Por Pedro Nascimento Araujo
Não foi há muito tempo. Em
2005, quando um estarrecido Brasil começava tomava conhecimento do Mensalão,
seu delator, o então deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ), disse uma
daquelas raras frases que se tornaram clássicos instantâneos: “Sai daí, Zé! Sai
rápido!” O Zé de 2005 era José Dirceu, então todo-poderoso Ministro-Chefe da
Casa Civil da Presidência da República. José Dirceu foi o mentor do “Lulinha,
Paz & Amor”, reencarnação de Lula da Silva palatável ao eleitorado moderado
(e, portanto, majoritário), oposição direta ao Lula da Silva raivoso e
sectário, apodado anteriormente de “Sapo barbudo” por Leonel Brizola, em outro
raro caso de clássico instantâneo. Deu certo: após perder três eleições
seguidas (1989, 1994 e 1998, sendo as duas últimas derrotas em primeiro turno),
finalmente Lula da Silva ascenderia ao Palácio do Planalto. O plano de Dirceu
era claro: após eleger Lula da Silva, ele iria comandar toda a máquina estatal
e, tal e qual uma Dilma Rousseff avant la lettre, faria “o diabo” para
eleger-se. Então, não apenas deixou clara sua paradoxal condição de eminência
parda às claras (exemplo didático: Dirceu mudou o cerimonial do Palácio do
Planalto para que o primeiro ministro a entrar após o Presidente da República
em qualquer cerimônia passasse a ser o titular da Casa Civil, não por acaso a
pasta que ele ocupava, fato que o levou a ganhar a óbvia alcunha de
Primeiro-Ministro – algo que o agradava sobremaneira), como também arquitetou o
Mensalão, fonte primordial de sua queda espetacular meros dois dias após o
impagável “Sai daí, Zé!” de Roberto Jefferson no depoimento à Comissão de Ética
da Câmara dos Deputados. A crise que se seguiu foi pesadíssima: Lula da Silva
cogitou renunciar, mas uma combinação de popularidade ainda elevada, oposição
mesquinha e situação econômico-financeira favorável foi o suficiente para
mantê-lo vivo – para tanto, foi crucial que a cabeça do Zé fosse rapidamente
servida em uma bandeja de prata. Quase uma década depois, quando a nação se dá
conta de que o Mensalão mais se parece com um caso para Juizado de Pequenas
Causas diante do Petrolão, eis que surge o Zé de 2015, com potencial para
tornar longa e perigosa uma crise política potencialmente maior do que o Mensalão,
uma vez que a combinação de fatores que manteve a cabeça de Lula da Silva presa
ao seu diminuto pescoço não se repete para Dilma Rousseff: José Eduardo
Cardozo, atual Ministro da Justiça, é o Zé de 2015. E é muito parecido com José
Dirceu, o Zé de 2005.
Algumas coisas na vida são tão
corriqueiras que acabam se tornando quase certezas inexoráveis. Do mesmo modo
que a noite vem depois do dia e o verão vem depois da primavera, aparentemente
o PT sempre sai de uma crise para entrar em outra crise ainda maior; a bem da
verdade, é bom que se registre que todas as crises que afligiram o PT foram
criadas pelo próprio PT – e não é diferente com o Petrolão. E, assim como os
seres vivos nascem e morrem, em toda nova crise há uma personagem do PT de
plantão para piorar o que parecia impossível de piorar – o Zé do ano. Voltemos,
portanto, a José Eduardo Cardozo, o Zé de 2015. Tratava-se de um político em
ascensão, percebido como um dos melhores quadros do PT, um homem moderado, com
capacidade de consenso e atuação respeitada mesmo pela oposição, muito por
causa da maneira serena como atuou na sub-relatoria da CPI dos Correios.
Cardozo parecia ser o que havia sobrado daquele PT que fez milhões de
brasileiros sonharem com um governo responsável, consciente e honesto –
infelizmente, valores que ficaram faltando nos governos do PT. Apenas parecia.
