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Três Encilhamentos. Por Pedro Nascimento Araujo


O Brasil assistiu a um fato estarrecedor na semana passada: o país teve sua classificação rebaixada pela Standard & Poors, a principal agência de rating de risco do mundo, para grau especulativo. Na prática, isso significa que o Brasil está, aos olhos do mundo, no mesmo patamar de países como Argentina, Grécia e Venezuela e não é um destino confiável para se colocar dinheiro. Aliás, o termo em inglês para a atual cotação dos títulos do governo brasileiro é junk: literalmente, lixo. Pois é. Eis o legado da Nova Matriz Macroeconômica de Dilma Rousseff: os títulos que o governo do Brasil emite são considerados junk perante o mundo. Como pôde a credibilidade do governo brasileiro ter oficialmente virado lixo? Ocorre que não é a primeira vez; na verdade, nossos títulos já não valeram coisa alguma diversas vezes ao longo da história republicana. Há algumas poucas e boas explicações para cada uma das vezes nas quais nossos títulos foram considerados junk, todas economicamente corretas, mas há três momentos na história que merecem atenção pelo personalismo dos protagonistas: ao passo que a hiperinflação dos anos 1980 foi uma obra coletiva, o Plano Collor foi uma obra individual que carrega o DNA daquele que o chocou, mesmo caso da Nova Matriz Macroeconômica de Dilma Rousseff. Na verdade, defendo que o Plano Collor e a Nova Matriz Macroeconômica são reencarnações do Encilhamento de Ruy Barbosa. Ruy Barbosa no Século XIX, Collor de Mello no Século XX e Dilma Rousseff no Século XXI: três Encilhamentos, termo aqui usado como sinônimo dos maiores fiascos econômicos de que esse país já teve notícia. E não é à toa que os três Encilhamentos tenham sido capitaneados por Ruy Barbosa, Collor de Mello e Dilma Rousseff. Há mais em comum entre essas três personagens do que a mera propensão a produzir desastres econômicos: Ruy Barbosa, Collor de Mello e Dilma Rousseff são três figuras públicas muito mais próximas entre si do que se poderia supor à primeira vista: pessoas extremamente arrogantes, cegamente convencidas de ser capazes de mudar a ordem econômica. Assim, em decorrência de uma personalidade algo quixotesca, todos deixaram retumbantes fracassos econômicos como seus legados, embora se deva reconhecer que cada Encilhamento teve seu nome, seus métodos e suas idiossincrasias, mas, na essência, são a mesma coisa: fiascos causados por pessoas que se julgavam acima das leis da economia e que queriam que seus planos fossem redentores e revolucionários na própria economia mundial. Queriam ser exemplos de como é possível fazer uma “nova economia” ou coisa que o valha. Os três pretendiam que seus nomes fossem associados a um sucesso sem precedentes, mas só conseguiram o apodo de fracassados. É verdade também que Ruy Barbosa e Collor de Mello tinham a unir-lhes ainda o gosto por aparições públicas performáticas (ao menos dessa ridícula teatralidade Dilma Rousseff nos poupou), mas os três têm um traço comum muito mais preocupante do que o gosto por holofotes: jamais reconheceram seus erros. Ruy Barbosa está morto há oito décadas e há pouca esperança de que os egos de Collor de Mello e de Dilma Rousseff permitam quaisquer atos de contrição até os finais de suas vidas. Três Encilhamentos. Não merecemos.

