Por Pedro Nascimento Araujo
Quando se pensa em potências
expansionistas no Século XIX, as primeiras imagens que se vêm à cabeça remetem
a europeus em terras tropicais na África ou na Ásia. É verdade que nesses
lugares houve grandes incorporações de colônias, desde a Índia (Reino Unido) à
Argélia (França), passando pelo Sudoeste Alemão (Alemanha) e mesmo o inacreditável
Congo Belga, possessão particular do Rei Leopoldo II (Bélgica), mas não foi só
isso: houve também grandes aquisições territoriais em terras temperadas, mais
especificamente na Eurásia – e lá havia apenas uma potência expansionista: a
Rússia. Quando se pensa em potências expansionistas no Século XX, há três
referências: Alemanha (única remanescente da Europa), Japão (potência
ascendente na Ásia) e Rússia (Eurásia). Quando se pensa em potências
expansionistas no Século XXI, o plural não cabe mais: resta apenas a Rússia – e
o novo alvo de Putin I da Rússia é a Crimeia. Há muitas possibilidades de
desfecho para a atual crise, das mais otimistas às mais pessimistas; dentre
elas, a mais interessante (e razoavelmente provável), é a que apresento agora.
Sua força reside no fato de ser uma solução na qual todos perdem algo, mas
todos têm um bom prêmio de consolação: em outras palavras, no fato de ser uma
solução política clássica, na qual todos ficam satisfeitos – e ninguém fica
feliz.
Sobre a Rússia já se disse que
ela perdeu a Guerra Fria porque era uma potência do Século XIX no Século XX. De
outra forma: enquanto os Estados Unidos estavam se desindustrializando e se
transformando em uma potência de tecnologia, naquilo que muitos chamam III
Revolução Industrial, a Rússia continuava a buscar produzir carvão e aço,
poluindo como se não houvesse amanhã (afinal, preocupação com ecologia era
“coisa de burguês”), utilizando mão de obra escrava e chegando a gastar mais de
um quarto de seu orçamento para financiar a manutenção de suas forças armadas –
lentas, atrasadas e inchadas – e sua expansão territorial. No fim, a Rússia
perdeu a Guerra Fria porque sucumbiu diante de seus próprios atraso e
ineficiência: quando Ronald Reagan ameaçou levar a corrida armamentista
literalmente para o espaço e criar um escudo antimísseis que utilizaria lasers
e controle computadorizado de última geração, a potência do Século XIX jogou a
toalha: não teria como acompanhar tal nível tecnológico produzindo carvão e aço
com mão de obra escrava. É espantoso como pouca gente se dá conta de que manter
a paridade em armamentos nucleares é a forma mais barata de ser superpotência:
os custos marginais de se produzir uma nova ogiva termonuclear são baixíssimos
uma vez que se tenha a tecnologia dominada – em última análise, ser uma
superpotência no Século XX não era muito diferente de ser uma potência no
Século XIX: troque-se as canhoneiras pelas ogivas termonucleares e um país
poderia ser protagonista produzindo carvão e aço com mão de obra escrava.
Porém, com o fim da Guerra Fria, uma alquebrada Rússia ficou com a sobra do
outrora poderoso Império Soviético. Sem que uma bota estrangeira tenha pisado
em seu solo (nesse ponto, muito semelhante ao Império Alemão ao final da Grande
Guerra),a Rússia saiu da Guerra Fria como um país arrasado, atrasado e
desmembrado – e, mesmo sem uma Conferência de Paz de Paris para oficializar uma
acachapante derrota que nunca houve no campo de batalha, sentindo-se
profundamente humilhado.
O orgulho é parte da Rússia,
pouco importa se czarista, comunista ou putinista. A necessidade de impor-se
aos vizinhos não é [apenas] mera vaidade, mas condição de sobrevivência. No
Século XIX, a Rússia era uma potência expansionista sem paralelos: invadia e
incorporava territórios a bel-prazer, com a peculiaridade da continuidade
territorial, o que não dava ao seu neocolonialismo o caráter colonial – afinal,
não eram terras exóticas, mas apenas extensões de seu próprio território.
Evidentemente, ucranianos, poloneses e outros povos incorporados à força como
súditos do czar não concordavam com tal visão, mas as demais potências do
Congresso de Viena (Áustria, França, Prússia e Reino Unido) não tinham o menor
interesse em estepes na Ásia Central com acesso somente por terra e cercadas
por países soberanos. Se, para crescer “organicamente” a Rússia não tinha
restrições, seu grande desafio no Século XIX pode ser resumido como uma
tentativa desesperada de obter territórios no Mar Mediterrâneo, então
pertencentes ao decadente Império Otomano (em uma das melhores metáforas de
todos os tempos, o “homem doente da Europa”) que garantissem a posse de uma
marinha de guerra sem risco de isolamento por conta dos rigorosos invernos que
congelam seus mares glaciares – e ela fracassou nisso: sua derrota na Guerra da
Crimeia (1853-1856) marcou o fim dos planos russos de partir da Crimeia para
conquistar um território com acesso aos estreitos do Mar Mediterrâneo (Bósforo
e Dardanelos) – a Rússia teve de se contentar em manter a Crimeia (um arranjo do
Reino Unido para evitar humilhações ao czar) e sua base naval de Sebastopol no
Mar Negro – a mesma Crimeia e a mesma base naval de Sebastopol no Mar Negro que
ora são alvo de uma pouco disfarçada invasão russa.
