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Obama prefere Brandeis ou Bush?




Por Pedro Nascimento Araujo

Barack Obama é um político sui generis. Sua eleição teve um valor simbólico fenomenal: primeiro negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos, Obama representava a consagração dos direitos civis pelos quais homens como o pastor Martin Luther King Jr. haviam lutado e morrido. Além disso, Obama também acenava com a retomada da liberdade e da transparência, valores basilares da sociedade americana que seu antecessor George W. Bush havia solapado na esteira do 11 de Setembro. Por isso, é ainda mais lamentável que o CRRC (Centro de Pesquisa de Documentos de Guerra, ou Conflict Research Record Center no original em inglês), um repositório de documentos recuperados por tropas americanas no Iraque e no Afeganistão, esteja sendo fechado na administração de Barack Obama. Seria um passo decisivo rumo ao obscurantismo. Como bem ensinou Louis Brandeis, legendário juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, a luz do sol é o melhor desinfetante que existe. Trazer a público documentos secretos é algo que fortalece qualquer sociedade, principalmente as democráticas. Obama se elegeu, dentre outras coisas, para retirar os entulhos autoritários e antitransparência de seu antecessor George W. Bush. Os Estados Unidos precisam de mais Brandeis e de menos Bush. Apesar das nada desprezíveis escorregadas na arapongagem, Barack Obama sempre pareceu mais próximo daquele do que deste. Porém, a iminência do fechamento do CRRC coloca no colo do presidente americano a decisão final: Obama prefere Brandeis ou Bush?

O CRRC foi uma iniciativa de Robert Gates durante seu período como Secretário de Defesa. Faz parte de um amplo programa chamado Iniciativa Minerva de 2008, por meio do qual o sistema militar americano abriria seus arquivos para pesquisas em colaboração com civis. Subordinado ao Pentágono, ao CRRC competia, em linhas gerais, tornar públicos arquivos referentes aos governos de Saddam Hussein no Iraque e do Taliban no Afeganistão para pesquisadores civis. Mais do que isso, a ideia de Gates era apresentar a visão do outro lado de cada conflito, com planos de disponibilizar para todos os documentos de outros países que os EUA combateram em poder do Pentágono, cuja expansão poderia incluir casos como o do Panamá de Noriega, invadido em 1989. Na verdade, o CRRC ainda não chegou a traduzir e disponibilizar 10% do que possui. E o muito pouco que já está disponível é ouro em estado bruto. A maior parte do já disponível trata do Iraque. Por exemplo, por meio áudios de reuniões de Saddam Hussein com seus colaboradores mais próximos mostram que, em 1979, o ditador iraquiano se preparava para uma guerra contra Israel com o objetivo de tornar-se líder inconteste de todos os países árabes – e, em consequência, uma espécie de califa. No mesmo encontro, disse que seria necessário antes mostrar aos EUA que defender Israel seria um atoleiro inviável. Com nível de paranoia capaz de rivalizar com Stálin, Saddam estava convencido de que era alvo o dos americanos no Oriente Médio, apesar de todas as evidências em contrário, como o apoio que recebeu de Washington durante a guerra contra o Irã. Saddam delirava: em gravações, afirma ter certeza de que os americanos haviam apoiado Khomeini (cuja revolução foi apoiada por Moscou) contra o Xá, aliado de longa data da Casa Branca. Aliás, Saddam reescrevia a história de acordo com suas conveniências: embora ele tenha sido o invasor do Irã em setembro de 1980, mandou sua mídia estatal divulgar que Teerã invadiu o Iraque seguindo ordens de Washington. Documentos como esses mostram que os conflitos iniciados em 1990 (Guerra do Golfo) e 2003 (Guerra do Iraque) já eram divisados por Saddam nos anos 1970 e que a situação piorou nos anos 1980, quando a imprensa americana revelou um escândalo conhecido como Irã-Contras (comandado pelo coronel Oliver Norht durante o governo de Ronald Reagan, era o financiamento clandestino de ajuda aos antissandinistas via da venda ilegal de armas aos iranianos), que foi considerado por Saddam como prova cabal de um plano americano para acabar com ele.