Foi flagrado recebendo em seu gabinete o advogado de um Ricardo Pessoa, o preso
da Operação Lava-Jato com maior potencial de explodir o governo do PT: dono da
empreiteira UTC, Pessoa era o chefe do autointitulado “Clube do Bilhão”,
convescote de empreiteiros e políticos cuja única função era roubar a Petrobras
e outras empresas controladas pelo governo do PT. Pateticamente, negou; depois,
quando não foi mais possível negar, admitiu e disse que o encontro foi
“casual”. Cardozo partiu da premissa de que 200 milhões de brasileiros são
idiotas com essa declaração – ele partiu da premissa de que 200 milhões de
brasileiros são muito, muito, mas muito idiotas mesmo. Um acinte. Só essa
prepotência já deveria ser motivo para um sujeito que trata o povo dessa
maneira ser escorraçado da titularidade do Ministério da Justiça aos gritos de
“Sai daí, Zé! Sai rápido!”, mas há mais, muito mais. Já há declarações de
pessoas do Petrolão garantindo que foi o Zé de 2015 quem procurou o advogado de
Ricardo Pessoa para tentar impedir que o dono da UTC, um corrupto confesso que
está em vias de fechar um acordo de delação premiada, desistisse de colaborar
com a Justiça. O objetivo do Zé de 2015 é proteger próceres do seu partido, nem
que, para isso, corruptos saiam ilesos de seus crimes. Inacreditável, não fosse
pelas declarações à imprensa de pessoas próximas às partes envolvidas
garantindo que o Zé de 2015 realmente prometeu a liberdade a Pessoa. Trocando
em miúdos, estamos vivendo a pateticamente surreal situação que se segue: o
Ministro da Justiça está se comprometendo a trabalhar para impedir a Justiça de
trabalhar! Isso é inadmissível.
O plano do Zé de 2015 fez
água. Conforme mais detalhes de suas intervenções para livrar Ricardo Pessoa da
prisão e outros forem sendo vazadas para a imprensa (acredite, Zé!, elas
sê-lo-ão), José Eduardo Cardozo ficará cada vez mais na berlinda. Não há como
dar certo, e não é apenas pelo fato de ter vazado: Ricardo Pessoa tem medo,
muito medo. O grande legado pedagógico da queda espetacular do Zé de 2005 foi
esse: enquanto ele, a exemplo dos demais integrantes do núcleo político do
Mensalão está em uma confortabilíssima prisão domiciliar, o núcleo empresarial
ainda apodrece na cadeia; pior, com uma pena de mais de 40 anos, o notório
Marcos Valério tem chances reais de ficar preso até o final dos seus dias.
Nenhum dos empreiteiros presos há meses na Operação Lava-Jato quer se arriscar
a ser o Marcos Valério do governo Dilma Rousseff – donde emana a disposição
onipresente de costurar acordos de delação premiada, como já fizeram alguns,
dentre eles Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, peixes grandes. A última
coisa que o governo precisa é de um Ministro da Justiça todos os dias nos
jornais tentando explicar o inexplicável. É impressionante como o PT insiste em
trocar suas telhas de aço por telhas de vidro sem razão aparente – parece que o
partido gosta de vê-las sendo espatifadas. Aliás, se Lula da Silva ainda
conservasse um pouco da argúcia de antanho, já teria derrubado espetacularmente
o Zé de 2015, como o fez com o Zé de 2005. Entregá-lo-ia aos leões rapidamente,
para evitar manchetes diárias tratando da vida dupla do Ministro da Justiça: o
Zé promove a Justiça para com uma mão e bloqueia a Justiça com a outra. O
Petrolão já suficientemente grave per se, mas o PT consegue torná-lo ainda pior
ao manter José Eduardo Cardozo no Ministério da Justiça. Ele simplesmente não
tem mais condições políticas de sentar-se naquela cadeira. Na prática, enquanto
ele ainda estiver lá, sua atuação será assunto preferencial na imprensa e a
desconfiança generalizada de que o governo do PT patrocina tentativas de
obstrução da Justiça – por sinal: isso é crime, Zé! – não cessará. O PT parece ter
uma patológica atração por cordas: sempre que uma se coloca em seu caminho, o
partido não a usa para escalar a montanha à frente – prefere se enforcar. José
Eduardo Cardozo deveria se lembrar de Roberto Jefferson e José Dirceu: “Sai
daí, Zé! Sai rápido!” Não é por falta de conselhos que ele resolveu se entregar
a uma sangria inútil. Francamente, não dá para entender porque o Zé de 2015
quer tanto repetir o Zé de 2005.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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