Por
Pedro Nascimento Araujo
Em 15 de março deste ano,
comemoraremos o marco do início da VI República (soi-disant Nova
República): a posse do primeiro Presidente da República civil desde 1960 – que
deveria ter sido Tancredo Neves, mas, como a doença o venceu antes de ele
assumir, o cargo acabou ficando com José Sarney. Apesar do gosto amargo
inicial, a posse de Sarney marcou o reinício da democracia no Brasil – e,
justiça seja feita, em que pesem todos os erros de seu governo, o maranhense
que Glauber Rocha retratou como a esperança de um futuro melhor fez a transição
democrática de forma limpa. Obviamente, a história política brasileira nessas
três décadas é mais do que conhecida; por isso, talvez mais interessante seja
observar como a sociedade mudou entre 1985 e 2015. Não falamos aqui de
tecnologia ou de modismos. Falamos de um amadurecimento muito mais sutil – e
muito mais poderoso: o amadurecimento social. A tese central é a seguinte: o
que era aceito há 30 anos não é mais aceito hoje. E não falamos de coisas
básicas, como a proibição de fumar em locais fechados ou a consolidação dos
direitos do consumidor. Falamos de algo mais imperceptível, porém mais forte: a
pressão social como meio de impedir abusos. Coisas que eram corriqueiras há 30
anos são inaceitáveis atualmente. Curiosamente, como 30 anos são bastante pouco
tempo, ainda há pessoas vivendo em 2015 com o modelo mental de 1985 – e sendo
punidas por isso. É curioso como há pessoas que pararam no tempo, mas não é tão
incomum assim. Na verdade, há, na ciência, um padrão bem claro acerca da
aceitação de teorias revolucionárias: se hoje coisas como a teoria da evolução,
a teoria da relatividade e mesmo o heliocentrismo soam como arroz de festa,
invariavelmente, quando surgiram, todas elas demoraram bastante para ser
aceitas. A explicação favorita dos cientistas tem um quê de cinismo e muito de
sabedoria: as novas teorias passavam a ser aceitas conforme seus opositores
morriam. Em outras palavras: conterrâneos de Copérnico, Darwin e Einstein não
aceitavam suas proposições porque, para eles, eram contrárias ao modelo que
tinham em suas mentes; então, ao invés de conhecer as novas ideias e mudar de
opinião diante das provas irrefutáveis que lhes eram apresentadas, eles
simplesmente se aferravam ao passado de maneira irracional, conquanto
inconsciente. Como seus dogmas se provariam ultrapassados, eles simplesmente
não conseguiram formar seguidores e, conforme foram morrendo, suas convicções
morriam com eles – até que fossem relegadas para as notas introdutórias acerca
da evolução histórica das teorias que eles rejeitaram. Assim é a vida
científica. E assim também é a vida social. Escolhemos para exemplificar nossa
tese três pessoas que atuam em 2015 como se estivessem em 1985 três brasileiros
que frequentam as manchetes recentes por causa disso, cada um representando um
dos três Poderes da República: Eduardo Cunha (Poder Legislativo), José Eduardo
Cardoso (Poder Executivo) e Flávio Roberto de Souza (Poder Judiciário) não
perceberam que a sociedade brasileira mudou muito nos últimos 30 anos desde que
começou a VI República do Brasil. A sociedade evoluiu em seus costumes e eles
não: se o que eles fizeram nunca foi “normal”, como o juiz Souza tentou
pateticamente justificar seus atos, era, de certa forma, bastante usual e não
gerava problemas – em 1985, porque, em 2015, geram muitos. Quando vemos o que
acontece com quem age em 2015 como agiria em 1985, temos a certeza de que
evoluímos bastante como povo durante essas três décadas de VI República.
