Por Pedro Nascimento Araujo
“Dreamer, you know you are a
dreamer / Well can you put your hands in your head, oh no”. Os versos iniciais
de Dreamer, canção de 1974 do Supertramp, são uns dos mais conhecidos na
história da música internacional. A letra faz graça com os sonhadores
(“dreamers”), mas, atualmente, o nome Dreamers remente, nos Estados Unidos, a
um movimento bastante interessante e sério, que vale a pena conhecer. Os EUA
possuem aproximadamente 11 milhões de imigrantes – pouco mais de 3% de uma
população de 315 milhões de pessoas. Ainda assim, 11 milhões é um número
considerável de pessoas vivendo na ilegalidade. A maioria é de imigrantes da
América Latina – México à frente, mas também muitos oriundos de Cuba, Colômbia
e países da América Central. As propostas de regularizar tamanho contingente
são debatidas no Capitólio há décadas sem que se chegue a uma conclusão
satisfatória. A mais recente tentativa, promovida na presidência de Barack Obama,
também fracassou. É nesse momento que surge o Dreamers.
O Dreamers é um representante
daquilo que se convencionou chamar coletivos. Na prática, são pessoas que se
reúnem em torno de um objetivo comum, não tendo necessariamente nenhum ponto de
contato além dele. E qual é o ponto de contato do Dreamers? Simples. São tão
americanos quanto aqueles americanos que pregam restrições a emigrantes
latino-americanos: cresceram nos Estados Unidos – em geral, levados pelos pais,
imigrantes ilegais, quando bebês. Na prática, são culturalmente americanos:
foram educados em escolas americanas, falam inglês fluentemente, gostam de
futebol americano. Não se identificam com a cultura dos países de seus pais –
não raro, falam as mesmas poucas palavras em espanhol que um típico filho de
americanos nascido nos EUA falaria. Mas não podem viver nos EUA por absoluta
falta de documentação.
Para ser mais específico, os
membros do Dreamers – vale lembrar que não chegam a 100 – não foram expulsos
dos EUA. São exemplos daquilo que políticos que não conseguem disfarçar sua
xenofobia chamam pelo neologismo “autodeportados”, como Mitt Romney fez para
prejuízo de sua campanha à presidência. As razões para a autodeportação são
absolutamente cruéis: por falta de uma solução para seus status, eles não
podiam fazer nem coisas banais como tirar uma habilitação nem coisas mais
elaboradas, como entrar em uma faculdade pública – pior ainda, quando eram
alunos excepcionais (e há muitos desses no Dreamers) não podiam sequer ganhar
os financiamentos que as melhores faculdades privadas lhes ofereciam.
Resumindo: cidadãos que, se tivessem situação regular, certamente seriam parte
da elite americana e aumentariam a média de qualificação dos cidadãos do país,
simplesmente não podem sê-lo porque o Congresso não decidiu o que fazer com
eles – e, aparentemente, nada mudará enquanto o claudicante Obama estiver na
Casa Branca.
O que faz os Dreamers especiais é
o fato de eles terem resolvido lutar contra tamanha estupidez por parte do
Capitólio. Enquanto os pais eram imigrantes ilegais (que chegaram aos Estados
Unidos escondidos e escondidos e sem documentos passaram a vida sem falar
inglês e dispostos a fazer trabalhos não qualificados tanto para fugir da
miséria ou da violência de seus países de origem quanto para poder proporcionar
um futuro melhor para seus filhos), os filhos (que foram educados nos EUA,
falam inglês como língua nativa e podem concorrer aos melhores empregos se
sentem estrangeiros nos países nos quais nasceram e para os quais foram impelidos
a retornar na chamada autodeportação) desistiram de se esconder e
decidiram atrair atenção para suas situações. Há um mês, 9 ativistas do
Dreamers tentaram, ostensivamente e anunciadamente, entrar ilegalmente nos EUA
apenas para serem detidos pela Border Patrol. Ficaram algumas semanas presos e
conseguiram atenção da mídia mundial: eram jovens bem vestidos e bem
articulados, davam entrevistas em inglês perfeito e apresentavam suas
credenciais: estudaram em boas escolas nos Estados Unidos, tinham notas para
entrar nas melhores faculdades do país etc. mas não podiam permanecer no país,
um contraste gritante com a imagem sedimentada no imaginário americano de
mexicano que tenta entrar ilegalmente nos EUA. Para essa semana, há outra ação
agendada – desta vez, deverão ser 30 os voluntariamente presos.
Ao optar por essa forma
inteligente e até certo ponto bem humorada de expor as inconsistências da
omissão do Capitólio, o Dreamers reaviva a desbotada tradição americana de
desobediência civil pacífica, que tem, nos Estados Unidos, expoentes como Rosa
Parks, a negra que foi presa, julgada e condenada porque, em 01-Dez-1955, se
recusou a levantar-se em um ônibus lotado para dar lugar a um homem branco,
conforme mandava a lei do Alabama, dando início ao Movimento de Direitos Civis
que atingiu seu apogeu nos anos 1960. Os Dreamers sabem que, ao serem presos
por tentar entrar ilegalmente nos EUA, ainda que o façam deliberadamente e
comunicado suas intenções às autoridades, arriscam-se a nunca mais serem
autorizados a entrar no país, eliminando qualquer possibilidade de obter uma
cidadania futura. A aposta é grande: se o Dreamers conseguir mobilizar a
sociedade como Rosa Parks o fez, eles poderão voltar a viver no país que sentem
como seu com a dignidade necessária; todavia, se não conseguir, perderão as
chances individuais de conseguir cidadania americana. Um somatório de
sacrifícios individuais em prol de um incerto ganho coletivo que evoca a velha
canção de John Lennon, Imagine: “You may say I'm a dreamer / But I'm not the
only one / I hope someday you'll join us.”. O Dreamers é uma bela mensagem que
jovens forçados a sair dos Estados Unidos deixam para o mundo.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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