Por Pedro Nascimento Araujo
O termo “babaca” há muito deixou
de ser apenas sinônimo de vagina para ser entendido como sinônimo de tolo,
ingênuo, simplório etc., embora os dicionários ainda mantenham a acepção antiga
como a primeira entrada – ainda que na prática, hoje praticamente ninguém mais
a use e falar em “babaquice” equivalha a falar em tolice, ingenuidade etc.
Infelizmente para o ex-presidente Lula da Silva, não é mais um palavrão. Antes
fosse: Lula da Silva é incontestavelmente o melhor orador do Brasil há pelo
menos 10 anos (desde 2004, quando Leonel Brizola, o único capaz de rivalizar
com ele, faleceu), mas, não raro, tropeça em seu mastodôntico ego – não seria,
na verdade, a primeira vez que ele diria um palavrão em público. Mas não foi
o caso: ele fez pior. Na última semana, quando Lula da Silva declarou em um
encontro com internautas que “chegar de trem no estádio é babaquice”, seria
melhor para ele que “babaca” ainda fosse um xingamento. Um sonoro palavrão
teria sido menos ofensivo para o povo brasileiro, aquele que lhe elegeu e ao
qual ele jurou servir no início de cada um de seus dois mandatos presidenciais.
Ao usar um termo corriqueiro, daqueles que crianças usam ao falar com os avós
nos almoços dominicais, ele não demonstrou uma irritação momentânea – como uma
topada na unha encravada, um susto com um tiroteio que irrompe, uma decepção
com um pênalti perdido na final de um campeonato, situações que levam à
explosão de um palavrão; do contrário: ele falava calmamente, com suas unhas a
salvo, em local seguro, sem nenhum jogo acontecendo – e, assim, calmamente, ele
demonstrou um enraizado desprezo pelo povo brasileiro, daqueles de fazer Brutus
corar.
Evidentemente, Lula da Silva
sabia exatamente do que estava falando e de seus respectivos porquês quando o
fez: ele tentava reduzir os danos causados à imagem dele e de Dilma Rousseff
por conta do completo fiasco operacional que os governos que eles comandaram
apresentarão ao mundo em três semanas. Para tanto, ele fez o que sabe fazer de
melhor: discursar. Subiu num caixote virtual e começou a pregar em seu megafone
via internet. Tal e qual um aspirante a pastor que fica em vagões de trem
recitando trechos salteados da Bíblia conforme a resposta da audiência, Lula da
Silva disse que o povo brasileiro, ao cobrar dele e de sua sucessora o que ele
e sua sucessora prometeram, estava de “babaquice”, como se fôssemos 200 milhões
de crianças mimadas que não querem dividir o controle do videogame com o primo
que chegou para as férias. Isso é inaceitável. Suponha que isso ocorresse no
governo de Collor de Mello (muito antes de ambos serem os melhores amigos de
hoje, eram os melhores inimigos um do outro) ou de Fernando Henrique Cardoso.
Certamente, o termo mais leve que o Lula da Silva daquela época usaria para se
referir a um governo que reage a cobranças de promessas classificando-as como
“babaquice” seria retrucar usando “babaca” e “moleque”. É possível ver o Lula
da Silva dos anos 1990 em um comício gritando “O presidente é que é um babaca
se acha que o povo brasileiro vai aceitar essa molecagem! Isso é coisa de
moleque!” Palmas soariam para ele com todos os méritos porque ele estaria
expressando com perfeição o sentimento do povo. Só que não: hoje, quem chama o
povo de babaca é ele. E, para a sorte dele, não há na oposição um Lula da
Silva.
Especificamente, Lula da Silva
chamou de “babaquice” o povo brasileiro querer chegar de metrô nos estádios da
Copa do Mundo FIFA 2014. Ele, que só anda de jatinho, helicóptero e carro
blindado, disse que é para “andar a pé, descalço [sic], de bicicleta, de
jumento, qualquer coisa”. Antes de dizer que é “babaquice” o turista querer que
o metrô leve-o até dentro do estádio (presumivelmente, um turista ou oriundo de
um país desenvolvido ou que, como ele, já visitou um país desenvolvido e sabe
que há, sim, estádios que contam com estações de metrô), ele falou a pior das
frases: “Acha que a gente tá preocupado [sic]?” Um palavrão seria muito menos
ofensivo. Entendendo por “a gente” a combinação dos governos de Lula da Silva e
de Dilma Rousseff, saber que eles não estão preocupados é uma punhalada no
melhor estilo Brutus – como o senador que comandou a conspiração contra seu
amigo Júlio César (imortalizada na cultura popular pela célebre frase “Et tu,
Bruté?” / “Até tu, Brutus?” usada na peça homônima de Shakespeare), após anos
de promessas de Lula da Silva e de Dilma Rousseff sobre a Copa do Mundo FIFA
2014 deixar como principal legado para o Brasil exatamente a mobilidade urbana
(leia-se metrô), não tem como os brasileiros não se sentirem traídos. Em 2010,
Lula da Silva, em seu último ano de presidência (mais precisamente, em
13-Jul-2010), quando restavam exatos 4 anos para o início da Copa do Mundo FIFA
2014, fez um discurso que soa debochado hoje: “Terminou a Copa do Mundo na
África do Sula agora e já começam a perguntar sobre o metrô brasileiro no mundo
como se nós fôssemos um bando de idiotas que não soubéssemos fazer as coisas.”