Comecemos pelo Poder Legislativo,
mais precisamente por Eduardo Cunha. O atual presidente da Câmara dos Deputados
ocupa o primeiro parágrafo porque foi dele a mais estapafúrdia iniciativa dos
últimos tempos: a chamada “Bolsa Esposa” [incidentalmente: a misoginia do
apelido diz muito sobre o Brasil], concessão de passagens aéreas para Brasília
custeadas pelos nossos impostos para cônjuges de parlamentares. Algo que teria
passado despercebido em 1985: geraria, no máximo, algumas manchetes de jornal,
que irritariam quem as lesse, mas não passaria disso; em 2015, com a internet
popularizada, deu origem a protestos na forma de abaixo-assinados eletrônicos
de toda espécie. Mais ainda: pressionados pela má repercussão, os mesmo
deputados que elegeram Cunha presidente da Casa exatamente com base em
propostas esdrúxulas como essa, tiveram de se fazer de inocentes no melhor
estilo Lula da Silva-Dilma Rousseff – e anunciaram em peso (bancadas inteiras,
tanto da situação quanto da oposição) que “renunciariam ao direito”, como se a
“Bolsa-Esposa” fosse um direito de fato e eles fossem almas franciscanas. Cunha
finalmente percebeu que não está mais vivendo em 1985 e recuou de pronto, dando
de ombros para a promessa que havia feito para seus próprios eleitores – e que
esses mesmos eleitores agora fingiam desconhecer. A pressão social nos dias
atuais inviabiliza tais abusos, que, de resto, podem ser feitos perfeitamente
dentro da lei; afinal, quem faz as leis são os próprios deputados. Porém, no
Brasil de 2015, não basta ser legal: é preciso ser também legítimo e ético. A
própria celeuma se dar em torno de passagens aéreas é, aliás, sintomática:
ainda na década passada, parlamentares de fora do Rio de Janeiro ainda recebiam
passagens para o Rio, como na época em que a capital ainda não estava
consolidada em Brasília. Aliás, como os gastos eram secretos, ninguém se
preocupava em anunciar que iria “renunciar ao direito” (na prática, deixar de
locupletar-se para não perder votos, algo como deixar de ganhar anéis para não
perder os dedos) e mesmo pessoas consideradas próceres da retidão se esbaldavam
– o exemplo de livro-texto é Fernando Gabeira, cuja filha, uma surfista de
classe mundial, ia treinar no Havaí com a cota de passagens pagas pelos
impostos dos brasileiros para seu pai. Sem dúvidas, um enorme salto desde os
tempos de 1985, quando, além das passagens, havia o pagamento de jeton – para
quem não se lembra: os políticos recebiam um adicional ao salário quando
cumpriam seu dever mais básico: comparecer ao trabalho; hoje, é inconcebível
alguém sequer propor tal coisa. 2015 um, 1985 zero.
Seguimos com o Poder Executivo. A
atitude de José Eduardo Cardoso no Petrolão é outro exemplo lapidar de como os
costumes mudaram nos últimos 30 anos. Tráfico de influência como o que Paulo
Roberto Costa fazia na Petrobras existe desde que o mundo é mundo;
decididamente, não foi criado por ele. Muitos antes de ele ficar milionário,
outros também o fizeram – e escaparam; mas, na VI República, foi ficando cada
vez mais difícil a vida dos corruptos. A VI República não tem esse nome à toa:
a cada constituição, há uma nova República: 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 foram
as cinco anteriores. A Carta de 1988 não apenas legitimou a VI República, como,
entre muitos equívocos (bem-intencionados, mas equívocos), teve belos acertos
decorrentes do aprendizado com as experiências de suas antecessoras – dentre
eles, a criação do Ministério Público. As ações propostas pelo Ministério
Público mudaram completamente o combate à corrupção no Brasil, mas,
principalmente, levaram as pessoas a acreditar que a impunidade não é um mal
absoluto e invencível. A Operação Lava-Jato é apenas o exemplo mais recente do
movimento de combate à corrupção que já tem expoentes como a Lei da Ficha Limpa
(um exemplo inspirador de pressão popular que levou os políticos a ter de