Ruy Barbosa é o pai do Encilhamento. Ele foi o primeiro a criar um desastre econômico por ignorar deliberadamente as leis da economia. É curioso notar que ele havia sido convidado para compor o Gabinete Ouro Preto, o derradeiro do Império, e recusou. O Gabinete Ouro Preto teve exatamente como marca retomar a paridade do mil-réis (a moeda imperial se chamava “real” exatamente como hoje, mas usávamos como plural “réis”, enquanto hoje usamos como plural “reais”) com o padrão-ouro, o que pode ser comparado ao Investment Grade das agências de rating atuais: quem estivesse na paridade do padrão-ouro poderia realizar negócios e receber investimentos das nações mais ricas com muita facilidade. Ruy Barbosa conspirou com os golpistas do 15 de Novembro (foi de redação dele o primeiro decreto do Governo Provisório) e assumiu as finanças do país como Ministro da Fazenda – na prática, era o Premier de um governo fraco, sem apoio popular, sem apoio político e nas mãos de um líder fisicamente alquebrado. Iniciava-se ali um desastre que arrasou a economia nacional: em 1890 (sim, exatos 100 anos antes de Collor de Mello), Ruy Barbosa lançou o infame “Encilhamento” para obter legitimidade popular por meio do crescimento econômico. Ocorreu exatamente o oposto. Da pena do baiano de falar rebuscado saíram apenas descontroles monetário e fiscal, criação de regras frouxas que levaram à maior especulação bursátil da história nacional, improviso em cima de improviso, inflação, desvalorização do mil-réis e brutal recessão. Durante esse período, havia apenas uma coisa que se mantinha estável: a arrogância de Ruy Barbosa, que se sentia fazendo a coisa certa e sendo incompreendido – e, portanto, continuou levando o desastre adiante até aonde havia tinta em seu tinteiro. Ruy Barbosa quebrou o Brasil. Fim do primeiro Encilhamento. Foram necessários anos até que Campos Salles (com Joaquim Murtinho no Ministério da Fazenda) fizesse o grande ajuste necessário em 1898, o Funding Loan, e o país retomasse a ortodoxia. Depois, a ortodoxia seria vítima de processos de sístole e diástole durante o primeiro século republicano (em alguns casos, como nos governos de Dutra e de Goulart, é claramente possível observar uma parte de ortodoxia e uma parte de heterodoxia), até que, na década de 1980, os planos heterodoxos, cujo maior símbolo é o Plano Cruzado (1986), pareciam jogar o Brasil em um inferno econômico no qual as leis da economia nunca mais seriam seguidas. O ápice dessa insanidade ocorreu exatamente 100 anos após o Encilhamento de Ruy Barbosa. Estamos falando do Plano Collor, que levou a irracionalidade ao paroxismo.

Brasil, 1990. Naquele ano, o país tentou reverter as leis da economia por decreto pela última vez. Foi o Plano Brasil Novo, nome pomposo para aquilo que a sabedoria popular logo apodou “Plano Collor” e pespegou indelevelmente o nome desastre ao do seu criador. O Plano Collor levou o fracasso dos congelamentos de preços e salários que Sarney já havia experimentado a um novo patamar: Collor de Mello simplesmente confiscou as contas bancárias dos brasileiros. Meteu as mãos na caderneta de poupança, a única vaca sagrada da bagunçada economia nacional. Fez um ajuste fiscal voluntarioso e intempestivo. Fez um ajuste monetário que nenhum livro de economia razoável consideraria factível. Tentou criar uma âncora cambial por meio de uma ainda mais atabalhoada abertura comercial. Ou seja, o Plano Collor estava obviamente fadado ao desastre – e não seria preciso ser gênio econômico para perceber isso. Collor de Mello quebrou o Brasil. Fim do segundo Encilhamento. A única contribuição digna de nota do Plano Collor para o Brasil mostra bem o quão pateticamente frágeis nossas instituições podem ser: depois dele, fez-se escrever na Constituição a proibição do confisco dos ativos financeiros da população, como se antes isso fosse prática permitida e corriqueira... Enfim, depois do grande trauma nacional do Plano Collor (não há indício maior do tamanho trauma que Collor de Mello deixou no Brasil do que os recorrentes boatos de que Dilma Rousseff vai apelar para o confisco dos ativos financeiros toda vez que a situação econômica do país piora – apesar da surreal proibição constitucional expressa!), aparentemente abandonamos as tentativas de lutar contra a realidade e aceitamos as leis da economia.