O problema do futuro é que ele sempre chega. Quatro anos depois, não cabe aqui
fazer um inventário dos disparates já ditos por ele ou das inconsistências de
suas declarações – algo que, em outra tirada genial, ele esvaziou com estilo ao
citar a letra de Paulo Coelho na música famosa de Raul Seixas e dizer que prefere
ser uma “metamorfose ambulante”. Isso não invalida a traição. A traição,
naturalmente, não é ter prometido e não ter cumprido – não cumprir é sempre
ruim, mas isso não basta para transformar um Júlio César em um Brutus; simplesmente,
problemas podem ocorrer. A traição é saber que Lula da Silva e Dilma Rousseff
simplesmente nunca estiveram preocupados se o povo vai “andar a pé, descalço
[sic], de bicicleta, de jumento, qualquer coisa”. A traição é o descaso. A
traição é fingir que está ajudando quando não está fazendo nada. A traição é
dizer: “Acha que a gente tá preocupado [sic]?”. Brutus não faria melhor.
Corria o ano de 2009 (mais
especificamente: 03-Jun-2009) quando Dilma Rousseff, então Ministra-Chefe da
Casa Civil da Presidência da República, ao fazer a apresentação de um Balanço
do PAC (7º), garantiu que pelo menos o trecho do trem-bala ligando Rio de
Janeiro a São Paulo estaria pronto até a Copa do Mundo FIFA 2014, naquele
momento a cinco anos de distância. Obviamente, não há até agora um dormente
sequer colocado; na verdade, o projeto foi olimpicamente abandonado, embora
conste ainda hoje do rol de objetivos exatamente do governo de Dilma Rousseff
que se encerra neste ano. Pior, Dilma Rousseff disse, na mesma ocasião, que o
governo federal não gastaria dinheiro com estádios – que, por sinal, seriam no
mínimo 8 por exigência da FIFA e viraram 12 por vontade de Lula da Silva e
Dilma Rousseff. Eis os resultados da bravata: o Estádio Nacional Mané
Garrincha, com 60 mil lugares, é o mais caro: R$ 2.000.000.000,00 – e contando.
Aliás, com uma divisão rápida, chega-se à pornográfica quantia de mais R$ 30
mil por assento em um local cujos times de futebol literalmente não conseguem
vaga nem para jogar na 4ª Divisão. Há outros casos, como o fato de o estádio de
abertura da Copa do Mundo FIFA 2014, acerca do qual ninguém se entende quanto
ao nome (parece piada, mas não é: nos ingressos, aparece “Arena de São Paulo”;
no mobiliário urbano, “Arena Corinthians”; e, nas placas de trânsito, “Estádio
Itaquera”) passar o torneio sem cobertura para todos os torcedores. Ou seja, se
chover, molhará os turistas, que provavelmente já não estarão felizes depois de
“andar a pé, descalço [sic], de bicicleta, de jumento, qualquer coisa” para
chegar ao estádio (afinal, foram obrigados a seguir o conselho de Lula da Silva
e não ficar de “babaquice” de querer ir de metrô até o estádio); assim, como
sói sempre ocorrer quando falta planejamento, só restará aos donos da casa
apelar para os santos – e nem isso anima muito no caso do estádio do
Corinthians: São Pedro é padroeiro do rival São Paulo. A lista prossegue, mas
não vale a pena prosseguir nela: o ponto principal é gastou-se muito e
gastou-se muito mal o muito que se gastou naquilo que se disse que não se
gastaria nada. Mentiu-se e mentiu-se muito. “Acha que a gente tá preocupado
[sic]?”
Na verdade, a ideia segundo a
qual o foco do investimento do governo brasileiro seria na mobilidade urbana
nas então recém-escolhidas cidades-sede foi sempre o discurso oficial. Dilma
Rousseff disse naquele hoje distante ano de 2009, “a parte do governo
brasileiro [na Copa do Mundo FIFA 2014] é a mobilidade urbana”. Não é. Aliás,
não era. Melhor ainda: na verdade, nunca foi. A prova cabal é apenas 10% do que
estava previsto para mobilidade urbana na tal Matriz de Responsabilidade ser
considerado como entregado pelo governo, embora a maioria esteja incompleta –
por exemplo, em relação aos aeroportos administrados pelo governo (Infraero), a
anedótica quantidade de 0% estará completada até o início da competição, embora
todos constem como entregados. Aliás, se há declarações que são piores que
xingamentos, como a de Lula da Silva dizendo que cobrar o que ele e sua
sucessora prometeram é “babaquice”, há outras que são eivadas de um humor
doentio. É o caso da declaração de Dilma Rousseff feita ontem (18-Mai-2014),
segundo a qual os aeroportos “estão preparados” para a Copa do Mundo FIFA 2014.
Das duas, uma: ou é escárnio ou ela se trancou definitivamente no Mundo de Bob
ou no Wolfsschanze e não lê mais o que seus próprios subordinados declaram (0%
– por extenso: zero por cento – dos aeroportos administrados pela Infraero
estará completada até lá). Não que faça muita diferença: no final das contas,
ela não cumpriu o que ela prometeu. Se o povo tenta cobrar, é “babaquice” do
povo. Lula da Silva deu, na semana passada, duas das piores declarações de sua
longa vida política. Seu mastodôntico ego o impedirá de pedir desculpas ao povo
brasileiro – e, infelizmente, isso parece não o incomodar. “Acha que a gente tá
preocupado [sic]?” Traição é isso, Brutus. Pode se revirar no túmulo com
inveja.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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