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O Bom e o Peregrino




Por Pedro Nascimento Araujo

O mundo pôde testemunhar um momento especial, quando, diante de quase um milhão de pessoas, o Papa Francisco reconheceu como santos (a Igreja Católica reconhece a santidade, não a proclama) dois de seus antecessores: João XXIII, também conhecido como Papa Bom, e João Paulo II, também conhecido como Papa Peregrino – dentre os presentes à cerimônia, estava o Papa Emérito Bento XVI, responsável por iniciar o processo de canonização de ambos. Havia especulação de que Bento XVI presidiria a solenidade por conta de sua ligação pessoal com João XXIII e com João Paulo II (com este, mais intensa), mas não ocorreu e Francisco comandou a canonização – bastante simples e rápida, por sinal, mas nem por isso menos importante. Afinal, João XXIII e João Paulo II foram dois dos homens mais importantes da segunda metade do Século XX, com ações que transcenderam suas dimensões de líderes espirituais e afetaram a vida de todos no planeta, cristãos ou não. Na esteira da festa que reuniu Francisco (266º Papa) e Bento XVI (265º Papa) para homenagear João XXIII (261º Papa) e João Paulo II (264º Papa), apropriadamente realizada no chamado Domingo da Misericórdia (o primeiro após a Páscoa cristã do Ocidente), é oportuno relembrar as grandes realizações seculares de homens que, antes de serem reconhecidos santos, foram reconhecidos importantes: ambos foram eleitos Personalidade do Ano pela revista americana Times (João XXIII em 1952 e João Paulo II em 1994). Foram os únicos líderes religiosos a receber tal honraria além do próprio Francisco (2013). João XXIII e João Paulo II tornaram o mundo melhor porque trouxeram paz à Terra – não metaforicamente, mas objetivamente, conforme veremos.

João XXIII teve uma participação importantíssima na história da Igreja Católica: foi ele quem convocou em 1962 o Concílio Vaticano II, cujos efeitos modernizantes não apenas foram importantíssimos como ainda se farão sentir na Igreja por muitos anos. É sintoma disso o fato de, em 2012, durante os debates que a Igreja promoveu para avaliar o legado de cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II (foi encerrado em 1965, já sob o Papa Paulo VI), não se ter chegado a um consenso sobre as possibilidades abertas e ainda não exploradas por aquela reunião que, sem exageros, redefiniu a atuação da Igreja Católica. O melhor exemplo talvez seja uma decisão que hoje soa óbvia: as missas passaram a ser ministradas nas línguas locais ao invés de em latim – vale lembrar que a Reforma Protestante (1517) já o havia feito mais de quatro séculos antes. Mas João XXIII não foi Personalidade do Ano de 1962 por causa do Concílio Vaticano II: por mais importante que tenha sido para a Igreja Católica e para suas centenas de milhões de fiéis, o Concílio Vaticano II foi, em última análise, um evento da Igreja Católica para a Igreja Católica. João XXIII foi Personalidade do Ano em 1962 por causa de seu trabalho político. E que trabalho, diga-se.

