A Organização das Nações Unidas é
um microcosmo das organizações humanas. Lá, podemos encontrar tudo o que há de
bom e de ruim o gênio humano é capaz de conceber. Pelo lado bom, há avanços
notáveis. Um deles foi em 2000, com a instituição das chamadas Metas de
Desenvolvimento do Milênio, mais conhecidas simplesmente como Metas do Milênio.
Eram exatamente oito, e atacavam temas muito importantes:
1, Acabar com a fome
e a miséria;
2, Educação básica de qualidade para todos;
3, Igualdade entre
sexos e valorização da mulher;
4, Reduzir a mortalidade infantil;
5, Melhorar a
saúde da gestante;
6, Combater a aids, a malária e outras doenças;
7, Qualidade
de vida e respeito ao meio-ambiente; e
8, Todo mundo trabalhando pelo
desenvolvimento.
Para países como o Brasil, não havia coisa alguma de
extraordinário nessas metas. São temas que o Itamaraty tradicionalmente defende
nos fóruns internacionais, dos quais o principal é a própria ONU. Para outros
países, poderia haver um ou outro constrangimento, especialmente em relação a
direitos das mulheres ou combate à aids, mas nada que impossibilitasse a adesão
às Metas do Milênio – até porque, deliberadamente, elas eram foram apresentadas
de forma extremamente amplas, a adesão era voluntária e caberia a cada país
transformá-las em políticas públicas: é difícil que um país se posicione contra
uma agenda dessas, e, nem tão paradoxalmente quanto poderia parecer, os maiores
tiranos gostam de posar como defensores de bons valores na cena internacional.
Uma década e meia depois, pode-se dizer que os Objetivos do Milênio foram um
sucesso em seu todo, embora notemos discrepâncias grandes em termos de
resultados individuais. Evidentemente, ainda há problemas em cada uma delas,
mas há destaques primorosos, como a redução pela metade do número de pessoas em
situação de fome e miséria – é verdade que grande parte disso ocorreu em função
do crescimento na China, mas o sucesso é inegável: a missão das Metas do
Milênio foi cumprida sem maiores percalços e a humanidade como um todo
progrediu, embora seja difícil perceber isso quando se está imerso nas grandes
questões do cotidiano. Portanto, é hora de felicitar as Metas do Milênio pelo
conjunto da obra e conhecer as Metas de Desenvolvimento Sustentável.
Com o sucesso das Metas do
Milênio, a ONU resolveu acertadamente dobrar a aposta: nas Metas de
Desenvolvimento Sustentável, serão 17 os itens. Inevitavelmente, as Metas de
Desenvolvimento Sustentável sofrem as mesmas críticas que as Metas do Milênio
sofreu: objetivos muito amplos, adoção voluntária, falta de mecanismo de
controle e punição etc. São preocupações válidas, porém algo pueris. Os países
simplesmente não aceitariam submeter-se a controle externo em áreas tão vitais
de suas políticas internas, e os críticos parecem ignorar isso deliberadamente.
As metas são amplas de propósito, as adoções serem discricionárias é uma estratégia
de facilitar a adesão e a ausência de controle externo é o preço a se pagar
para que virtualmente todos os 193 membros da ONU venham a aceitar as Metas de
Desenvolvimento Sustentável. Aliás, o momento de adoção delas não poderia ser
mais preciso: na sexta-feira, o papa Francisco vai falar na ONU e, após a fala
dele, começarão as reuniões finais para que a 70ª Assembleia Geral das Nações
Unidas, que começa na segunda-feira 28, já comece com a adoção do documento.
Espera-se que mais de 150 chefes de estado se reúnam em uma cúpula após a fala
de Francisco, incluindo peso-pesados como Barack Obama e Xi Jinping, para
aparar as arestas finais. Será um daqueles momentos únicos na história humana,
na qual a quase totalidade das nações (simplesmente, não há como se prever o
que farão estados como a Coreia do Norte ou a Síria) se reúne para assumir um
compromisso inequívoco com o desenvolvimento sustentável, ainda que carente de
metas vinculantes etc.
Um dos pontos mais interessantes
a se notar nas Metas de Desenvolvimento Sustentável é que elas suplantam a
lógica de conflito Norte-Sul, sendo Norte metonímia para os países
desenvolvidos e Sul metonímia para os demais. Esse ponto merece muito destaque:
nas Metas de Desenvolvimento Sustentável, há a cooperação Norte-Sul. Para a
diplomacia nacional, isso significa que a cooperação Sul-Sul talvez não venha a
ser mais o ponto focal nas próximas décadas, o que certamente ensejará
intermináveis debates no Itamaraty, mas, para o mundo, há uma transcendência
maior. Explica-se. O custo mundial estimado para se atingir as Metas de
Desenvolvimento Sustentável em 15 anos (criatividade não é exatamente um artigo
abundante na ONU: resolveram repetir o prazo que as Metas do Milênio tiveram)
chega a 5 trilhões de dólares por ano até 2030– mais do que o dobro do
combalido PIB do Brasil. Não é pouco sob hipótese alguma. Por isso, nas amplas
negociações que antecederam o lançamento das Metas de Desenvolvimento
Sustentável (e das quais o Brasil lamentavelmente só não participou mais por
deficiências orçamentárias), países do Norte e do Sul perceberam que o modelo
no qual este quer que aquele pague tudo baseado em questionáveis
“responsabilidades históricas” estava exaurido. É uma diferença gritante em
relação às antigas Metas do Milênio, nas quais prevalecia a ideia de um Norte
financiando o desenvolvimento do Sul. Aponta para um mundo mais colaborativo,
que parece caminhar no sentido de superar a lógica de conflito entre países
desenvolvidos, herdada do Século XX, por uma lógica de colaboração em prol do
desenvolvimento da humanidade. Não é pouca coisa: colocar o desenvolvimento
humano acima das disputas políticas das nações é o primeiro grande feito das
Metas de Desenvolvimento Sustentável, alcançado antes mesmo de elas serem
adotadas. Sejam bem-vindas, e que venham muitos outros!
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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