Pedro
Nascimento Araujo
Narendra Modi já teve um visto de
visitante negado pelo Consulado dos Estados Unidos da América em sua Índia
natal. Não é mais o caso; na verdade, agora que é Premier da Índia, Modi é
muitíssimo bem recebido em Washington – bem mais, por exemplo, do que Dilma
Rousseff. A eleição de Modi em maio deste ano teve todos os ingredientes de
renovação: um político não ligado ao aristocrático Partido do Congresso
Nacional Indiano, ele representava um sopro de mudança no corrupto e
ineficiente governo indiano, tanto domesticamente quanto internacionalmente. Se
domesticamente ainda é cedo para dizer o que Modi poderá representar para os
indianos, internacionalmente já ficou claro – ao menos no campo comercial
multilateral, nada mudou: a Organização Mundial do Comércio (OMC), comandada
pelo brasileiro Roberto Azevêdo, que esteve tão próxima de fechar seu primeiro
acordo mundial no final do ano passado, voltou à estaca zero. E o mundo perde
com isso – para ser mais específico, Modi tem em mãos uma decisão que põe em
risco o acordo de “facilitação de comércio” que Azevêdo conseguiu arrancar de
todos os quase 200 países membros da OMC em torno de um trilhão de dólares e 20
milhões de empregos (ao menos 15 milhões em países periféricos) em incremento
de negócios durante a Reunião Ministerial de Bali em 2013. A mera à
intransigência dos indianos está pondo tudo a perder, uma vez que na OMC é
necessário haver o consenso de todos os seus membros para que um acordo
multilateral seja fechado.
A Índia é um país conhecido por
sua atuação em prol de uma ordem global comercial mais justa. Nos anos 1960,
Brasil e Índia foram líderes em fóruns mundiais de defesa do desenvolvimentismo
no comércio mundial como a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento), no que ficou conhecido como Cooperação Sul-Sul,
uma referência de oposição ao “Norte” formado pelos países ricos e uma forma de
contrapor a dicotomia Leste-Oeste da Guerra Fria. Naquela época, era comum
dizer-se que ambos os países adotavam uma postura “demandante e defensiva” – em
bom português, que exigiam concessões do chamado “Norte” e se recusavam a abrir
mão de prerrogativas. Eram épocas diferentes: o “Sul” (noves fora países como a
Austrália, que, apesar de ser sulista até no nome, era parte do “Norte” por ser
desenvolvida) teria direito histórico a explorar o meio-ambiente até que sua
renda se igualasse à do “Norte”. A retórica terceiro-mundista foi perdendo peso
até culminar em na Rio-92, na qual se aceitou o princípio de “responsabilidades
comuns, porém diferenciadas”, o que significa que o “Sul” deveria pagar menos a
conta dos abusos ambientais do que o “Norte” (que, afinal, poluía desde a
Revolução Industrial), mas também perderia o direito de abusar da natureza –
este conceito é a base do Protocolo de Kioto. Com o fim da Guerra Fria, além do
abuso ambiental, o desenvolvimento autárquico (sem comércio com outros países)
passou a não fazer sentido e a OMC foi criada em 1994 para substituir, de forma
institucionalizada e eficiente, o capenga GATT (Acordo Geral de Comércio e
Tarifas), um remendo na forma de acordo executivo surgido em 1947 para
compensar o fiasco da criação da Organização Internacional do Comércio,
instituto previsto por Bretton Woods (1944) para formar a tríade da
prosperidade mundial no pós-II Guerra, junto com o FMI (Fundo Monetário
Internacional) e o Banco Mundial.
