Por Pedro Nascimento Araujo
Que o câmbio flutuante flutua é
uma tautologia que parece ter sido esquecida por Brasília: em regime
oficialmente de câmbio flutuante (aquele no qual, pleonasticamente, o câmbio
flutua), nada justifica que o Banco Central do Brasil (BACEN) pulverize mais de
um bilhão de dólares das reservas internacionais brasileiras por dia na
tentativa de fazer o câmbio parar de se depreciar. Nada. Isso já foi feito,
todavia: foi entre meados 1998 e início de 1999, quando o câmbio era, na
prática, fixo: sob a chamada Âncora Cambial, ou o BACEN comprava e vendia todos
os dólares que o mercado demandasse, ou o sistema ruiria. Entre 1998 e 1999,
mesmo queimando dezenas de bilhões de dólares, até literalmente exaurir as
reservas internacionais do Brasil, o BACEN perdeu a briga e o real se
desvalorizou sobremaneira, com o dólar mais que dobrando de cotação em poucas
semanas: foi a Crise do Real, causada diretamente pela Âncora Cambial. O Brasil
aprendeu a lição – aliás, não só o Brasil, mas o mundo inteiro: câmbio fixo para
conter a inflação, nunca mais. Nunca mais teríamos Âncora Cambial. Então, como,
15 anos após o início da Crise do Real, o BACEN resolveu dar-lhe como Regalo de
Quinceañera (presente de festa de 15 anos das meninas na América Hispânica) a
volta da Âncora Cambial? Para responder, é preciso voltar no tempo para
entender o que significou a Âncora Cambial, tanto para o sucesso do Plano Real
quanto para a Crise do Real, e porque sua volta é temerária.
Durante o improvável governo de
Itamar Franco, o Brasil conseguiu um feito mais improvável ainda: por meio do
Plano Real, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, a hiperinflação foi
vencida devido a uma combinação entre uma heterodoxa reforma monetária (a
Unidade Real de Valor, vinculada ao dólar, permitiu o realinhamento e a
estabilidade dos preços relativos antes de ser transformada no atual real), uma
ortodoxa política fiscal (a Desvinculação de Receitas da União permitiu um
esforço fiscal de 20% das receitas do governo federal, as privatizações permitiram
reduzir a dívida pública, as renegociações das dívidas dos estados e dos
municípios acabaram com a farra de emissão de dívida por qualquer entidade que
não Brasília, a Lei de Responsabilidade Fiscal garantiu que a disciplina fiscal
fosse obrigatória), uma ortodoxa política monetária (os títulos do governo
indexados foram progressivamente trocados por títulos prefixados, o setor
bancário foi saneado e os juros foram aumentados deliberadamente para atrair
dólares que equilibrassem o Balanço de Pagamentos), uma ortodoxa política
comercial (boa parte do excesso de demanda derivado do Plano Real foi atendida
por produtos importados, impedindo que o desabastecimento pusesse em risco a
estabilização, como ocorreu no Plano Cruzado) e uma heterodoxa política cambial
(embora informalmente, o câmbio era virtualmente fixo e atrelado ao dólar, na
chamada âncora cambial, que, na prática, garantia conversibilidade
internacional do real perante o dólar: a chamada Âncora Cambial). Com o Plano
Real, o Brasil não apenas venceu a hiperinflação, mas fez a maior
redistribuição de renda de sua história: a inflação – ou o imposto
inflacionário, como os economistas apropriadamente a chamam – é o mais perverso
concentrador de renda que existe. Porém, o sucesso de 1994, grande a ponto de
eleger Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República por duas vezes
em primeiro turno, virou o pesadelo de 1999. O problema? A Âncora Cambial.
Voltemos à tautologia: o câmbio fixo não flutuava. E a derrocada cambial de
1999 aconteceu por causa do câmbio fixo. Por causa da Âncora Cambial.
A vantagem do câmbio fixo é o
combate ao imposto inflacionário – não haveria sucesso do Plano Real em
controlar a inflação sem a Âncora Cambial. A desvantagem do câmbio fixo é o
engessamento da política monetária – não haveria a maxidesvalorização de 1999
sem a Âncora Cambial. Sob câmbio fixo, o BACEN é obrigado a comprar e a vender
a quantidade de dólares que os agentes econômicos demandarem. Enquanto os juros
elevados atraem dólares para a Conta Capital e Financeira do Balanço de
Pagamentos, sua contrapartida direta, o aumento dos Haveres da Autoridade
Monetária (as reservas internacionais do país) garante que, na prática, o
câmbio continuará fixo, pois será factível ofertar ao mercado todos os dólares
demandados. Porém, se começa a ficar claro que as reservas internacionais serão
insuficientes para manter a conversibilidade, há um surto especulativo: as
pessoas começam a comprar dólares porque temem que, em breve, o BACEN seja
obrigado a abandonar o câmbio fixo por meio de uma maxidesvalorização e o preço
do dólar subirá muito. Após a Rússia ter sido forçada a desvalorizar o rublo na
esteira de uma corrida especulativa em 1998 (em 1992, foi o Reino Unido, no
caso que deu notoriedade mundial a George Soros; em 1994, o México; e, em 1997,
os Tigres Asiáticos. A Argentina seria forçada a fazer o mesmo em 2000, após a
Crise do Real, coup de grâce no peso formalmente conversível em dólares da
nação platina), os dólares escassearam no sistema financeiro internacional. Sem
conseguir atrair dólares, as reservas internacionais do Brasil começaram a
minguar, levando consigo a capacidade do BACEN de garantir a conversibilidade
do real. Economistas keynesianos chamariam tal movimento demanda monetária por
motivo de especulação, enquanto economistas clássicos o chamariam adaptação de
expectativas; independentemente disso, foi dada a largada na corrida cambial
contra o real: era o começo da Crise do Real e o início do fim da Âncora
Cambial.
