Por
Pedro Nascimento Araujo
A Venezuela é constantemente
lembrada pela sua decadência – não sem razão: o país caribenho em geral tem
sérios problemas internos, como desabastecimento (destaque especiais para a
falta de gasolina em um país cuja pauta exportadora é 95% petróleo e para a
falta de papel higiênico pelo ridículo da coisa), inflação de 70% ao ano e a
atuação de paramilitares (milícias políticas), além de ser o país mais violento
das Américas, com 45 homicídios para cada 100 mil habitantes. São problemas
mais do que conhecidos e sempre citados. Porém, há uma mudança em curso na
Venezuela que poucas pessoas percebem: uma mudança discreta, mas significativa.
O destaque reside na expropriação dos ativos das empresas estrangeiras de
petróleo, um dos pilares do chavismo, estar sendo desmontada. Não porque
Nicolás Maduro tenha súbito se transformado em um entusiasta da livre
iniciativa, mas por mero pragmatismo: ou o país se abre aos investimentos
estrangeiros, ou um default aconteceria mais cedo ou mais tarde. E a
abertura começou pelo bezerro de ouro do chavismo: a Petróleos de Venezuela
S.A., mais conhecida como PDVSA, por causa da recente queda na cotação do
petróleo.
A PDVSA é um colosso. Criada em
1976, na esteira de um enriquecimento abrupto do país após o salto no preço do
produto decorrente do Choque do Petróleo (1973) e como resultado de um
controverso programa de nacionalização de ativos comandado por Carlos André
Peres, é simplesmente dona da maior reserva do óleo negro no mundo, com
estonteantes 300 bilhões de barris – embora essa primazia possa ser falha por
conta da conhecida tática saudita de não fornecer dados acerca de suas
reservas, trata-se, sem dúvidas, de um gigantesco ativo, que a monopolista
PDVSA levaria mais de 200 anos para explorar no ritmo atual. Se a máxima
atribuída a John Paul Getty for verdadeira (o melhor negócio do mundo seria uma
empresa de petróleo bem administrada e o segundo melhor seria uma empresa de
petróleo mal administrada), a PDVSA é o segundo melhor negócio do mundo. Desde
que Chávez passou a usar o caixa da empresa para financiar seus programas
sociais, notadamente as chamadas Missões Bolivarianas, a PDVSA “doou” mais de
USD 60 bilhões. Como assim não há máxima de Getty que resista, não é de se
espantar, portanto, que a PDVSA esteja tendo problemas de fluxo de caixa. E que
problemas, diga-se: com a produção estagnada (e em leve porém paulatina queda)
há anos e com os seus ativos se sucateando, a empresa precisa urgentemente de
dinheiro.
A PDVSA não é a Venezuela e a
Venezuela não é a PDVSA, mas a ligação entre ambas nunca foi tão forte. O
hidrocarboneto começou a ser extraído no país há exatos 100 anos, em um poço
chamado Zumaque – que está ativo até hoje. A relação entre a PDVSA e a
Venezuela pode ser ilustrada por um dado simples: petróleo é 95% da pauta
exportadora do país. Durante os anos de Chávez, a PDVSA não apenas foi usada
como fonte de recursos para programas populistas, mas também teve sua
administração desprofissionalizada, com representantes dos sindicatos
(invariavelmente ligados ao Palácio Miraflores, sede do executivo venezuelano)
alçados ao comando da empresa. A partir de Chávez, a empresa seria administrada
por representantes dos próprios empregados, ao invés de ser administrada por
representantes dos acionistas. Evidentemente, a preocupação principal dos
empregados não é com a rentabilidade, mas sim com os próprios vencimentos. A
produtividade só fez cair, com um inchaço absurdo do quadro de empregados – não
raro, simplesmente não há como todos os empregados lotados em um setor
trabalharem nele por mera falta de espaço físico. Sobram pessoas, faltam
especialidades: o corpo técnico perdeu qualidade e tamanho relativo desde que
os empregados assumiram a empresa. Concomitantemente, a partir de 2007 Chávez
expropriou os ativos dos sócios estrangeiros da PDVSA, empresas internacionais
de grande porte que, na prática, mantinham a empresa operando. Chegamos, então,
ao estágio atual: sem quadro técnico suficiente, com empregados em excesso, com
o caixa sendo sangrado para sustentar programas sociais do governo, com os
ativos sendo depreciados e sem fluxo de caixa, a PDVSA parecia um caso perdido.