Agora, é preciso avançar até 1993, quando Itamar Franco assinou a adesão do Brasil ao Plano Brady, por meio do qual renegociamos o pagamento da nossa dívida externa (até a quitamos antecipadamente, no primeiro mandato de Lula da Silva, com direito ao presidente fazer toda a fanfarra que lhe é peculiar – e, mais peculiar a ele ainda, ignorando olimpicamente em seus festejos tratar-se do resultado de um esforço que permeou quatro mandatos) e Fernando Henrique Cardoso preparou o Plano Real. Com o Plano Real, FHC não apenas adotou a ortodoxia na macroeconomia, como adotou o corolário mais importante do pensamento ortodoxo: a previsibilidade. Mais de um século após o Golpe da República, finalmente o Brasil havia abandonava o improviso, o voluntarismo, enfim, a heterodoxia, que, curiosamente, durou exatos 100 anos, tendo o marco inicial no desastroso Encilhamento de Ruy Barbosa e seu marco final no igualmente desastroso Plano Brasil Novo de Collor de Mello – ao menos, até Dilma Rousseff resgatá-lo com força total. O Plano Real deu certo por seus méritos econômicos, fruto de uma equipe sem comparação, mas também por seus méritos, digamos, psicológicos: o Plano Real não oferecia sustos. Não haveria surpresas. Tudo seria explicado com muita antecedência. Ninguém acordaria com um feriado bancário antecipado, como no caso do Plano Collor – como a certeza de um novo congelamento era grande, os boatos sobre confisco de ativos se espalhavam rapidamente (e isso em uma era pré-internet!) e a inflação era de 2% ao dia, as pessoas planejavam sacar todo o dinheiro possível na véspera da posse de Collor de Mello (15-Mar-1990), mas Sarney, atendendo a um pedido do presidente eleito, decretou feriado bancário nos últimos dias de seu governo e pegou a todos desprevenidos. Não haveria coisa alguma parecida com isso no Plano Real. Em suma, o Plano Real trouxe de volta o planejamento e a previsibilidade na política econômica nacional. Finalmente, com o Plano Real, esses dias ficaram para trás. E nunca é demais citar que a escolha do nome da nova moeda era deliberadamente uma referência direta à moeda dos tempos monárquicos: trazia as ideias de responsabilidade, tradição e previsibilidade associadas tanto à forma de governo quanto à política econômica. E tudo corria bem. Até que Dilma Rousseff assumiu.

É um erro creditar a paternidade da Nova Matriz Macroeconômica a Dilma Rousseff. O ovo do desastre foi colocado ainda nos tempos de Lula da Silva; mas, verdade seja dita, seria chocado somente por Dilma Rousseff. Na esteira da quebra do Lehman Brothers (15-Nov-2008), o mundo se viu tragado por uma brutal crise financeira. Lula da Silva, que ao assumir em 2003 seguiu à risca o receituário ortodoxo, optou por ações anticíclicas pontuais e pisou no acelerador. Tentou – e conseguiu – manter a demanda agregada elevada por meio de estímulos ao consumo. Essa é uma receita de curto prazo e que demanda certa gordura para queimar sem afetar os fundamentos da economia. Lula da Silva tinha prazo definido (eleições em 2010) e gordura acumulada para passar dois anos. Ele o fez e elegeu Dilma Rousseff. O que Dilma Rousseff deveria fazer? Assumir e colocar a casa em ordem, exatamente como Lula da Silva havia feito em 2003. Isso permitiria a ela acumular gordura para quando aparecesse um novo período de dificuldades. Mas, não. Dilma Rousseff enamorou-se de uma solução paliativa e, com isso, não tomou as medidas necessárias para evitar o desastre em que ora nos encontramos. Ela venceu a eleição, mas cada vez fica mais claro que teria sido melhor para a sua biografia se não tivesse vencido e simplesmente entregasse o desastre que chocou para outro. Passou a viver à base de pedaladas para esconder déficits crescentes. Passou a baixar juros na marra, mesmo diante de evidências de crescimento inflacionário. Empurrou uma redução de tarifas de energia elétrica contra todas as evidências por puro populismo, mesmo sabendo que as consequências menos imediatas seriam desastrosas, como de fato o foram: as tarifas aumentaram muito mais do que aquilo que havia sido reduzido na canetada em 2013. Ressuscitou a prática de represar a inflação por meio do controle de tarifas públicas, comum nos infames anos de hiperinflação. Utilizou o caixa das empresas estatais para subsidiar crédito e consumo. Enfim, passou a destruir sistematicamente todo o trabalho de construção da credibilidade da economia do Brasil baseado na transparência e na previsibilidade que Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva haviam passado as duas últimas décadas erigindo. Um desastre. Dilma Rousseff quebrou o Brasil. Fim do terceiro Encilhamento. Em tempo: preocupantemente para Dilma Rousseff, depois de cada Encilhamento costuma vir uma instabilidade política séria. Ruy Barbosa, depois da queda de Deodoro da Fonseca, teve de fugir para o exílio durante o governo de Floriano Peixoto. Collor de Mello foi o primeiro presidente a sofrer um processo de impeachment e renunciou instantes antes do início de seu julgamento no Senado Federal. Dilma Rousseff é a presidente com menor popularidade da história, mas sua história ainda não acabou: no momento, ela literalmente conta votos diariamente no Congresso Nacional para impedir a abertura de um processo de impeachment contra o seu governo. Encilhamentos não fazem bem: nem para quem os faz, nem para quem os sofre.


Pedro Nascimento Araujo é economista.

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