Por Pedro Nascimento Araújo
A Lei 5859, sancionada em 1972, regulamentou a atuação daqueles que definiu como empregado doméstico - até então, a informalidade e a ausência de normas eram sinônimos de trabalho doméstico, definido pela lei como "aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas." Editada a 16 anos do centenário do 13 de Maio, a Lei 5859 teve o condão de regulamentar o trabalho doméstico, o que, sem dúvidas, constituiu um avanço diante do estado natural que regia o setor e que, não surpreendentemente, evocava hábitos escravagistas. Foi um primeiro passo; todavia, de lá para, em que pesem os remendos (Lei 6887/1980, Lei 7998/1990, Lei 10208/2001 e Lei 11324/2006), sua essência não mudou. De fato, desde 1972 o trab alho doméstico, se não mais remetia à escravidão por ser regulamentado, remetia ao apartheid por não se incluir nas leis gerais do trabalho. Foram necessários mais 4 décadas para que o óbvio fosse feito lei: com a Proposta de Emenda Constitucional 478, aprovada em 2013, finalmente o óbvio está institucionalizado: trabalho doméstico é trabalho e, portanto, tem de ser tratado como tal de jure e de facto.
O lapso temporal entre 1972 e 2013 não se traduz apenas pela mudança no marco legal do trabalho doméstico. Entre 1972 e 2013, o Brasil e o mundo mudaram tanto que, hodiernamente, o fim do trabalho doméstico como entendido em 1972 é evidente de uma forma tão gritante que alegar não percebê-lo beira o cinismo. Simplesmente, jovens da classe média, tanto tradicional quanto ascendente, já não contam com empregado doméstico porque jovens de classe baixa também não entendem o emprego doméstico como alternativa atraente de ascensão social por meio de ocupação remunerada. Assim, os sintomas são evidentes - e talvez o melhor deles seja as infames "dependências de empregada", que invocavam as senzalas nos apartamentos de classe média, simplesmente terem desaparecido das plantas dos novos prédios. Em que pese uma declaração infeliz e exagerada do ex-ministro Delfim Netto acerca do fim do trabalho doméstico barato, o fato é que o trabalho doméstico barato está realmente acabando no Brasil - e isso é uma ótima notícia. Daqui para frente, a tendência é acontecer no Brasil o mesmo que acontece nos países socialmente avançados do mundo: só quem tem empregado doméstico é quem é muito rico, porque emprego doméstico é ocupação de classe média e, portanto, custa tanto quanto qualquer outro emprego de classe média.
Enfim, nossos legisladores reconheceram o óbvio: o trabalho doméstico é um trabalho como qualquer outro trabalho e, portanto, deve ser sujeito às mesmas leis dos demais trabalhos. Que nossos legisladores tenham levado tanto tempo para constatar o óbvio é vergonhoso. Aliás, não é sem tempo perguntar quando outras obviedades serão abordadas por nossos legisladores. Por exemplo: por que os serviços bancários estão fora da cobertura do Código de Defesa do Consumidor? Qual a razão para os bancos não poderem ser autuados pelo PROCON? É bastante óbvio que não há como sustentar a sério tais disparates. Mas não nos iludamos: pela lei brasileira, durante mais de 40 anos, trabalho doméstico não era trabalho; assim, fazer com que consumidores de serviços bancários passem a ser consumidores pe rante a lei brasileira vai ser tão difícil quanto foi fazer com que trabalhadores domésticos passassem a ser trabalhadores perante a lei brasileira. No Brasil, fazer o óbvio é o mais difícil.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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