Bibi Tantan
Benjamin Netanyahu é um daqueles
sujeitos que adoram perder uma oportunidade de ficar calado. Apenas para
ninguém se perder: há algumas semanas, palestinos e israelenses voltaram a se
enfrentar nas ruas de Jerusalém por um motivo torpe – de inclinação religiosa,
claro: de novo, o acesso à Mesquita de Al-Aqsa e ao Domo da Rocha, na Esplanada
das Mesquitas ou no Monte do Templo, conforme respectivamente muçulmanos e
judeus se referem ao mesmo local. Essa escaramuça não é nova – basta lembrar a
confusão que se seguiu à visita de Ariel Sharon ao lugar há mais de uma década.
Com israelenses sendo mortos a facadas por palestinos em ataques aleatórios e
absolutamente hediondos nas ruas do país, Israel merece toda a solidariedade
internacional. O país precisa retomar a ordem e garantir a segurança, mas
sempre se espera do lado mais forte (e não há comparação entre Israel e
Palestina nesse aspecto) que haja comedidamente, de acordo com o preceito “Qui
peut le plus, peut le moins” (“Quem pode fazer mais também pode fazer menos”).
De fato, a reação israelense nas ruas convertidas em palcos de batalhas tem
sido ponderada, e a nação dona das melhores forças de defesa do mundo ainda não
cogita usar seu poderio bélico contra os territórios palestinos. Ou seja, tudo
estava indo relativamente bem (para os padrões da região, claro), quando Bibi
provou que está Tantan e resolveu imputar ao antigo grão-mufti (líder religioso
com autorização para emitir sentença vinculante para os muçulmanos, a chamada fatwa)
de Jerusalém a criação do Holocausto.
A bem da verdade, diga-se que Haj
Amin al-Husseini, o mufti em questão, era simpatizante de Hitler. Ele chegou
mesmo a morar na Alemanha Nazista durante a II Grande Guerra, aonde fez
propagandas do regime para povos árabes. Isso está bem documentado – e
al-Husseini não escondia seu desejo de ter uma Terra Santa sem judeus. Embora,
após a queda de Hitler, al-Husseini tenha negado até o final da vida inteira
ter apoiado a Solução Final, não é impossível supor que ele tenha sido
simpático a ela. Na verdade, nem é difícil supor que o ódio aos judeus era o
ponto de contato entre um supremacista ariano e um muçulmano, povo que Hitler
considerava outra sub-raça que seria eliminada tão logo não houvessem mais
judeus na Europa e, quiçá, no mundo. Hitler sabia disso, assim como
al-Husseini. E desse inimigo comum, surgiu uma das mais bizarras de todas as
alianças de conveniência da história, aquela entre nazistas e muçulmanos. Ou
melhor, entre nazistas e uma minoria de muçulmanos fiéis a al-Husseini, uma vez
que a esmagadora maioria dos muçulmanos apoiou os Aliados no conflito. Heinrich
Himmler e Adolf Eichmann se reuniram com Haj Amin al-Husseini para tratar do
apoio deste ao nazismo. Há fotos do grão-mufti passando tropas nazistas em
revista e saudando-as com o famigerado “Heil, Hitler!” São fotos nojentas que
mostram não apenas a essência podre de um homem, mas também a hipocrisia do
regime nazista, que se esquecia de seus preceitos de superioridade racial sempre
que lhe era conveniente.