João XXIII mediou as conversas entre Estados Unidos e União Soviética durante a Crise dos Mísseis de 1962, momento no qual a humanidade mais se perto ficou de um apocalipse atômico – o Relógio do Juízo Final, mecanismo ilustrativo do risco de conflito nuclear da Bulletin of the Atomic Scientists, chegou a marcar 23h55min, em uma escala na qual meia-noite representa o próprio Armaggedon nuclear, a maior marca desde sua criação em 1947 e que permanece imbatível até hoje. Quando aviões espiões americanos detectaram mísseis balísticos intercontinentais sendo montados em Cuba, John Kennedy montou um bloqueio naval à ilha caribenha e anunciou que afundaria navios que se recusassem a ser inspecionados antes de poder atracar em Cuba. Nikita Khrushchev ignorou o ultimato e mandou navios com peças para os mísseis seguirem rumo a Cuba. No dia 23 de outubro daquele ano, com o prazo esgotando-se e o confronto parecendo inevitável, o católico Kennedy (primeiro e único presidente católico dos EUA até hoje) perguntou se João XXIII, que já estava com a saúde debilitada pelo câncer gástrico que o mataria no ano seguinte, estaria disposto a mediar um entendimento entre as partes. O convalescente Papa aceitou e, no dia 24, enviou uma mensagem para o Kremlin por meio da legação soviética em Roma apelando pela paz. Seus núncios apostólicos (equivalentes a diplomatas) em Moscou e em Washington obtiveram a aquiescência de Nikita Khrushchev e de John Kennedy para que uma mensagem papal exortando a paz fosse feita na Rádio Vaticano. No dia seguinte, jornais do mundo inteiro (inclusive o Pravda, único jornal soviético, controlado pelo Kremlin, com a óbvia aprovação de Khrushchev) exibiam as palavras de João XXIII (“Não fiquem surdos aos gritos da humanidade: paz, paz!”), que simplesmente ofereciam tanto a Kennedy quanto a Khrushchev uma chance única de saírem do episódio sem parecer covardes – na verdade, eles saíram do episódio parecendo homens de paz. Daquele momento em diante, a Casa Branca e o Kremlin decidiram manter uma ligação constante (no que ficou popularmente conhecido como “telefone vermelho”, mas que, na verdade nunca foi um telefone, e sim vários canais e protocolos de comunicação prévia entre as superpotências) e deram início à chamada Détente, a distensão Leste-Oeste. O Papa João XXIII, o homem que renovou a Igreja por meio do Concílio Vaticano II e que teve um milagre reconhecido, fez mais que por merecer sua alcunha Papa Bom.

João Paulo II também foi Personalidade do Ano (1994). Sua atuação como Papa Peregrino foi impressionante: visitou 130 países, rompendo com o tradicional isolamento papal no Vaticano. Fez coisas que hoje soam naturais, mas eram impensáveis: visitou países onde a Igreja Católica era proibida, visitou países que adotavam outras religiões oficiais (além do judaísmo e do islamismo, outros ramos do cristianismo), rezou com patriarcas da Igreja do Oriente, com rabinos, com imãs etc., criou a Jornada Mundial da Juventude (1985), criou o Dia Mundial de Oração Pela Paz em Assis (1986) etc. Suas peregrinações geraram inúmeros livros, e seus ineditismos continuam a causar espanto. Com João Paulo II, o catolicismo passou a ter uma face global, o ecumenismo passou a ser um bem comum e a mensagem de tolerância e de inclusão do Concílio Vaticano II seriam internalizadas para sempre no seio da Igreja Católica. Teologicamente, João Paulo II lançou muitas encíclicas e bulas, mas a que merece mais destaque é a Encíclica Centesimus Annus (1991), na qual ele revisitou uma das mais importantes encíclicas dos tempos contemporâneos, a Encíclica Rerum Novarum (1891, Leão XIII) – que foi interpretada erroneamente tanto pela direita, que via nela apenas uma condenação aos excessos do comunismo, quanto pela esquerda, que via nela apenas uma condenação aos excessos do capitalismo – para deixar claro que a Igreja continua condenando tanto a supressão de liberdades (políticas, civis e religiosas) que os regimes comunistas impunham, uma vez que os governos deveriam ser agentes garantidores de liberdades para todos e de proteção para os pobres, quanto a exploração dos pobres que o capitalismo permitia. Mas, assim como João XXIII não foi Personalidade do Ano por causa do seu trabalho religioso, mas sim por causa de seu trabalho político, João Paulo II também foi Personalidade do Ano por seu trabalho político. E que trabalho, diga-se também.

