Por
Pedro Nascimento Araujo
“E la nave va” é o título de um
dos mais interessantes filmes do diretor italiano Federico Fellini.
Basicamente, trata-se de uma alegoria náutica sobre uma sociedade na qual os
desajustes são tão grandes e tão ululantes que, fatalmente, chegar-se-á a um ponto
de ruptura. Todavia, nenhuma das personagens principais no barco da película
parece entender o sofrimento das pessoas nas classes mais baixas: em uma das
passagens mais marcantes do filme, os passageiros da primeira classe (dentre os
quais, há um nobre austro-húngaro – o filme de 1983 se passa em 1914, pouco
após o atentado em que o sérvio Gavrilo Princip, ao matar o arquiduque
Francisco Ferdinando da Casa Habsburgo em Sarajevo, forneceria o estopim para a
eclosão da Grande Guerra) são convidados pelo capitão a conhecer as caldeiras
da grande nau. Em um local visivelmente insalubre, ao ser indagado sobre a
duração da jornada de trabalho, o capitão candidamente diz que os trabalhadores
ficam tanto tempo lá embaixo que adoecem quando têm de sair. A resposta surreal
não causa espécie em pessoa alguma e a visita às entranhas do gigante de aço
prossegue sem questionamentos, embora paire no ar a certeza de que algo muito
grave vai acontecer em breve. No filme italiano, era bem claro que se estava às
vésperas da maior guerra da história da humanidade e da ascensão do comunismo.
No Brasil do primeiro mandato de Dilma Rousseff, já era bem claro para um
observador atento que a Nova Matriz Econômica era uma receita perfeita para um
desastre. O desastre acabou de chegar, como se nota pelos ratos abandonando o
barco – dentre eles, o Rato Barbudo, como diria Leonel Brizola se vivo
estivesse.
Dilma Rousseff tem a maior
rejeição da história. Com apenas um em cada dez brasileiros aprovando sua
presidência de acordo com o Datafolha, não há caminho de volta para ela:
trata-se de um pato que claudicará por todo o seu segundo mandato. E a cada
tropeção em sua caminhada rumo ao abismo, Dilma Rousseff funciona como uma
lembrança viva para os eleitores de que Lula da Silva pediu ao povo para votar
nela, empenhando seu capital político no maior dos seus “postes”, como ele
próprio refere-se aos candidatos sem experiência ou capacidade que sacou de sua
cartola de prestidigitador. Ao não saber a hora de se aposentar da política,
ele derreteu sua popularidade: se, em 2010, simplesmente oito em cada dez
brasileiros aprovavam seu governo e sete em cada dez o consideravam o melhor
presidente de todos os tempos, apenas um lustro depois a situação é
completamente diferente: ainda de acordo com o Datafolha, o outrora imbatível
Lula da Silva atualmente não venceria uma disputa presidencial contra Aécio
Neves, ficando dez pontos percentuais atrás do tucano na intenção de votos.
Dilma Rousseff derrete e sua cera mancha o retrato de Lula da Silva. Apenas
Collor de Mello às vésperas de ser apeado do poder teve rejeição comparável
àquela de Dilma Rousseff hodierna. Obviamente, assim como aconteceu com Collor
de Mello, basta uma fagulha para que um processo de impeachment contra
Dilma Rousseff não apenas seja iniciado, como também seja aprovado – e a
reprovação das “pedaladas” fiscais em seu primeiro mandato (consequência direta
da malfadada Nova Matriz Econômica) pelo Tribunal de Contas da União pode ser a
chispa proverbial, especialmente agora que Lula da Silva começa a preparar seu
abandono da nau à deriva. Há um Rato Barbudo em cena.
Lula da Silva é o último mestre
da oratória em atuação na política nacional (nos anos 2000, saíram de cena os
únicos capaz de rivalizar com ele: Leonel Brizola morreu e Roberto Jefferson
está em aposentadoria forçada), embora também seja um mestre das gafes: seus
disparates fartamente documentados poderiam ser contados diariamente e, no
futuro, certamente serão compilados. Ele fez declarações equivocadas sobre
virtualmente tudo, de corrupção (diferentes versões sobre sua participação no
Mensalão conforme o momento e a audiência) a besteiras históricas (uma
inexistente visita de Napoleão à China) e geográficas (o Brasil não fazer
fronteira com a Bolívia), passando por declarações racistas (ao elogiar a
capital da Namíbia, disse que “nem parecia estar na África“) e homofóbicas
(declarou que “Pelotas é exportadora de viados”), tudo foi relevado diante do
apelo magnético de seus discursos e da envergadura política do homem que bateu
todos os recordes de popularidade no Brasil. Quando a dupla Dilma
Rousseff-Guido Mantega resolveram ignorar séculos de experiência econômica e
criar a Nova Matriz Econômica, Lula da Silva não percebeu o desastre iminente.
A equivocada escolha de Dilma Rousseff fez com que a situação se deteriorasse
de uma maneira tão intensa que as medidas de correção que ela se viu forçada a
tomar (diga-se: para corrigir os erros que ela cometeu sozinha, por força de
uma titânica combinação de incompetência, teimosia e arrogância) ficaram
amargas demais e solapariam a popularidade de qualquer incumbente no Palácio do
Planalto. Porém, se Aécio Neves ou Marina Silva tivessem vencido, a eles seria
dada uma trégua para arrumar a casa. Arrivistas, teriam o beneplácito da
população para adotar medidas corretivas duras. Dilma Rousseff não pode
arvorar-se tal facilidade, uma vez que não apenas ela é antecessora dela mesma,
mas, principalmente, porque ela passou a campanha presidencial declarando que
ajustes não eram necessários. Ela fez o contrário do que prometeu fazer caso
fosse reeleita – e, como resultado dessa mentira deliberada, o povo sentiu-se
corretamente traído e dois em cada três brasileiros avaliam seu governo como
ruim ou péssimo.