Aliás, aqui cabe uma leve
digressão. Para quem imagina que esse comportamento hipócrita por parte de
racistas é exclusividade nazista, há um exemplo bem mais recente que merece ser
citado, envolvendo a África do Sul do apartheid até os anos 1990. A lei de
apartheid sul-africana não permitia que não-brancos (não apenas negros, mas
todos os que não fossem de origem europeia) sequer pernoitassem nas cidades
aonde os brancos viviam – e isso incluía turistas. Para definir quem teria o
passaporte interno que autorizava a permanência nas cidades de brancos após o
fim do expediente (aos não brancos era permitido ficar nos locais de brancos
para trabalhar, sendo obrigatório o retorno imediato após o fim do expediente),
ao entrar no país os turistas passavam pelo crivo de guardas de fronteira que
chegavam ao absurdo de usar um pente nos cabelos deles para definir se quem era
branco e quem não era – e, invariavelmente, surgiram casos de pessoas que foram
consideradas brancas em uma vez e não-brancas em outra. Pois bem. Nos anos
1970, quando as ações de isolamento internacional do regime racista começaram a
afetar a economia do país, os africâneres simplesmente decretaram que
investidores japoneses eram brancos. E ponto final. Turistas japoneses normais
continuariam sendo não-brancos, mas investidores japoneses passaram a ser
brancos. Essa é a ética do racismo: vil e cínico. Fechada a digressão, podemos
apenas imaginar o esforço que nazistas de alta estirpe devem ter feito para
esconder seus preconceitos ao ter de lidar com um muçulmano. Ainda assim, a
inusitada parceria prosseguiu até chegar à audiência privativa entre
al-Husseini e Hitler em 1941 à qual Bibi Tantan fez menção.
Em 1941, al-Husseini e Hitler se
encontraram. Em março deste ano, o Joseph Spoerl, radicado nos Estados Unidos,
lançou um até então obscuro paper chamado “Palestinos, Árabes e o
Holocausto”, no qual defende que Hitler tomou a decisão de matar os judeus após
a entrevista com al-Husseini. É uma tese para lá de controversa. Primeiro,
porque não há registros da conversa; assim, se al-Husseini realmente deu apoio
ou mesmo sugeriu o Holocausto (o que é algo bem mais grave do que ser “apenas”
antissemita), nunca se saberá com certeza, ao contrário do Holocausto, que
Hitler realmente começou a colocar em marcha em 1941 – até então, os nazistas
literalmente extorquiam todo o ouro dos judeus e os expulsavam dos países que
iam sendo ocupados. Segundo, porque o professor Spoerl minimiza o fato de que
Hitler já vinha perseguindo os judeus com base em um antissemitismo atávico que
ele fazia questão de exibir desde a sua juventude – para muitos historiadores,
inclusive Joachim Fest, o mais aclamado biógrafo de Hitler, a Solução Final foi
apenas a zênite de um longo processo. E, terceiro, porque ignora o fato de 1941
ter sido o ano da virada na II Guerra Mundial: Hitler foi forçado a desistir de
ocupar o Reino Unido após os Spitfires da Royal Air Force terem vencido a
Luftwaffe (o controle dos ares impedia qualquer tentativa de desembarque
anfíbio de tropas), começava a campanha da Rússia (a Operação Barbarossa que
teria na derrota em Stalingrado o início do seu fim e, principalmente, a
Alemanha declarou guerra aos Estados Unidos da América após estes declararem
guerra ao Japão na esteira de Pearl Harbor. Em 1941, começou a ficar claro para
Hitler que a Alemanha não poderia vencer a guerra contra esses três aliados:
Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética. Então, ele partiu para a tentar
defender o que já havia conquistado e manter a cabeça acima do pescoço. Nesse
contexto, conforme Fest, seu antissemitismo aflorou ainda mais – ele culpava os
judeus pelo fato de ter todos esses inimigos poderosos que ele fez (ele atacou
os britânicos e soviéticos e declarou guerra aos americanos ainda que seu
acordo militar com o Japão fosse de defesa; ou seja, ele estava desobrigado de
ajudar o Japão caso o país nipônico fosse o agressor, como aconteceu em 1941).
Ao invés de simplesmente expulsar os judeus, Hitler começou a matá-los em
escala industrial, não sem antes se apropriar dos bens deles: era o Holocausto.
Colocar um processo desses como resultado de uma conversa de Hitler ao pé da
lareira com um muçulmano (ou seja, alguém que Hitler desprezava
intrinsecamente) é uma hipótese que não encontra respaldo na historiografia. E,
no entanto, foi a hipótese esposada por Bibi Tantan em pleno momento de crise
com os palestinos: só mesmo alguém muito fora de si é capaz de imaginar que
defender tal disparate pode ajudar a trazer a paz e a estabilidade para Israel.
Infelizmente, enquanto tiver defensores como Bibi Tantan, Israel simplesmente
não precisa de agressores para ter problemas.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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