Por Pedro Nascimento Araujo
A Índia é um dos 2 maiores parceiros internacionais do
Brasil. Na diplomacia petista, houve uma opção pela chamada cooperação Sul-Sul.
Nesse contexto, dois países, Índia e África do Sul, compõem, junto com o
Brasil, o IBAS, fórum nomeado pelas iniciais de seus três membros e que o
Itamaraty define como a “síntese da política externa brasileira” hodierna. Os
três parceiros levam a sério a iniciativa: as reuniões de cúpula, até hoje,
contaram com as presenças de todos os chefes de Estado. Há iniciativas
conjuntas positivas, que vão de um fundo para financiar projetos de segurança
alimentar em países pobres até a criação conjunta de satélites.
Se, por um lado, após décadas de apartheid, a África do Sul
conseguiu fazer sua transição para democracia racial da forma exemplar, com a
Comissão da Reconciliação e da Verdade, por outro a Índia não resolveu seus
problemas nesse setor. Nessa semana, foi linchada Lashki Devi. Era indiana e
tinha 58. E era uma dálit. No odioso, intricado e ancestral sistema indiano de
castas, esse é o nível mais baixo. Até hoje, o preconceito de classe (que
também é preconceito de raça, uma vez que, não coincidentemente, quanto mais
elevada é a casta, mais alva é a pele) atinge os estimados 170 milhões de
dálits indianos. Embora a constituição atual do país proíba o sistema de
castas, na prática ele continua funcionando.
Dos milenares livros em sânscrito que descrevem as castas
até a realidade urbana de 2012, seria razoável encontrar poucas similaridades.
Afinal, os costumes evoluíram. Não há mais escravos, mulheres votam, pedófilos
são presos e assassinatos são crimes hediondos. Então, como explicar a morte de
Devi? Primeiramente, por ela ser dálit. Em que pesem as políticas de ação
afirmativa desde os anos 1950, os dálits – também conhecidos pela degradante denominação
“intocáveis”, que faz menção ao fato de ao membros desta casta (a mais baixa e
mais escura) ser vedado, por exemplo, pisar na sombra de um membro da casta
brâmane (a mais elevada e mais branca) sob pena de ser fisicamente castigado –
continuam sofrendo.
Há poucos empregos para dálits. Em geral, os considerados
mais impuros pelo hinduísmo, como recolher excrementos aonde não havia
encanamento e manusear cadáveres. Em que pese um dálit já ter sido eleito
presidente do país em 1997 (cargo mais simbólico que parece, pois o país é
parlamentarista), na Índia rural os velhos preconceitos subsistem. Deva foi
morta a partir de uma acusação de bruxaria. Essas acusações, evidentemente, são
direcionadas ao dálits.
Devi foi acusada de bruxaria por um homem, Kapil Bhuiyan,
que a levou para o centro do vilarejo, fez a acusação e iniciou o linchamento
dela, com apoio de outros populares, até que ela desmaiasse. Inconsciente, Devi
foi arrastada para um bosque aonde foi estrangulada até a morte por Bhuyian. A
região de Chotki Kwela, aonde o crime ocorreu, é uma das mais pobres da Índia.
Não foi o primeiro e infelizmente também não será o último. Na mesma região, há
pouco mais de um mês, outra mulher, também dálit, foi acusada de bruxaria.
Apanhou e foi forçada a comer excrementos humanos. O estranho é tais casos
terem entrado na grande mídia indiana. Bhuyian está preso. Durante muito tempo,
havia uma espécie de autocensura a respeito de problemas raciais e de castas na
Índia. Que essas notícias que chocam pela estupidez forcem as autoridades a
tomar as medidas necessárias para proteger os dálits. Ainda que seja pelo
motivo errado – pressão popular ao invés de consciência – será uma coisa boa,
não apenas para os dálits, mas para toda a Índia, que precisa reconhecer e combater
esse preconceito. E reconciliar-se com seu passado para poder viver o futuro
promissor que seu povo é capaz de construir.
Pedro Nascimento
Araujo é economista.
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