A
geopolítica de Aleksandr Dugin
Uma das maiores certezas sobre as
teorias geopolíticas é a de que elas surgem em momentos de instabilidades
sistêmicas. De fato, Friedrich Ratzel, considerado o pai da disciplina, começou
a tratar do tema antes que ele tivesse esse nome ainda no Século XIX. O momento
era de instabilidade: a Alemanha estava em inexorável processo de consolidação
como potência emergente. Ratzel justificou a matriz expansionista prussiana por
meio de um conceito bastante cínico, o Lebesraum, ou Espaço Vital. Era um
expansionismo baseado no conceito racista de superioridade germânica, algo que,
não supreendentemente, embasou as ações teutônicas nas Guerras Mundiais,
levadas ao paroxismo pelos nazistas. E assim foi com as teorias clássicas de
geopolítica, do Poder Naval de Alfred Mahan ao Heartland de Halford
Mackinder e chegando à tese do Confinamento de Nicholas Spykman, que embasou a
Doutrina Truman de contenção do comunismo no final dos anos 1940. E só. Desde
então, com a Guerra Fria estabelecida, não havia perspectiva de mudança
geopolítica: ou as duas superpotências se mantinham estáveis, como de fato
aconteceu, ou o mundo desapareceria em um cogumelo termonuclear. A derrocada do
Império Soviético gerou novas teses, como a famigerada ideia de “Fim da
História” de Francis Fukuyama, mas nada disso teve impacto concreto. Até que
surgiu Aleksandr Dugin.
A ascensão de Putin I como novo
Tzar de todas as Rússias foi o fator preponderantes para que Aleksandr Dugin
passasse a ser um nome relevante no atual expansionismo russo. Putin I fez seus
primeiros ensaios na Chechênia, depois na Geórgia e, finalmente, na Ucrânia,
quando seu expansionismo começou a ser combatido de frente pelo Ocidente. A
tomada da Crimeia em uma mal disfarçada ação clandestina do Kremlin foi o ponto
de inflexão. Putin I passou a ser um pária no sistema internacional, ao menos
diante das nações mais desenvolvidas e democráticas do mundo. As sanções que
União Europeia e Estados Unidos lhe impuseram por tentar fracionar a Ucrânia manu
militari deixaram a economia russa de joelhos. Putin I precisava de um
fato internacional forte para unir o país em torno dele. E a resposta
encontrada foi dar as cartas na Guerra Civil Síria. Na verdade, a questão é
mais geopolítica do que parece. Na Síria, fica o único porto russo com acesso
às chamadas “águas quentes”, o único que não congela em uma parte do ano. E eis
a ironia geopolítica: durante o ápice da expansão dos tzares, no Século XIX, a
Mãe Rússia chegou a controlar da Finlândia ao Extremo Oriente – sem contar o
Alasca. Todavia, com o Reino Unido sendo dono dos mares, todo esse vasto
império de nada serviria para dominar o mundo – e, em uma época na qual os
britânicos não viam o Sol se pôr, para deixar de ser um império grande demais
para a Europa e pequeno demais para o mundo, era necessário poder contar com
portos que simplesmente não congelassem, bem como controlar os estreitos
(Bósforo e Dardanelos) que permitiram sair do Mediterrâneo para controlar o
Atlântico Norte. Em suma, era necessário ter um porto como o atual porto que a
Rússia controla em Tartous, na Síria. Tudo isso fazia sentido em uma época de
conquistas neocoloniais e, principalmente, antes de os Irmãos Wright voarem em
Kitty Hawk. No Século XXI, não faz. Exceto para Aleksandr Dugin.
