Por Pedro Nascimento
Araujo
Recepp Taypp Erdogan era uma estrela em
ascensão na política internacional. Em que pesem alguns reveses como a
tentativa turco-brasileira de mediar a crise nuclear iraniana em 2009, em 10
anos de poder, o Premier da República da Turquia, democracia laica,
representava o papel que sempre se esperou de seu país, que controla o Estreito
do Bósforo: fazer a ponte entre o Islã e o Ocidente. Entretanto, nos últimos
dias, a Primavera Árabe parece ter chegado à democrática Turquia, o mais
improvável dos lugares. Todavia, por definição, sendo a Turquia uma democracia
laica, o que acontece lá não pode ser chamado desdobramento da Primavera Árabe.
O que acontece no herdeiro do Império Otomano pode ser mais um momento de
inflexão na política do país de quase 80 milhões de pessoas – e, portanto, de
todo o Oriente Médio. Afinal, ou Erdogan se fortalece ao final da crise graças
ao apoio dos islamitas e a islamização da Turquia se aprofunda ou sai
enfraquecido e o país terá governos liberais nos próximos anos.
Independentemente do que ocorrer, uma inflexão no país mais importante do
Oriente Médio implicará efeitos profundos na região.
A Turquia não se parece em quase nada
com o que o Ocidente entende por Oriente Médio, denominação que substitui por
metonímia o mundo mulçumano. Desde 1453, o controle de Constantinopla (atual
Istambul) é dos turcos – um fato tão importante que marcou o fim da Idade Média
– que, por controlarem o Estreito do Bósforo, têm um pé na Ásia e um pé na
Europa. Na verdade, os turcos tiveram bem mais que um pé: chegaram a cercar
Viena, e é daí que vêm os termos de distância do Oriente: o Príncipe Klemens
Von Metternich, o hábil negociador do Império Austríaco no Congresso de Viena
(1815), dizia que o Oriente começava “na primeira estrada a oeste de Viena”. A
República da Turquia, antes mesmo de ter esse nome, sempre fez a transição
Ocidente-Oriente.
Em 1934, quando Mustafa Kemal, que
liderava o país desde a vitória na Guerra de Independência da Turquia (1920),
ganhou do Parlamento Turco o nome oficial Atatürk (literalmente, Pai da
Turquia), o mundo já estava pasmo pela revolução que ele promoveu em seu país:
as modernizações de Atatürk – de adoção do alfabeto latino à laicização do
Estado, passando pela educação universal gratuita inclusive para meninas e pela
proibição do hijab, o véu que as mulçumanas ainda hoje são obrigadas a usar em
muitos países, em prédios públicos – levaram a Turquia do Século VX ao Século
XX em pouco mais de uma década e fazem as reformas de Lady Thatcher parecer
triviais.
Erdogan, evidentemente, não chega aos
pés de Atatürk, mas não estava fazendo feio – ao menos, não nos números. A
economia turca vai bem: crescimento elevado e inflação baixa. Erdogan conseguiu
progredir com a análise da proposta de entrada da Turquia na União Europeia –
vale lembrar que o país é membro da OTAN há décadas – e, há poucos dias, esteve
em Washington para pleitear a entrada de seu país na TAFTA, a gigantesca área
de livre comércio entre Estados Unidos e União Europeia cujas negociações
começarão ainda neste mês e que pode representar uma entrada tácita da Turquia
na UE.
Porém, para além dos números, Erdogan
acumula controvérsias, como a progressiva islamização da Turquia – nada que se
compare aos seus vizinhos, mas já o suficiente para ensejar mais dificuldades
de entrada na UE. Por exemplo, em uma época na qual governos do Ocidente estão
retirando discriminações de cunho sexual das leis, Erdogan brigou por uma lei
que pune ainda mais o homossexualismo nas forçar armadas da Turquia. O uso do
hijab voltou a ser permitido em prédios públicos. Israel, com quem a Turquia
sempre teve boas relações, tem sido alvo de declarações populistas islâmicas
por parte de Erdogan, que reduziu a tradicional cooperação turco-israelense a
virtualmente zero. Tudo isso incomoda aqueles que defendem uma Turquia nos
moldes desenhados por Atatürk: seu retrato emoldurado pela bandeira do país ser
onipresente entre os manifestantes é a maior prova disso. Por fim, o estopim da
confusão é o governo estar promovendo uma profunda reforma urbana em Istambul
que está destruindo relíquias históricas das muitas civilizações que por
milênios tiveram presença em Istambul – à exceção de mesquitas, o que deixa um
incômodo cheiro de talibã no ar.
Tudo somado, na última semana, a ordem
de derrubar uma pequena praça e um pequeno parque para a construção de um
shopping foi o proverbial estopim para a eclosão de ressentimentos contra
Erdogan. A população acorreu à Praça Taksim e ao Parque Gezi para protestar,
algo trivial em democracias. A polícia reprimiu com brutalidade e a reação de
Erdogan foi como gasolina em fogueira: disse que os manifestantes eram
saqueadores. O impasse estava pronto. Os protestos se espalharam pela Turquia.
Istambul arde. Ancara arde. Erdogan, acuado, teve de voltar atrás para não
causar um banho de sangue. Com o recuo, os manifestantes – inicialmente,
kemalistas (seguidores dos preceitos de Kemal Atatürk) e liberais, mas não há
como descartar uma infiltração futura de radicais mulçumanos – sentiram-se
fortes para prosseguir forçando Erdogan a parar. Erdogan pode se fortalecer
islamizando mais a sociedade e garantindo o apoio dos islamistas ou se enfraquecer
e abrir espaço para um governo kemalista com apoio dos liberais.
Independentemente do resultado final, uma nova inflexão no Bósforo está a
caminho – e, como o que acontece no Bósforo afeta todos no Oriente Médio, vale
acompanhar atentamente a progressão dos acontecimentos na República da Turquia.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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