cortar na própria carne – em tempos de internet, se posicionar contra uma
iniciativa dessas equivale cometer a seppuku político) e o Mensalão,
que levou à prisão da cúpula do PT quando o partido governava o país. Aliás, do
Mensalão surgiu o fato mais premente para a delação premiada de Costa e outros:
ao final das contas, os líderes políticos estão em prisão domiciliar, enquanto
os demais, a exemplo de Marcos Valério, ainda ficarão encarcerados por muitos
anos. A pressão social contra malfeitos políticos é tão grande hoje que
corruptos notórios simplesmente não podem frequentar lugares públicos. José
Roberto Arruda, ex-governador do Distrito Federal preso no exercício do cargo,
passou a fazer suas viagens de carro por medo de ser hostilizado por populares
em aviões de carreira. José Dirceu foi vaiado e xingado em restaurantes no
Brasil e no exterior antes mesmo de ser condenado formalmente por corrupção,
assim como muitos outros; na prática, esses corruptos começaram a pagar suas
penas de privação de liberdade antes mesmo de ir para a cadeia: eles
simplesmente não poderiam mais gastar o fruto do roubo em viagens,
restaurantes, boutiques etc. Com o Petrolão, a marcação social ficou maior:
José Eduardo Cardozo, atual ministro da Justiça, já está sob suspeição por ter
recebido (fora da agenda oficial, diga-se) advogados de empreiteiros presos na
Operação Lava-Jato. Cardozo não está errado quando diz que fez o que seus
antecessores faziam, e que isso não prova nada. É verdade. Em 1985 era assim;
em 2015, não. É a velha história da mulher de César, ministro: não basta ser
honesto, tem de agir como honesto também. Receber partes interessadas em suas
decisões de maneira sub-reptícia é inaceitável em 2015. Cardozo tanto sabe
disso que ele ainda negou o encontro antes de, confrontando com os fatos, ter
de admitir – e, então, passou a defender a tese de receber advogados de uma
parte interessada sem comunicação formal e sem agenda pública seja “normal”,
uma vez que, sempre segundo ele, o encontro em seu gabinete foi “ocasional”
(essa declaração é particularmente um acinte) e nada do interesse dos réus
tivesse sido discutido (outra ofensa à inteligência popular). Com a cabeça de
1985, José Eduardo Cardozo comanda o ministério da Justiça. Não pode dar certo.
Aliás, se ele tem o mínimo de bom-senso, já deve estar evitando restaurantes –
e eis uma coisa que seria impensável em 1985: um ministro que foi flagrado em
conduta no mínimo imprópria evitando restaurantes por medo de ser vaiado. 2015
dois, 1985 zero.
Por fim, o mais caricato dos
casos de cabeça de 1985 em 2015 vem do Poder Judiciário. Enquanto o Poder
Legislativo cria as leis que o Poder Executivo tem de seguir em todas as suas
ações, cabe ao Poder Judiciário o papel de garantir que nenhum dele extrapole
suas funções ou falhe no cumprimento delas. Se dependêssemos apenas de figuras
como Flávio Roberto de Souza, estaríamos em sérios apuros. Para quem ainda não
ligou o nome à pessoa, Souza era (já foi devidamente afastado) o juiz federal
responsável por alguns processos contra Eike Batista, especificamente por
fraudes contra o sistema financeiro: manipulação de mercado e uso indevido de
informação privilegiada em proveito próprio. Acusações graves, que merecem uma
apuração absolutamente isenta por parte da justiça. E o que fez o sujeito em
tela, de quem se esperava uma condução que levasse ao julgamento correto de um
homem poderoso? Não apenas ele deu declarações incompatíveis com sua suposta
isenção no julgamento do réu, como também foi flagrado dirigindo um carro de
Batista que mandou apreender – e que guardava em sua própria garagem! Só mesmo
achando que ainda está em 1985 para fazer isso: com a internet disponível em
qualquer smartphone, não demora nada para que alguém fotografasse o garboso
passeio do juiz em um Porsche Cayenne. Para variar, a mesma explicação: Souza
disse que era “normal” fazer isso. Não, senhor juiz Souza, não é normal.