O inferno político de Lula da
Silva parece não ter fim. Além da inqualificável situação política de Dilma
Rousseff, a prisão dos principais executivos de duas das maiores empreiteiras
do Brasil na última semana (Marcelo Odebrecht, da Odebrecht, e Otávio Azevedo,
da Andrade Gutierrez), que se soma aos que já foram ou estão presos (como Léo
Pinheiro, da OAS, e Ricardo Pessoa, da UTC, entre muitos outros) levou o
Petrolão indelevelmente para perto demais dele. Por isso, o instinto de
sobrevivência começou a falar mais alto e o Rato Barbudo aposentou o Sapo
Barbudo. Documentos apresentados pelo juiz Sérgio Moro para embasar as ordens
de detenção dos executivos na Operação Lava-Jato citam a no mínimo eticamente
questionável relação que Lula da Silva e seus familiares mantinham com as
empreiteiras; pior do que isso, os autos revelam que o ex-presidente era
tratado pelo codinome Brahma pelas empreiteiras – e ninguém que conheça os
notórios hábitos etílicos do ex-presidente pode imaginar que a referência seja
ao deus da criação no politeísmo hinduísta. Para piorar seu inferno astral,
duas pesquisas de opinião que saíram do forno na última semana mostram que o
plano dele de voltar ao Palácio do Planalto em 2018 é cada vez menos
possibilidade e cada vez mais ilusão: Lula da Silva agoniza em praça pública,
uma agonia que promete ser longa e dolorosa de acompanhar. É certo que ele está
morrendo politicamente. A grande dúvida é se ele vai ser capaz de ressuscitar
para disputar e vencer as eleições de 2018. O meio político já aprendeu a duras
penas a jamais menosprezar a capacidade de regeneração de Lula da Silva, mas,
dessa vez, parece que nem mesmo sua autopropalada condição de fênix será capaz
de salvá-lo. Nem se Lula da Silva recorresse a um imaginário Poço de Lázaro político
(que devolveria mortos à vida, à semelhança do Lázaro bíblico) seria possível
garantir que ele escaparia de uma derrota acachapante em 2018.
Há apenas cinco anos, Lula da
Silva poderia perfeitamente ter-se comparado a Brahma; na verdade, não seria estranho
se ele o fizesse em seus arroubos megalomaníacos, nos quais, não raramente, ele
reescrevia a história ao seu bel-prazer. Talvez só não o tenha feito por
simplesmente não saber que Brahma era mais do que uma marca popular de cerveja,
mas sim o deus da criação no hinduísmo: o Rato Barbudo chegou a ostentar a
aprovação de quase nove dentre cada 10 brasileiros, ou 87%. Mais do que isso,
para sete de cada dez brasileiros (71%), ele havia sido o melhor presidente de
todos os tempos. Um político com tamanho estofo era imbatível. Agora, em sua
versão Rato Barbudo, Lula da Silva tenta desesperadamente se livrar da criatura
que criou. Calculadamente, usou frases de efeitos (a de referir-se à sua
situação como estando no “volume morto”, Lula da Silva prova mais uma vez que
ele é o melhor orador do Brasil, anos-luz à frente dos demais) para preparar
sua saída do navio. Ele começou a usar sua encarnação de Rato Barbudo em um
encontro com religiosos na última semana. A barca é uma alegoria frequente no
cristianismo. Na Bíblia (Marcos 4, 35-41), há a vívida narração de uma barca
que aparenta estar à deriva em um lago bravio enquanto Jesus dorme: os
discípulos têm medo de soçobrar e acordam Jesus, que apazigua a água e o vento
e os repreende pela falta de fé. Lula da Silva, naquele encontro com
religiosos, professou sua falta de fé em Dilma Rousseff como comandante para
singrar mares bravios. É uma alegoria bastante forte essa da do navio como
metáfora da sociedade; na verdade, serviu para exprimir críticas ao longo dos
séculos – um bom exemplo é a magistral tela “Nau dos Loucos” de Jerônimo Bosch
(Século XV, às vésperas da Reforma), que retrata doze pessoas (não por acaso, o
mesmo número de apóstolos), com cada uma representando um grupo social,
aproveitando os prazeres mundanos em uma balsa desgovernada, em uma crítica
pouco velada à conduta da Igreja. Lula da Silva tentar desvencilhar-se de Dilma
Rousseff é uma tentativa tão surreal que poderia ser parte da tela de Bosch ou
da película de Fellini. Dilma Rousseff é Lula da Silva e Lula da Silva é Dilma
Rousseff; para o bem ou para o mal, seus destinos estão interligados. Em tempo:
no final do filme de Fellini, depois de um festival de bizarrices, em meio a
bizarrices como a descoberta de um rinoceronte no porão, terroristas sérvios
escondidos e toda a sorte de comportamentos insanos, a nau atinge seu objetivo
final, ainda que à deriva. Apenas para afundar em seguida, poupando da morte
apenas o narrador e o rinoceronte. Fora das artes, o governo de Dilma Rousseff
faz água por todos os lados: inflação, desemprego, corrupção, contas
rejeitadas, aprovação de apenas 10% da população. Em um cenário como esse, para
o naufrágio deixar de ser possibilidade e passar a ser mera questão de tempo,
basta que Lula da Silva assuma de vez o papel de Rato Barbudo e abandone o
navio.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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