Desde os dias dos tzares, o
objetivo da Rússia é se tornar algo além de a maior massa de terra da Terra
isolada pelo Oceano Ártico. Porém, os Tzares sofreram derrotas dolorosas: a
perda da Finlândia significou que a saída para o mar quente no Atlântico Norte
não seria pelo Golfo da Finlândia, a derrota para os japoneses (um povo que a
teoria racial considerava inferior aos povos eslavos, já considerados
inferiores aos arianos) significou que não seria pelo Extremo Oriente e o
fiasco da Guerra da Crimeia significou que o acesso aos estreitos sempre seria
negado à Rússia. Mais do que nunca, ficou claro que o urso não poderia nadar,
como na metáfora usada à época. Assim como os tzares, os comunistas tentaram
reconstruir o Império Russo, mas fracassaram na Polônia (1922) e na Finlândia
(1941) e foram ultrapassados pelos americanos com a bomba atômica antes de
tomar o Japão (1945). Restou-lhes como espólio da Segunda Guerra Mundial o
enclave de Königsberg (que eles rebatizaram como Kaliningrado) e, como herança
da Guerra Fria, Tartous – e, agora, a Crimeia. É pouco, muito pouco para quem
almeja ir do Golfo da Finlândia ao Mar da China, mas perder esse muito pouco
seria humilhante para quem evoca a vocação de grandeza da Mãe Rússia como
elemento de legitimidade de seu governo. Putin I da Rússia usa a geopolítica.
E, como um de seus assessores nesse campo é Aleksandr Gelyevich Dugin, é mister
conhecer a obra dele para entender o que é a geopolítica do Kremlin na
atualidade.
A aparência de Aleksandr Dugin
lembra aquela de um patriarca ortodoxo russo, mas as semelhanças terminam por
aí. Ele defende uma Eurásia com comando russo, ecoando a tese deHeartland de
Mackinder. É um entusiasta das políticas expansionistas dos tzares e dos
comunistas, bem como um conselheiro de Putin I da Rússia. Não é por acaso que
Putin se aproxima da Igreja Ortodoxa Russa, comprando seu apoio com subvenções
e privilégios: Dugin é a mente por trás disso. Ele é um fascista-comunista
assumido, que defende o Nacional-Bolchevismo, uma surreal conjugação de grupos
de extrema direita e de extrema esquerda na Rússia que se dizem inspirados
pelos nazistas e pelos comunistas. Pois é. O teórico de Putin I é comunista e
nazista. Em “A quarta teoria política”, sua obra mais influente, Dugin defende
ser o sucessor da democracia liberal, do comunismo e do nazismo. Essa teoria,
que ele não apresenta de forma clara, seria uma junção das virtudes de cada uma
delas e seria aplicável por meio do neoeurasianismo que a Rússia parece estar
retomando. Em “Missão Eurásia”, ele argumenta que o mundo nunca deixou de ser
bipolar, em que pese o colapso do Império Soviético: para Dugin, há os
Eurasianistas (que, não surpreendentemente, desejam a “liderança” russa) e os
Atlanticistas (que, menos supreendentemente, são obrigados a se submeter ao
jugo americano). Para Dugin, eurasianos e atlanticistas fatalmente entrarão em
conflito porque os atlanticistas são expansionistas, ditatoriais e não
respeitam a diversidade e a autodeterminação dos povos, recorrendo a atos de
terrorismo para impor sua vontade. Apenas para ficar claro: para Aleksandr
Dugin, esse é o Ocidente. Portanto, segundo o embasamento teórico do Kremlin, a
Rússia nada mais faz do que defender os valores corretos na Crimeia e na Síria.
Portanto, não há como se esperar que a Rússia haja diferentemente: a única
forma de conter o expansionismo russo é por meio de confrontação direta, sem
tergiversações, uma vez que eles já deram mostras de que recuam quando fica
claro que perderão. Diante de ideias geopolíticas como a de Aleksandr Dugin,
que parecem saídas de manuais do Século XIX, não é necessário criar novas
teorias geopolíticas para contrabalançar: basta usar o que já existe, como a
teoria da contenção de Spykman, e começar a agir o quanto antes.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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