E eis que, na calada da noite, Nicolás Maduro vem aplicando um choque de
capitalismo à PDVSA.
O campo de Zumaque começou a ser
explorado por um empreendedor local que rapidamente se uniu à Royal Dutch
Shell, gigante anglo-holandesa do setor. Não seria diferente com os outros
campos. Mesmo nacionalizada e com monopólio, a PDVSA sempre contou com expertise dos
estrangeiros. Teve esse interregno de Chávez, mas já está voltando à sua
tradição empurrada pela necessidade. A PDVSA vem firmando contratos com
operadoras estrangeiras que dão aos seus novos parceiros vantagens impensáveis
sob a ótica da propaganda bolivariana, o que explica o assunto ser simplesmente
ignorado nas comunicações oficiais. Na prática, a PDVSA está retirando a
administração de contratos dejoint-venture das mãos dos seus empregados. O
caso mais famoso a vazar foi um contrato com a gigante americana Chevron
firmado ano passado. Pelo que foi acertado, a Chevron adiantou USD 2 bilhões à
PDVSA para que a estatal pudesse, com “assessoria técnica” dos americanos,
explorar um campo no Lago Maracaibo, lócus da exploração petrolífera
venezuelana. Como a Chevron já havia tido ativos expropriados no país, além de
não ter recebido dividendos em casos anteriores, o empréstimo foi firmado com
arbitragem internacional e uma cláusula que permite que o pagamento do
empréstimo seja retirado diretamente das vendas internacionais da PDVSA – aqui,
vale lembrar que os EUA são o maior mercado da PDVSA e que, conquanto haja
histrionismo antiamericano nos dirigentes venezuelanos, o país caribenho nunca
deixou de fornecer óleo bruto aos ianques.
Além de fornecer garantias
internacionais em mercadoria para os novos empréstimos e investimentos, a PDVSA
passou a aceitar uma cláusula que permite que os novos parceiros decidam sobre
as operações, especificamente os prestadores de serviços que serão contratados
e os equipamentos que serão utilizados. Ou seja, farão exatamente como fariam
em seus países de origem e no resto do mundo. A experiência da PDVSA,
pomposamente qualificada como “autogestão”, simplesmente não deu certo e, mais
do que estar sendo encerrada sem choro nem vela, está sendo largada no escuro –
e em silêncio. Os atrasos, a ineficiência e a corrupção endêmica típicos do
período da “autogestão” da PDVSA serão contornados, o que é sempre positivo,
mas o ideal seria que esse choque de capitalismo se espalhasse pelo país todo.
A PDVSA não é a Venezuela e a Venezuela não é a PDVSA, mas uma pode ensinar à
outra que não há ganho nenhum em perda de produtividade. A Venezuela tem uma
riqueza natural que, passado um século, não criou um país desenvolvido. Um
último número para ilustrar o quão longe de qualquer racionalidade a PDVSA
estava: enquanto, recentemente, com o barril estável a mais de USD 100 há
alguns anos, as companhias internacionais de petróleo apenas investem em
projetos que têm seu break-even (ponto a partir do qual têm lucro)
com o barril a 30 dólares (em 1998, ano no qual o coronel Hugo Chávez adentrou
o Miraflores, o barril custava menos de USD 10), enquanto a PDVSA opera com um break-even de
USD 90. Como o barril chegou à casa dos USD 80 na semana passada (e há indícios
consistentes de que essa baixa que durará muito, notadamente por causa da cada
vez mais próxima nova auto-suficiência americana), a PDVSA conseguiu a proeza
de ter prejuízo de dez dólares por barril que produz enquanto o resto do mundo
tem lucro de cinquenta. Graças à PDVSA, a máxima atribuída a Getty poderia ser
trocada para: o melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem
administrada e o pior negócio do mundo é uma empresa de petróleo mal
administrada.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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