Em 1998, o Brasil vivenciou um frenesi
para trocar reais por dólares. O BACEN conseguiu fôlego quando o Fundo
Monetário Internacional (FMI) emprestou 30 bilhões de dólares ao Brasil no meio
daquele ano para recompor as reservas do país, no maior resgate da história do
FMI feito até então. Tamanho colchão de dólares não durou um ano. No início de
1999, o Brasil capitulou: o dólar mais que dobrou de valor. Armínio Fraga, que
trabalhou com Soros (aquele que ficou famoso por liderar um ataque especulativo
contra o Banco da Inglaterra que levou a libra esterlina a quebrar em 1992),
assumiu o BACEN e construiu, junto com Pedro Malan no Ministério da Fazenda, o
tripé macroeconômico ortodoxo que a “Nova Matriz Econômica” da dupla
Rousseff-Mantega vem dilapidando: câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de
inflação. Com isso, em relativamente pouco tempo após a tempestade, o Brasil
voltou ao caminho da normalidade, retirando da política econômica o único
elemento heterodoxo que restava do Plano Real – o câmbio fixo. Âncora Cambial,
nunca mais. Nunca mais?
Em meados de 2013, uma
Quinceañera depois de o Brasil ter recorrido ao FMI pela última vez, vemos o
BACEN voltar a interferir ostensivamente no mercado de câmbio, reduzindo nossas
reservas internacionais em mais de um bilhão de dólares por dia. Com uma
diferença crucial: o câmbio não é mais fixo. É algo que, economicamente, não
faz sentido: apenas sob câmbio fixo a compra e venda de dólares no mercado
cambial necessita ser efetuada pelo BACEN. Por que, então, interferir para
manter o dólar apreciado? Por que não deixar o real se desvalorizar? Sob câmbio
flutuante, o Balanço de Pagamentos tende ao equilíbrio por meio de mecanismos
simples: se o real está fora do valor de equilíbrio, os resultados das relações
com o resto do mundo o forçarão de volta para o valor equilíbrio, tano por meio
tanto de resultados na Conta Corrente quanto por meio do saldo de divisas que
entram e saem do país em busca de lucratividade nos diferenciais de
câmbio-juros com o resto do mundo. ataques especulativos perdem razão de
existir: o câmbio flutua e, portanto, não há como ter certeza sobre uma
iminente maxidesvalorização quando as reservas internacionais acabarem. Apostar
contra o real deixa de ser bom negócio: há riscos sérios de comprar na alta e
vender na baixa. Assim, se o câmbio flutuante tende ao equilíbrio, por que o
BACEN gasta reservas internacionais para não deixá-lo flutuar?
Simples: porque a “Nova Matriz
Econômica” fracassou. A inflação está no topo da meta, vazando-o
ocasionalmente. O descontrole só não é maior porque há represamentos
artificiais: não houve reajustes de energia, de transportes e de combustíveis –
na prática, esses preços estão subsidiados e mantidos artificialmente baixos
para ajudar no controle da inflação. Como não existe almoço grátis, alguém
paga: na energia, o governo, via déficit; nos transportes, as prefeituras, via
redução de investimentos; na energia, a Petrobras, via prejuízos. Em tal
cenário, com inflação reprimida que, mais cedo ou mais tarde, terá de virar
realidade, a “Nova Matriz Econômica” passou a depender do câmbio valorizado
para tornar os produtos importados competitivos e, com isso, a inflação sob
controle: há pouco tempo, a dupla Rousseff-Mantega percebeu que, ao contrário
do que apregoavam seus gurus econômicos, a população brasileira não tolera
aumentos da inflação e, portanto, passaram a priorizar mantê-la sob controle.
Assim mesmo: sem estratégia, sem tática, sem visão de longo prazo. Uma mera
resposta direta às pesquisas eleitorais. Uma reação assustada e atabalhoada à
perda de popularidade – que, por sinal, antecedeu o Junho de 2013. Só que nós
já vimos esse filme. Já sabemos que morremos no final. Mesmo assim, o
impensável está acontecendo: o Brasil está dependendo cada vez mais do câmbio
para manter a inflação sob controle. O BACEN gasta mais de 1 bilhão de dólares
por dia para manter o câmbio apreciado. Sem nenhum sucesso: somente em 2013, o
dólar já subiu mais de 15%. Isso gera pressão direta sobre a inflação, que,
conforme já vimos, está não apenas vazando no teto da meta, como
artificialmente represada. Evidentemente, a situação na Quinceañera da Crise do
Real é outra: ainda temos mais de 300 bilhões de dólares em reservas
internacionais. É muito, mas não é infinito. Já houve dias nos quais o BACEN
queimou mais de 3 bilhões de dólares – nesse ritmo, as reservas entrariam em
colapso ainda em 2013. O mercado está testando o BACEN. O mercado está testando
a “Nova Matriz Econômica” da dupla Rousseff-Mantega e a disposição do Brasil
para queimar reservas internacionais na tentativa desesperada de manter a
inflação controlada. O mercado percebeu que estamos voltando paulatinamente à
Âncora Cambial. Feliz Quinceañera, Crise do Real. Há saudades de você em
Brasília.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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