O poder de revelações que tais arquivos podem proporcionar é enorme. Somente do Iraque há mais de 50 mil páginas de documentos e 200 horas de gravações capturados no Iraque. A iminência do fim do CRRC exatamente quando Obama manda “consultores militares” para o Iraque para combater o Isis torna a decisão ainda mais estapafúrdia – ainda mais quando se sabe que “consultores militares” é uma variação da abordagem inicial americana para o que viraria o atoleiro conhecido como a Guerra do Vietnam, talvez maior vitória pírrica da história: cinquenta mil mortos do lado americano e cinco milhões mortos do lado vietnamita apenas para evitar que o Vietnam do Norte invadisse o Vietnam do Sul, o que ocorreu apenas dois anos após a retirada das tropas, malgrado o compromisso que o Vietnam do Norte assumiu de não fazê-lo na conferência de paz que pôs fim ao conflito. Por meio do CRRC, há como vislumbrar claramente o surgimento do Isis no Iraque. Saddam esteve em contato com a Irmandade Muçulmana em 1991. O sudanês Hassan al-Turabi, um dos líderes do grupo, visitou o Iraque e propôs que Saddam se tornasse publicamente um defensor internacional do salafismo como forma de ter o apoio da organização e de jihadistas internacionais. A Irmandade Muçulmana, perseguida implacavelmente pelo Partido Ba’ath de Saddam (incidentalmente, o mesmo da ditadura dinástica do al-Assad na Síria) no Iraque, passou a ser tolerada. Com a queda de Saddam, lideranças locais da Irmandade Muçulmana viriam a criar o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, ou, simplesmente, Isis. Voltando à Guerra do Golfo, os documentos mostram que Saddam sabia que uma resposta ocidental viria, mas que ele pensava que um bombardeio não produziria efeitos práticos – chegou a dizer que não tem “medo de aviões como os panamenhos” e que nunca havia visto aeronaves decidirem um conflito. Julgando-se apoiado por todos os árabes, Saddam simplesmente não acreditava que a Arábia Saudita pudesse oferecer seu território para tropas e bases aéreas invadirem seu país. Livros importantes foram escritos com base no material disponibilizado pelo CRRC, como The Saddam Tapes (Kevin Wood) ou Iraq in Wartime (Dina Khouri). São obras que mudaram a maneira como o Iraque de Saddam Hussein é entendido, exatamente por juntar documentos e conversas do ditador iraquiano. Por meio desses documentos, sabemos que Saddam Hussein buscou o apoio de Yasser Arafat meses antes da invasão do Kuwait dizendo que seria uma forma de “derrotar” os americanos antes de “expulsar” os israelenses do Oriente Médio. Não se sabe a resposta de Arafat pelos documentos até agora apresentados.

É particularmente preocupante que Barack Obama não se sensibilize pelo destino do CRRC. O custo anual de manter e processar os arquivos é de um milhão de dólares – a título de comparação, o orçamento anual do Pentágono é da ordem de 60 bilhões de dólares. Assim, não é errado dizer que, pelo custo de um míssil daqueles jogados diariamente sobre alvos do Isis no Iraque, seria possível manter o CRRC funcionando por um ano. Como o Congresso não aprovou o ridículo milhão, o CRRC deve fechar as portas no último dia de setembro deste ano e seus documentos deverão ser enviados para o Arquivo Nacional. É um destino cruel: no Arquivo Nacional, serão classificados como “secretos” por 25 anos pelo menos. Além disso, somente seriam liberados os arquivos em inglês, uma vez que a Lei de Liberdade de Informação não se aplica aos originais em árabe que ainda não foram traduzidos – o tal 90% do material, exatamente o que permitiria conhecer de dentro as decisões de Saddam no Iraque e do Taliban no Afeganistão. A perda de tão valiosa memória é lamentável em um momento no qual o Isis domina a agenda do terrorismo internacional e é a grande ameaça à duramente conquistada democracia e extremamente frágil estabilidade multirreligiosa iraquiana. Barack Obama não se pronunciou de forma clara sobre o assunto, nem parece disposto a fazê-lo. Para um presidente que se elegeu criticando fortemente as ações de seu antecessor que impediam o acesso à informação por meio do Freedom Act, impedir que os americanos conheçam o outro lado da história no Afeganistão e no Iraque é, no mínimo, um contrassenso monumental. Espera-se que ele reveja sua posição e não apenas mantenha o CRRC vivo em 2015, mas também o mantenha operacional para sempre, com orçamento próprio e com autonomia para expandir sua atuação para outros conflitos. Obama tem 90 dias para não manchar sua biografia com uma aliança tática com o obscurantismo. É o momento de ele deixar claro com ações – e não com discursos – se prefere Brandeis ou Bush.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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