Mal foi eleito Papa, João Paulo II herdou uma arbitragem na chamada Questão do Canal de Beagle, uma questão que por pouco não levou a uma guerra entre Argentina e Chile – o país platino chegou a mobilizar forças para uma anexação de território em disputa. Uma arbitragem já havia sido feita pela Rainha Elisabeth II, mas questões técnicas levaram à anulação do laudo arbitral. Ambos os países concordaram com a arbitragem do Papa e o conflito militar não ocorreu. Embora tenha sido importante, a arbitragem na questão do Canal de Beagle não foi a mais importante atuação política de João Paulo II. Seu maior feito foi ter acabado com o comunismo. Melhor dizendo, com o Império Soviético – afinal, o comunismo ainda existe em ditaduras como Cuba e Coreia do Norte. João Paulo II foi a força moral que derrubou o comunismo – as forças política e econômica-militar foram, respectivamente, o Reino Unido sob Margareth Thatcher e os Estados Unidos sob Ronald Reagan. A anedótica troça de Stálin quando perguntado sobre o destino do Papa na II Guerra Mundial (“Quantas divisões tem o Papa?”) foi respondida por João Paulo II em 1979, quando ele, recém-empossado Papa, decidiu visitar sua Polônia natal: sem um soldado sequer, ele enfrentou os milhares de soldados do sucessor de Stálin, seus tanques, aviões, navios, submarinos e armas nucleares. Nem todas as divisões soviéticas foram capazes de dissuadi-lo. Na Polônia, como de resto em todo o Império Soviético, a Igreja Católica era reprimida pelo governo. João Paulo II foi, beijou o chão do país (sua marca registrada, foi um gesto que ele repetiu enquanto teve forças) e fez um discurso que ficou marcado na história: diante daquelas pessoas que tinham todas as suas liberdades usurpadas pelo comunismo, ele disse: “Não tenham medo!” e, desde então, os poloneses não tiveram mais medo dos soviéticos. O Sindicato Solidariedade de Lech Walesa amealhou o descontentamento popular – e contou com a Igreja Católica para funcionar clandestinamente. A repressão prosseguiu por mais uma década, mas a rachadura na barragem que João Paulo II criou com uma frase só fez crescer. Quando a redemocratização atingiu a Polônia em 1989, Walesa assinou a participação do Sindicato Solidariedade no acordo que levou às primeiras eleições multipartidárias no país desde a ocupação na II Guerra Mundial com uma caneta que era souvenir da visita de 1979 e que continha um retrato de João Paulo II. Porque, durante todo o seu papado, ele lutou para devolver a liberdade a metade do mundo e conseguiu, João Paulo II foi uma das pessoas mais importantes do Século XX. João Paulo II, o homem que levou a Igreja Católica ao mundo todo e a reconciliou com seus antigos inimigos, reconheceu erros do passado (inclusive remotos, como o saque de Constantinopla pela IV Cruzada de 1202, autorizada pelo Papa Inocêncio III) e criou ações para o futuro (como a Jornada Mundial da Juventude, que levou três milhões de pessoas para uma missa rezada pelo Papa Francisco em Copacabana no ano passado e cuja próxima edição será exatamente em Cracóvia, Polônia, cidade de onde ele era arcebispo antes de ser Papa), fez mais que por merecer sua alcunha Papa Peregrino: em suas peregrinações, ele levou paz, esperança e liberdade por todo o mundo.

Por isso, a celebração deste 27 de Abril foi tão importante: não foi apenas o reconhecimento de dois novos santos, o que é motivo de júbilo para os católicos, mas a exaltação de dois homens que lutaram pela paz. João XXIII e João Paulo II trabalharam pela paz. Impediram guerras. Levaram a liberdade para muitos. Mudaram para sempre e para melhor a Igreja Católica, mas também mudaram para sempre e para melhor o mundo. Ontem, tiveram suas santidades reconhecidas. Durante suas vidas, tiveram seus papéis de defensores da liberdade e fazedores da paz reconhecidos. Dois grandes homens, cujos legados devem ser respeitados e lembrados, independentemente da religião. Uma curiosidade final: da cerimônia de abertura do Concílio Vaticano II, presidida pelo Papa João XXIII, participaram seus sucessores à exceção de Francisco: Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI. Francisco, o homem em cujo mandato foram reconhecidas as santidades de João XXIII e de João Paulo II, não poderia estar presente nem se quisesse: ele somente seria ordenado presbítero em 1969, sete anos após. Francisco viveu toda sua vida sob os auspícios do Concílio Vaticano II, criação de João XXIII, o Papa Bom, que ele reconheceu santo ontem, e testemunhou as mudanças que as peregrinações de João Paulo II, o Papa Peregrino, geraram na Igreja Católica e no mundo. Com Francisco, uma nova geração está no comando. Sua história ainda está sendo escrita, mas, a julgar pelo que o Papa Francisco fez até agora, principalmente por sua disposição de enfrentar problemas arraigados na Cúria Romana, não há porque duvidar que, caso a paz mundial esteja em jogo durante seu pontificado, o Trono de Pedro estará disposto a interceder por ela mais uma vez.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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