Como às humilhações do Século XIX
(Guerra da Crimeia) se somariam aquelas do Século XX (derrota para o emergente
Japão na Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, assinar a Paz de Brest-Litovsk em
1917, se ver forçada a se associar ao “Ocidente decante” para poder vencer a
Alemanha a partir de 1941, e, por último, após ter reconquistado virtualmente
todos os territórios czarista durante e após a Segunda Guerra Mundial,
perdê-los com a derrota na Guerra Fria), à Rússia pode-se creditar uma versão
muito mais forte do famoso “Mito da nação amputada” que se aplica à Argentina:
um outrora grande, orgulhoso e poderoso império (no caso da Argentina, o
Vice-Reino do Prata) que vai sendo humilhado e despedaçado. São aspectos
importantes na psique de uma nação, do tipo que estimula seus líderes a
aventuras erráticas, como a invasão das Ilhas Falklands (Argentina, 1982) ou a
invasão da Geórgia (Rússia, 2008), apenas para demonstrar um poder que todos
sabem não mais possuir. Assim, em 2014, quando a Rússia se viu preterida pelos
ucranianos em favor da União Europeia, o pote de mágoas transbordou novamente.
Moscou já vinha fazendo pressões nada sutis para que a Ucrânia (literalmente, o
único estado-tampão relevante entre a Rússia e a União Europeia) não se
associasse economicamente aos europeus, mas sim a uma espécie de união
aduaneira por meio da qual os russos pretendem futuramente recuperar os antigos
territórios do czar. O medo do Kremlin é direto: à associação comercial entre
União Europeia e Ucrânia sucederem-se as associações política (entrada na União
Europeia) e militar (entrada na OTAN). Enquanto para um líder ocidental, pode
não parecer nada de mais (afinal, é perfeitamente normal que países se
associem) a entrada da Ucrânia na União Europeia, para um líder russo significa
a aceitação de mais uma perda de influência (leia-se poder) regional: a leitura
é de que a Rússia foi desprezada em favor dos europeus.
Chega-se, portanto, à raiz da
questão envolvendo a Crimeia atualmente. Como vimos, a Guerra da Crimeia,
conquanto tenha sido lutada na Crimeia, mas não foi pela posse da Crimeia, que
foi Russa até que Nikita Khruschov resolveu repassar sua posse para a Ucrânia
durante um porre colossal em 1954 como presente pelos 30 anos de entrada
(forçada, diga-se) da Ucrânia na União Soviética. Não que fizesse muita diferença:
ocupada pelos soviéticos desde a expulsão dos nazistas, a Ucrânia era parte da
União Soviética e a potência do Século XIX ainda alimentava ilusões de
superioridade econômica e tecnológica – ninguém pensaria em colapso do Império
Soviético meros 35 anos depois. Quando a humilhação da derrota na Guerra Fria
se abateu em Moscou, a Crimeia proclamou independência, mas depois a península
se associou a Kiev com um status diferenciado de autonomia. É lá, na Crimeia
que sempre foi russa e que um russo deu para os ucranianos, que Putin I da
Rússia exerce seu papel de potência do Século XIX no Século XXI. Como perdeu a
Ucrânia quando a revolta popular apeou do poder pela inacreditável segunda vez
em 10 anos seu lacaio Yanukovych, Putin I precisa urgentemente de uma
demonstração de poder para manter sua cabeça acima do pescoço – um fato
relevante, uma vez que ninguém no Ocidente quer que Putin I perca prestígio em
casa a ponto de arriscar ser substituído por algum ultranacionalista ou
populista que, explorando o sentimento de humilhação russo devido à mais uma
perda de influência, poderia querer tentar reavivar o tradicional expansionismo
russo: mesmo sucateadas, as armas russas ainda são poderosas.
Putin I da Rússia sabe que uma
intervenção direta na Ucrânia no estilo daquela feita na Geórgia em 2008 é
impensável: a Ucrânia é um país grande demais para suas sucateadas tropas
conquistarem e ocuparem e a reação do Ocidente, especialmente da União Europeia
(leia-se OTAN), poderia sair do seu controle. A Ucrânia não é a Geórgia e Kiev
não fica próxima ao território russo. No entanto, fazendo fronteira com a
Rússia, bem ao Sul, há a Crimeia, onde já há a base naval russa de Sebastopol
no Mar Negro, com militares à disposição do Kremlin e em uma área que, de fato,
historicamente pertence mais à Rússia que à Ucrânia. O prêmio de consolação
perfeito, o alvo ideal: tudo o que Putin I da Rússia precisa para manter seu
prestígio interno sem precisar se arriscar demais com o Ocidente. Para ficarem
ainda mais latentes o poder e atração que a Rússia sob Putin I exerce sobre sua
área de influência, está agendado um referendo de resultado certo: a Crimeia
voltará à Rússia. Portanto, ao final de tudo, sem que tenha havido tecnicamente
uma invasão – afinal, os militares russos esconderam os rostos com balaclavas
(curiosamente, a máscara que hodiernamente é mais associada à proteção contra
fogo nos rostos de pilotos de corridas de automóveis surgiu exatamente na
Guerra da Crimeia para que soldados britânicos protegessem os rostos do frio) e
retiraram bandeiras e identificações de seus uniformes – ou uma violação
expressa e inquestionável do Direito Internacional, a Ucrânia poderá prosseguir
com sua aproximação rumo a uma futura adesão à União Europeia, o Ocidente
ficará satisfeito por não ter havido uma guerra e por Kiev ter se afastado um
pouco mais da órbita de Moscou, Putin I ficará satisfeito por poder mostrar que
trouxe a Crimeia para a Rússia e a Crimeia ficará satisfeita por voltar a se
ligar ao país ao qual sempre pertenceu. Se o desfecho for esse, todo mundo
ficará satisfeito. E ninguém ficará feliz.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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