Poderia ser comum, usual, costumeiro mesmo – em 1985; em 2015, ninguém mais
aceita esse tipo de comportamento. O Brasil evoluiu durante a VI República, mas
o juiz Souza continua com o modelo mental da V República. É um caso exemplar,
mas, infelizmente, não é tão raro quanto gostaríamos. Particularmente no Poder
Judiciário, ainda há muitas pessoas que se sentem acima da lei. Evidentemente,
não estão – e a sociedade, cada vez mais, deixa isso claro. Casos de juízes que
abusam de seu poder podem ser caricatos (um caso particularmente lendário é o
de Antonio Marreiros da Silva Melo Neto, um juiz de Niterói, que exigiu na
justiça que os empregados do seu condomínio chamassem-no “Doutor” ou
“Excelência” – o caso de Melo Neto chegou a parar no Supremo Tribunal Federal
em 2014, quando foi indeferido), mas são mais do que ridículos: são sintomas de
atraso do país. Vamos relembrar dois sos casos mais notórios de tentativas
patéticas de carteiradas por parte de juízes nos últimos meses. Em
Imperatriz (Maranhão), o juiz Marcelo Baldochi foi afastado após ter dado ordem
de prisão a atendentes de uma companhia aérea (TAM) que se recusaram a mandar
um avião abrir as portas para que ele, que chegou atrasado, não perdesse o voo.
Há um detalhe importante: pela lei da aviação, uma vez que o comandante de um
avião feche as portas, o voo é considerado iniciado; abri-las significa o fim
do voo, e todo o procedimento de desembarque, limpeza (inclusive descarte de
todas as refeições) etc. tem de ser refeito; para o juiz, isso não importava,
pois ele queria embarcar. Então, Baldochi deu voz de prisão a três empregados
da TAM usando uma frase que demonstra bem o desprezo com que os tratava: “Quietinho,o
senhor está presinho!”, disse o juiz. Talvez, ao saberem disso, poucas pessoas
tenham ficado surpresas quando se divulgou que Baldochi havia sido condenado em
2007 por manter 25 empregados em condição análoga à escravidão em uma fazenda
de sua propriedade em Açailândia (Maranhão). Outro caso notório recente
envolveu o juiz João Carlos de Souza Correa, que ficou conhecido nacionalmente
após dar voz de prisão a uma agente de uma blitz da Operação Lei Seca no Leblon
(Rio de Janeiro) em 2011. Eis o ocorrido: Correa estava sem documentos em um
carro sem placa; ainda assim, tentou sair incólume dizendo que, por ser juiz,
não precisava se submeter àquilo. Típica cabeça de 1985. A agente retrucou que
ele era juiz, não Deus, e, portanto, seria multado. Correa, então, disse que
poderia prendê-la se quisesse. Ao ouvir como resposta algo do tipo “Vai ter de
me prender, porque eu não vou deixar de multá-lo!”, ele deu voz de prisão à
agente; aliás, Freud deve explicar essa sanha de mandar prender que alguns
juízes parecem ter. Correa parecia ter vencido, mas foi vitória de Pirro:
quando seus colegas desembargadores resolveram fazer a agente Luciana Silva
Tamburini indenizar Correa por abuso de poder (dela, não dele!), o caso ganhou
as manchetes e populares levantaram mais de dez vezes o valor necessário (cinco
mil reais) para o pagamento da multa. Para Correa, a notoriedade decorrente de
ganhar a briga judicial contra a agente de trânsito foi um mau negócio: casos
anteriores suspeitos envolvendo a conduta dele em Armação dos Búzios foram
reabertos, assim como a hostilidade popular. Em suma, a carreira de Correa
acabou. Assim como a de Baldochi. E assim como a de Souza, o juiz que
escolhemos como exemplo. Três juízes com a cabeça de 1985 descobriram da pior
maneira que o Brasil mudou. 2015 três, 1985 zero. Placar final.
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