Outubro
Vermelho em Novembro
Karl Marx foi um frasista genial.
“De cada um de acordo com suas capacidades e para cada um de acordo com suas
necessidades” foi o slogan que embalou a expansão comunista (e que slogan!),
enquanto “A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como
farsa” (usada na avaliação do período napoleônico) pode estar se provando
certa, ao menos no Brasil hodierno, se tomarmos como exemplo a reforma
ministerial que Dilma Rousseff ordenou na última semana. Ao dar mais espaço e
mais verbas para o PMDB em troca de proteção contra a abertura do processo de impeachment,
a suprema mandatária nacional (uma marxista) pôs em marcha um processo que
poderá fazê-la terminar arrependida por ter aceitado a sobrevida política que o
PMDB lhe deu. Ao entregar todos os anéis ao PMDB para manter os dedos, Dilma
Rousseff colocou-se na incômoda situação de appeasement (“apaziguamento”,
na tradução mais consagrada, conquanto algo imprecisa). Se Marx estiver
realmente certo, nós já sabemos que isso não termina bem. As ideias de Marx
inspiraram o golpe dentro do golpe que Lenin liderou em 1917 e que ficou
conhecido como Outubro Vermelho. Pelo que se apresenta, Dilma Rousseff está em
vias de encarar seu Outubro Vermelho, com ou sem appeasement do PMDB.
O appeasement mais
famoso da história ocorreu em 1938 e envolveu o premier britânico Neville
Chamberlain e o ditador nazista Adolf Hitler. Hitler havia tomado os Sudetos
(regiões com expressiva presença germânica na então Checoslováquia) manu
militari e o mundo precisava decidir o que fazer. Eis que Chamberlain
entra em cena. Ciente de que não possuía apoio político para confrontar Hitler
e, portanto, arriscar dar início a uma nova guerra contra os alemães apenas
duas décadas após o fim da sangrenta Grande Guerra, Chamberlain voou a Munique.
Hitler, ciente da claudicância de Chamberlain, se aproveitou da situação para
ganhar tempo na preparação de seus exércitos. Um acordo por meio do qual os
ganhos ilegais de Hitler nos Sudetos foram legitimados foi confeccionado por Alemanha,
França, Itália e Reino Unido – a Checoslováquia, país cujos territórios estavam
sendo tomados, sequer participou das tratativas. Hitler se declarou satisfeito
com os Sudetos (além do Anschluss, incorporação da Áustria, ocorrido em
março do mesmo ano) e assinou um acordo de paz com Chamberlain, que pousou em
Londres triunfante no último dia de setembro de 1938, como um garantidor da
paz, exibindo o acordo de paz bilateral. Obviamente, em março de 1939 Hitler
não encontrou resistência quando ocupou virtualmente toda a Checoslováquia e
desfiou calmamente em uma Praga ocupada. Ainda assim, Hitler anunciava não
querer guerra com os europeus (e, surpreendentemente, muita gente defendia que
novas concessões fossem feitas, cada vez mais, para evitar a eclosão de uma
nova guerra) e, portanto, um novo appeasement deveria ser feito.
Enquanto isso, Stalin, que mandava enviados para participar de conversas com os
europeus nesse sentido, negociava com Hitler em segredo e, em agosto, nazistas
e soviéticos assinariam o Pacto de Moscow, por meio do qual se aliavam para
dividir a Europa. Poucos dias depois, a aliança nazi-soviética se colocaria em
marcha na invasão e partilha da Polônia, marcando o início da Segunda Guerra
Mundial e o fracasso doappeasement. Se Marx estiver certo, é bom olhar para
essa lição histórica: o appeasement que Dilma Rousseff resolveu fazer
para agradar ao PMDB apenas dará origem a demandas cada vez mais desmedidas,
até que não seja mais possível mantê-las e o rompimento ocorra. É Marx na veia
de uma marxista.
Appeasement para o PMDB é
como appeasement para Hitler: mera postergação do inevitável que,
quando chega, chega ainda mais devastador – seja a guerra, seja oimpeachment. O
PMDB não tem compromisso algum com o governo de Dilma Rousseff. Em que pese a
atávica descentralização de comando no partido, o PMDB é unido por uma coisa:
instinto de sobrevivência. Seus caciques estão se locupletando no curto prazo
com mais espaço e verbas no governo, mas sabem que a situação de Dilma Rousseff
é insustentável. Portanto, não terão constrangimento algum em mudar de lado se
ficar claro que um processo de impeachment é iminente. Dilma Rousseff
e o PMDB sabem disso, mas a presidente tenta sobreviver um dia de cada vez.
Ocorre que os dias dela serão cada vez mais curtos. Com a iminência de más
notícias no horizonte, não há como pensar em saída para a crise política nesse
início de outubro. Com a crise econômica se aprofundando (inflação chegando aos
dois dígitos e PIB encolhendo quase 3% neste ano), não há loteamento de
ministérios que faça políticos se indisporem com seus eleitores. O paiol está
abarrotado. Basta uma fagulha que a explosão ocorre. A fagulha pode ser dada
pelo Tribunal de Contas da União, que deve aprovar um parecer recomendando a
rejeição das contas dela de 2014 nesta semana, fato inédito. Isso abre caminho
para que o Congresso Nacional vote a rejeição e torne possível torná-la ré por
crime de responsabilidade, uma das hipóteses de impeachment. Ou ainda ser
dada pelo Tribunal Superior Eleitoral, que pode cassar a diplomação dela se
restar comprovado que houve abuso de poder econômico na campanha de 2014. Ou,
quem sabe, por um homem-bomba travestido de presidente da Câmara dos Deputados
que conhece todos os atalhos regimentais. De um modo ou de outro, todos os
caminhos podem levar ao Outubro Vermelho. Em tempo: a Rússia utilizava o
calendário juliano naquela época; portanto, o Outubro Vermelho, na verdade,
aconteceu em Novembro. Dia 15 de Novembro, aniversário do Golpe da República, o
PMDB fará sua reunião nacional. Há chances reais de o partido romper
oficialmente com Dilma Rousseff nela, tirando-lhe o derradeiro anteparo ante o
abismo do impeachment. Assim como um appeasement que saiu pela
culatra, um Outubro Vermelho em Novembro também não seria exatamente uma
novidade: História se repetindo como farsa, como preconizou o inspirador de
Dilma Rousseff.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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