Por Pedro Nascimento Araujo
Financeiramente, um país não é
muito diferente de uma empresa ou mesmo de uma pessoa: quando os números vão
mal, o crédito escasseia e as chances de quebrar crescem. Como qualquer pessoa
que mantém as finanças em dia sabe, basta estar bem para receber ofertas de
crédito a granel; porém, é virtualmente impossível se obter crédito quando as
finanças não estão em dia – ou seja, exatamente quando mais se precisa do
crédito. É natural – afinal, os bancos precisam ter lucro, e não há nada melhor
para ter lucro do que conceder crédito apenas para quem não precisa de crédito
e tem condições de pagar os juros (ou seja, o lucro) do banco. Entre os países,
poucos são aqueles que se encontram em tal situação: tecnicamente, são os
países que possuem o chamado Investment Grade, classificação que lhes permite
títulos da dívida pública pagando um prêmio (remuneração) menor – na prática,
lhes permite obter empréstimos no mercado internacional com a facilidade de uma
pessoa ou de uma empresa que tem as finanças em dia, pagando taxas
significativamente menores. Há alguns anos, o Brasil faz parte dessa elite
mundial; todavia, há razões de sobra para temer que 2014 entre para a história
como o ano no qual o Brasil perdeu o Investment Grade devido à deterioração dos
fundamentos da economia brasileira desde 2008.
Convém relembrar o que aconteceu
para que o Investment Grade chegasse ao ponto atual de risco. Em 2002, quando
Lula da Silva despontou como favorito para ocupar a Presidência da República,
os mercados temeram que ele seguisse o modelo econômico defendido por seus
correligionários do Partido dos Trabalhadores (PT) e jogasse pelo ralo os
avanços obtidos desde 1993, quando o Brasil equalizou sua dívida externa por
meio da adesão ao chamado Plano Brady. Como se sabe, a cotação do dólar chegou
a encostar em R$ 4, Lula da Silva renegou as diretrizes do PT por meio da Carta
ao Povo Brasileiro e, ao tomar posse, entregou o comando da economia aos
ortodoxos Antônio Palocci e Henrique Meirelles, este um membro do partido de
seu antecessor FHC e ex-presidente mundial de um banco americano. Os mercados
se acalmaram e, com o tempo, conforme os fundamentos da economia brasileira
foram fortalecidos, o Investment Grade finalmente veio: o Brasil se juntou ao
grupo de países composto por Estados Unidos, França, Canadá, Austrália etc. e
se afastou de países como Argentina e Grécia. Há analistas que consideram o
Mensalão como o ponto de inflexão a partir do qual o governo Lula da Silva
começou a abandonar a prudência na gestão econômica, enquanto outros consideram
a Crise de 2008 como o momento no qual Lula da Silva, fragilizado politicamente
pelo Mensalão, optou pelo abandono da ortodoxia no afã de eleger Dilma Rousseff
em 2010. Pouco importa qual visão é mais precisa, pois, em seguida, Dilma Rousseff
optou pela famigerada Nova Matriz Econômica, basicamente um delírio
desenvolvimentista que solapou o Tripé Macroeconômico (câmbio flutuante, metas
de inflação e superávit primário) ao longo de seu governo.
Em 2013 a “contabilidade
criativa”, filha dileta da Nova Matriz Econômica, foi entendida pelos mercados
como mero estelionato contábil. Ninguém acredita nos pronunciamentos de Dilma
Rousseff e Guido Mantega nos quais reafirmam seus compromissos com o Tripé
Macroeconômico: na prática, o câmbio tem flutuações controladas para manter os
importados baratos (uma irresponsabilidade que já custou 100 bilhões de dólares
das nossas reservas), a inflação é mantida artificialmente na meta (uma
irresponsabilidade que levou as cotações da Petrobras a quedas recordes)e o
superávit primário só é alcançado por meio de truques (uma irresponsabilidade
que erodiu a confiança que o Brasil tinha nos mercados). Não importa o quanto
Guido Mantega e seus comandados acreditem na sandice que estão cometendo – o
fato é que ninguém mais compra suas versões: as agências de risco já anunciam
uma tendência a retirar o Investment Grade do Brasil. como nada indica que a
Nova Matriz Econômica será abandonada neste ano eleitoral de 2014, a perda do Investment
Grade do Brasil já é favas contadas nos mercados.