Desde 1994, todavia, a OMC não
conseguiu andar muito na liberalização do comércio mundial. Se é verdade que
institucionalmente houve avanços imensuráveis (por exemplo, graças ao advento
do consenso reverso, suas decisões implicam em resultados práticos, como o
processo do Brasil contra os subsidiados algodoeiros americanos), também é
verdade que não houve um equivalente à “Rodada Uruguay” do finado GATT. É aí
que a Índia entra. Com mais de um bilhão de habitantes, a Índia ainda é um país
majoritariamente agrário (a China, o país mais populoso do mundo, passou a ser
majoritariamente urbana no final da década passada) e com uma base agrícola
pouco mecanizada. Por isso, os indianos sempre consideram que qualquer
liberalização que envolva a agricultura é um risco à própria sobrevivência de
centenas de milhões de seus habitantes: trabalhando a terra com as mãos, eles
simplesmente não têm chance de competir com o resto do mundo e fatalmente
criariam um êxodo rural de proporções bíblicas para as já gigantescas e
insalubres favelas das macrocéfalas cidades indianas. Tendo isso em mente, a
Índia veta sistematicamente as decisões de liberalização do comércio agrícola
mundial. Foi assim antes, mais especificamente em 2004. Naquele ano, o chamado
Pacote de Julho quase destravou a Rodada Doha (ou Rodada do Desenvolvimento,
lançada em 2001 na esteira do 11 de Setembro): a União Europeia, pressionada
pelo G-20 OMC (do qual Brasil e Índia são lideranças), topou acabar com os
subsídios à exportação por meio da PAC (Política Agrícola Comum, um acordo
costurado nos anos 1960) até o final de 2013. A Índia vetou. Em 2008, foi feita
uma última tentativa: para países em desenvolvimento, seria permitida a
aplicação de salvaguardas comerciais sem necessidade de comprovação do uso de
subsídios ou outras práticas ilegais de comércio do tipo “Amber Box” (na
linguagem da OMC), bastando que houvesse variação anual de importações de bens
agrícolas acima de 40% em um ano. Porém, na undécima hora, a Índia bloqueou as
negociações ao exigir que esse valor fosse de 10%, em um episódio conhecido
como “Quase” da Rodada Doha.
Em 2013, na Reunião Ministerial
de Bali, restando claro que não haveria progressos na Rodada Doha por conta da
posição indiana, Roberto Azevêdo conseguiu aprovar um bem modesto e simples
pacote de facilitação de comércio. A Índia não fez nenhuma objeção a um
conjunto de práticas comezinhas (unificação de regras alfandegárias, criação de
cadastros padronizados etc.) que poderiam impulsionar o comércio mundial sem
afetar o status quo das grandes pautas: agricultura, serviços, investimentos
etc. Na verdade, a Índia anunciou sua posição final apenas no dia da
assinatura. Não que a Índia não queira a facilitação de comércio. Na verdade,
os indianos estão usando o negociado em Bali para conseguir arrancar dos demais
países as concessões que não conseguiram no seio da Rodada Doha. E, assim, o
comércio mundial fica refém de um país e sua agenda, por mais justificável que
seja sob a ótica de sua política interna: a Índia quer que seus subsídios a
estoques reguladores de alimentos (da ordem de mais de 50 bilhões de dólares)
não sejam contados como tal, enquanto os subsídios dos outros países não apenas
sejam considerados “Amber Box”, como também seja permitido a ela adotar as
salvaguardas a partir da variação de 10%. Na prática, a Índia segura uma
negociação do mundo todo para fazer com que o mundo todo atenda às suas
demandas particulares. O problema é que isso simplesmente não funciona: com a
OMC em vias de completar duas décadas sem ter realizado um único acordo
relevante, o mundo (à exceção do Brasil e seus coleguinhas bolivarianos) está
simplesmente circum-navegando sua sede em Genebra e realizando acordos
bilaterais (Colômbia, Chile, Coreia do Sul e outros com os EUA), regionais
(Aliança do Pacífico) e internacionais (Acordo Transatlântico e Acordo
Transpacífico) para incrementar o comércio. Se não conseguir aprovar uma mera
facilitação de comércio por causa da Índia, a OMC ficará relegada à
insignificância por muito tempo. E assim, Narendra Modi, que foi celebrado como
um político pró-mercado moderado quando assumiu o poder na Índia, pode entrar
para a história como o coveiro da OMC. Que ela descanse em paz.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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