Por
Pedro Nascimento Araujo
Omar al-Bashir é o ditador do
Sudão desde 1989. Quando ele tomou o poder, o Muro de Berlim ainda estava de
pé. O tirano sudanês tem um ineditismo em sua ficha corrida: foi o primeiro
supremo mandatário de uma nação no exercício do mandato a ser condenado pela
Tribunal Penal Internacional (TPI). As acusações que pesam contra ele são as de
crime de guerra, crime contra a humanidade e genocídio cometidos na região
separatista de Darfur de 2003 a 2011 – uma missão de paz da ONU (a maior da
organização internacional) mantém o frágil equilíbriona região, palco de
atrocidades que podem ter vitimado mais de 500 mil pessoas. Desde 2009, há
ordens de prisão expedidas contra ele para todos os 123 países que são parte do
Tribunal Penal Internacional. Dentre esses países, está a África do Sul. Na
semana passada, houve uma cúpula da União Africana em Pretória (capital do
Poder Executivo e, por extensão, da diplomacia sul-africana: o país possui
ainda na Cidade do Cabo a capital do Poder Legislativo e em Bloemfontein a capital
do Poder Judiciário) que contou com a presença de Omar al-Bashir. Pelo Costume
Internacional, um chefe de estado tem imunidade absoluta perante os tribunais
internos de outros países e, por isso, ele não poderia ser preso por ordem da
justiça sul-africana. Por outro lado, não há imunidade perante um tribunal
internacional como o TPI de acordo com seu próprio o regulamento (mais
conhecido como Estatuto de Roma) – e a África do Sul é estado-parte do TPI.
Demorou, mas finalmente o Costume Internacional e o Estatuto de Roma entraram
em choque: a justiça sul-africana ordenou a proibição do retorno de Omar
al-Bashir para o Sudão, ordenando ao governo que o entregasse à custódia do
TPI. Se cumprir a ordem judicial, o ato unilateral do presidente Jacob Zuma pode
começar a surgir uma mudança histórica no Costume Internacional.
Omar al-Bashir não era o único
pária internacional na cúpula da União Africana. Em um continente que se
notabiliza por ditadores folclóricos, estavam lá nomes como Robert Mugabe
(ditador do Zimbabwe desde 1987), que fez um discurso solicitando aos países
africanos que renunciassem ao TPI. Mugabe e al-Bashir foram oficialmente
convidados para ir a Pretória pelo governo de Jacob Zuma, o que lhes conferiria
a imunidade dada pelo Costume Internacional. Assim, Zuma não poderia
simplesmente resolver mudar de ideia, transformando a visita ao seu país em uma
armadilha para tiranos. Todavia, ontem, quando o juiz Hans Fabricius da Suprema
Corte da África do Sul expediu uma liminar impedindo a saída de al-Bashir do
país baseado no compromisso assumido pela África do Sul com o Estatuto de Roma,
Jacob Zuma recebeu passe livre para optar entre cumprir o Costume Internacional
ou o Estatuto de Roma. Essa pode parecer uma filigrana jurídica de baixa
importância, mas não o é. De acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados (1969) não há prevalência entre fontes do Direito Internacional, o
que faz com que o Costume Internacional e o Estatuto de Roma sejam
equivalentes. Por isso, a importância da decisão de Zuma: se ele optar pelo
Costume Internacional, isso significa que tiranos como Omar al-Bashir e outros
(dentre eles, Bashar al-Assad da Síria, Robert Mugabe do Zimbabwe, José Eduardo
dos Santos de Angola, Teodoro Obiang da Guiné Equatorial etc., apenas para não
sair da África) poderão continuar a viajar para o exterior sem maiores
preocupações. Todavia, se Jacob Zuma cumprir a determinação liminar da justiça
de seu país e entregar Omar al-Bashir para o TPI, privilegiando o Estatuto de
Roma, seria um passo inequívoco no sentido de que ninguém está a salvo do TPI –
em última análise, da justiça humana.
Na verdade, Zuma está diante da
escolha que vai definir o seu legado para a posteridade. Não há razões para
otimismo, todavia: o próprio presidente vem-se referindo ao TPI como um
“instrumento de ação imperialista” contra a África, deliberadamente ignorando
que o continente é pródigo em criar ditadores longevos. As palavras de Nelson
Mandela quando eleito para a presidência do país se perderam no tempo: ele
disse que os Direitos Humanos seriam o “farol” que guiaria as ações de política
externa do país. A África do Sul, na verdade, vem-se aproximando de violadores
contumazes de Direitos Humanos nas votações na Organização das Nações Unidas,
como China e Rússia, na defesa de outros violadores contumazes, como Irã e
Cuba. A visão de Mandela previa tornar a África do Sul um “cidadão global
exemplar” para purgar os pecados das décadas de Apartheid. Se optar por
defender um criminoso como Omar al-Bashir, Zuma sofrerá pressões internacionais
crescentes – a rigor, a África do Sul pode mesmo ter sua responsabilidade
avaliada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU); todavia, isso é
improvável porque China e Rússia certamente vetariam quaisquer ações contra o
país de Zuma. Está nas mãos de Jacob Zuma começar ou não a mitigar um Costume
Internacional que remonta a priscas eras e que garante que mesmo os piores
genocidas do mundo podem se livrar do julgamento perante o Tribunal Penal
Internacional, bastando para isso que estejam investidos do cargo de chefe de
estado. Se Zuma optar por entregar Omar al-Bashir para ser julgado pelo TPI
conforme manda o Estatuto de Roma do qual a África do Sul é estado parte e
conforme determinou a Suprema Corte de seu país, outros pensarão duas vezes
antes de pisar em solo de países que são parte do Estatuto de Roma: a chance de
entrega passará a pairar sobre as cabeças deles como uma espada de Dâmocles.
Que genocidas não tenham direito a expor suas impunidades diante do mundo é o
mínimo de respeito que a humanidade merece. Mais cedo ou mais tarde, o Costume
Internacional vai se modificar para não mais aceitar imunidade para chefes de
estado com prisão solicitada pelo TPI. A Jacob Zuma é dada a chance de ser o
pioneiro e, com isso, escrever seu nome na história de forma melhor do que até
agora: pesadas suspeitas de corrupção, um processo por estupro e um patético
caso de poligamia – ele tem quatro esposas, pelas quais pagou dotes
medievalmente. Decididamente, Jacob Zuma se prende a usos e costumes antiquados
e ruins em sua vida pessoal. Só nos resta torcer para que ele não faça o mesmo
em sua vida pública.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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