, retirados todos os ruídos, as democracias deveriam ter agido antes - porque as democracias tardarão muito, mas agirão. Ocorre que tempo é algo que o povo sírio não tem para gastar. Ao adiar a queda inevitável de al-Assad, as democracias ganham apenas uma coisa: a acusação favorecer o massacre que o ditador ora executa.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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