Se o risco de perder o Investment
Grade já é elevado (entre outros motivos, porque o custo de captação será maior
para o Brasil, cujos títulos não poderão mais compor as carteiras de grandes
fundos de investimento internacional, forçando o país a pagar juros maiores, em
um processo que pressionará os resultados fiscais do governo), fica pior ainda
se ocorrer uma crise no Balanço de Pagamentos. Didaticamente, podemos entender
o Balanço de Pagamentos como a soma de 2 rubricas que sintetizam o que entra e
sai do Brasil em termos de dólares: a Conta Corrente, formada por Balança
Comercial (importações e exportações), Balança de Serviços (fretes, seguros
etc.), Balança de Rendas (lucros, juros, aluguéis e salários) e Transferências
Unilaterais (doações etc.),e a Conta Capital e Financeira, formada por
empréstimos, investimentos etc. e que sintetiza os fluxos de capital.
Historicamente, o Brasil é deficitário na Conta Corrente (aonde é superavitário
apenas na Balança Comercial que, com seus recursos, ajuda a mitigar os déficits
das demais contas) e supre essa sangria na Conta Capital e Financeira, o que dá
ao país o status de importador líquido de poupança. Normalmente, o arranjo
funciona bem, mas, em 2013,
a Balança Comercial foi deficitária pela primeira vez em
anos, embora o governo, em mais uma manobra da tal “contabilidade criativa”,
tenha lançado como exportação plataformas de petróleo construídas no Brasil e
compradas pela Petrobras para fechar o ano com um saldo positivo. Os mercados,
obviamente, perceberam a malandragem e pressionam ainda mais pela retirada do
Investment Grade, pois todos sabem que, conquanto sob câmbio flutuante, um país
com déficit em Conta
Corrente tenderia a depreciar a moeda para restaurar o
equilíbrio, o Brasil não pode fazê-lo porque precisa manter a inflação
artificialmente no teto da meta e, portanto, vai queimar reservas
internacionais para forçar a estabilidade cambial. Tal movimento é
insustentável em médio prazo, como provou a Crise do Real de 1999 e, assim,
muitos agentes já estão comprando dólares para depois das eleições, quando
esperam que o governo relaxe o câmbio por bem (ortodoxia) ou por mal
(esgotamento de reservas).
Por fim, há o fator externo.
Ainda didaticamente, a taxa de juros de um país depende de alguns fatores
externos, como a taxa de juros básica internacional (na prática, a taxa de
juros paga pelo Tesouro Americano, aquele que, em mais de 200 anos, nunca deu
um calote), o prêmio de risco (que aumenta conforme o país se afasta do Investment
Grade), a variação cambial esperada e a inflação esperada. Como não há
expectativa de mudança na inflação e há expectativa de aumento tanto do prêmio
de risco (fim do Investment Grade) quanto da taxa de juros nos EUA (fim do
quantative easing), os agentes financeiros estão esperando um aumento da taxa
de juros básicas brasileiras (na prática, a SELIC) para 2014. Como, mais uma
vez, esperam que o governo mantenha a taxa de juros artificialmente baixa por
conta do calendário eleitoral, a expectativa é de mais saída de recursos
(leia-se dólares) do Brasil, tanto por pragmatismo (se os juros aumentarem nos
EUA, nenhum agente racional – e, em economia, por definição, todos os agentes
são racionais – deixaria recursos no Brasil sem ganhar um aumento no mínimo igual
nos juros) quanto por especulação. O resultado, em ambos os casos, é mais
pressão sobre a taxa de câmbio – ou, em outras palavras: como o governo não
quer que o real se desvalorize em ano eleitoral, isso significa mais pressão
sobre as reservas internacionais do Brasil.
Assim, 2014 já começa com uma
enorme espada de Dâmocles pendendo sobre a economia brasileira. Na verdade,
essa espada tem nome e é nossa velha conhecida: Crise do Real. Já nos atingiu
seriamente em 1999, mas o Brasil atual parece particularmente disposto a perder
novamente a cabeça para ela em 2014 ou em 2015. O fato é que conhecemos esse
roteiro e já sabemos que seu final é triste. Não obstante isso, estamos
repetindo seus passos, por mais que o governo negue ter abandonado as práticas
aprendidas a duras penas: o Tripé Macroeconômico, implementado por Armínio
Fraga, Pedro Malan e FHC em 1999 garantiu a estabilidade e o desenvolvimento
dos anos 2000 enquanto impedia exatamente um retorno às práticas que levaram à
Crise do Real de 1999. Foram lições aprendidas a duras penas. Por isso,
perceber que a dupla Dilma Rousseff e Guido Mantega insiste em ignorá-las é um
mistério que desafia o entendimento racional: em nome de interesses eleitorais,
eles simplesmente estão esticando a corda demais. Uma hora a fadiga do material
vence, a corda se parte e a história se repete, não como farsa, como dizia Karl
Marx, mas como rima, como dizia Mark Twain.
Pedro Nascimento Araujo é
economista
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