Bashar al-Assad continua matando
e o Conselho de Segurança das Nações Unidas continua de mãos atadas devido aos
vetos de China e Rússia. O governo de al-Assad, assim como seus cúmplices no
massacre do povo sírio, recorre sempre à cantilena de soberania para evitar intervenções
internacionais. Segundo eles, não há nada que justifique uma intervenção
estrangeira em assuntos domésticos, mesmo que estejamos falando de crimes
contra a humanidade. Esse argumento é falso: desde 2005, há, na diplomacia
mundial, um conceito conhecido pela sigla R2P, abreviação de Responsibility to
Protect, termo em inglês que quer dizer Responsabilidade de Proteger.
Resumidamente, o R2P preconiza que, conquanto a soberania estatal seja um
conceito basilar do Direito Internacional, ela pode ser mitigada diante de
graves violações de Direitos Humanos. No caso das violações na Síria, de acordo
com o conceito de R2P, o ditador não mais poderia esconder-se sob o conceito de
soberania para continuar massacrando inocentes porque a responsabilidade de
proteger as pessoas em território sírio, primariamente do governo da Síria, por
não estar sendo observada, passaria, subsidiariamente, para a comunidade
internacional. Para sorte de al-Assad e para azar dos milhares de sírios
vítimas de suas atrocidades, o R2P ainda não virou Costume Internacional
porque, além de ainda ser um conceito muito novo, enfrenta muitos
questionamentos – inclusive do Brasil. No entanto, malgrado os muitos e
poderosos obstáculos, mais cedo ou mais tarde o R2P vai virar Costume Internacional
e os seguidores de al-Assad na violação de Direitos Humanos pensarão duas vezes
antes de massacrar seus povos. É inexorável.
O conceito de soberania estatal é
uma das bases do chamado Sistema Internacional. Graças a ele, surgido do
princípio de igualdade de soberanias estatais (“par in paren non habet
imperium”), um país não pode agredir outros sem que tal ato enseje
responsabilidades internacionais – inclusive a legítima autodefesa, individual
ou coletiva. É um dos princípios basilares que fazem a anarquia internacional
funcionar diante da ausência de governo supraestatal. Um dos motivos de o R2P
enfrentar tanta resistência é o receio que muitos países têm de esse conceito
vir a ser invocado indevidamente para justificar que uma nação interfira em
outra de acordo com interesses particulares. O Brasil, especificamente, é
contra o R2P por dois motivos. Primeiro, pela triste histórico de violador de
Direitos Humanos, desde a letargia em combater a escravidão no século 19 até a
tortura oficial das ditaduras (varguista e militar) do século 20, que levaram o
país a rechaçar os regimes internacionais de Direitos Humanos por muito tempo,
até as atrocidades que ainda persistem no país no século 21 – exploração de
menores em grandes cidades, condições análogas à escravidão em rincões, tortura
travestida de abusos de autoridade etc. – e que são motivos de críticas
internacionais recorrentes. E, segundo e mais importante, por temer que, no
futuro, esse conceito possa ser usado contra o país. Para ser mais preciso, o
medo brasileiro é de o R2P justificar uma internacionalização da Amazônia:
seria simples, para a comunidade internacional, apresentar argumentos segundo
os quais o Brasil não estaria cumprindo sua responsabilidade de proteger a
Amazônia, patrimônio de todos os seres humanos; portanto, dada a
Responsabilidade de Proteger, os demais países conseguiriam que a soberania
nacional sobre a Amazônia fosse revogada e que ela passasse a ficar sob comando
internacional.
Assim como o Brasil teme o uso do
R2P como pretexto para a internacionalização da Amazônia, outros países têm
seus motivos para temer o conceito – não necessariamente razões nobres. China e
Rússia, notórios e contumazes violadores de Direitos Humanos, serão contra o
R2P enquanto puderem. Quando o princípio foi invocado para a aprovação da
Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas que permitiu a
criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia, impedindo que os opositores da
ditadura de Kaddafi fossem massacrados por ataques aéreos e, posteriormente,
levando à queda do regime, ambos os países o rechaçaram. Por isso, mesmo diante
das evidências dos crimes de al-Assad, China e Rússia vetarão qualquer tentava
de intervenção internacional na Síria: eles tentarão evitar o quanto puderem que
o R2P comece a virar Costume Internacional. Terão a ajuda de muitos países.
Evidentemente, atrasarão a ascensão do R2P a Costume Internacional. Por causa
disso, ainda vai demorar muito tempo e muitos ainda pagarão com a vida. Mas, no
final, o R2P será parte do Costume Internacional, a despeito dos esforços de
China, Rússia e muitos outros. O processo começou e é inexorável.
Na verdade, há antecedentes
históricos, embora ainda não com esse nome. Funciona sempre do mesmo modo.
Talvez o melhor exemplo seja a abolição da escravidão, instituição que
acompanhava a humanidade desde os primórdios e que era praticada por
virtualmente todos os povos. Primeiro, abolir a escravidão era visto como um
ideal frívolo de alguns ingleses ingênuos. Depois, graças às pressões populares
tornadas possíveis apenas com a democracia, o sonho romântico virou lei no
Reino Unido. Aos poucos, passou a ser percebido como uma opção de luxo para
alguns países ricos. Foi tomando vulto e tornando-se posição majoritária na
comunidade internacional. Ensejou guerras e protestos da opinião pública. E o
cerco foi se fechando, com cada vez menos seres humanos submetidos a esse
odioso jugo. Em um tempo histórico muito curto, o que era normal passou a ser
abjeto e o que era impensável passou a ser inevitável: manter a escravidão
ficou simplesmente insustentável. E após milênios de aceitação, o Costume
Internacional baniu a escravidão. Naquela época, não havia ainda o R2P, mas a
ideia já estava lá: escravizar um ser humano é tão grave que a soberania
estatal não poderia mais servir de salvaguarda para sua prática. Quando o R2P
for parte do Costume Internacional, será assim também para as graves violações
de Direitos Humanos – e, posteriormente, também para quaisquer violações de
direitos civis e políticos, como as ditaduras e as discriminações de gênero.
Pode demorar muito e vai deixar ainda muitos mártires pelo caminho, mas
acontecerá porque o R2P ser parte do Costume Internacional é justo e
necessário. É inexorável.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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