Erdoğan
venceu
Em meio à crise global de
refugiados provenientes principalmente da interminável guerra civil que devasta
a Síria, os holofotes estão sobre a Europa. Normal, uma vez que os europeus não
estão mais acostumados a lidar com refugiados desde que os canhões da Segunda
Guerra Mundial foram silenciados no continente há sete décadas. Além disso, as
imagens são em si impressionantes – e nada sintetiza mais a nossa falha enquanto
sociedade do que o corpo inerte do pequeno Aylan “Kurdi” Shenu nas areias.
Refugiados tentando atingir o Reino Unido (que não participa do Espaço
Schengen, região europeia sem fronteiras internas), pelo Eurotúnel, refugiados
morrendo em caminhões frigoríficos transformados involuntariamente em fornos
tentando chegar à Alemanha (o país de concessão de refúgio é o de entrada
oficial na Europa, o que explica a vontade de entrar oficialmente em solo
teutônico para ter acesso ao sistema social alemão), refugiados literalmente
sofrendo rasteiras de cinegrafistas após alcançar os Bálcãs, refugiados
contornando o Círculo Polar Ártico para entrar na Suécia de bicicleta via
Rússia, refugiados, refugiados e mais refugiados – essa tem sido a tônica da
política europeia. E, no entanto, a quantidade de refugiados que acorrem à
Europa é pequena: o principal destino dos refugiados no mundo atual é a
Turquia. Lá, Recep Tayyip Erdoğan acaba de vencer eleições legislativas que
poderão dar-lhe poder inaudito no país desde que Mustafá Kemmal Attatürk fundou
a herdeira do Império Otomano em 1923. Se o plano de Erdoğan vingar, ele vai
aprovar uma reforma constitucional para concentrar poderes na presidência, como
se fosse um sultão sem direito divino.
A Turquia não é o principal destino
dos refugiados à toa – estima-se que são em torno de 2,5 milhões de sírios
tenham acorrido ao país desde que a guerra civil se estabeleceu em 2011.
Basicamente, as migrações internacionais são motivadas em grande parte pelas
mesmas razões de cunho econômico desde sempre, traduzidas por Ernest Ravenstein
em “As leis da migração” há mais de um século, como fatores de atração e de
repulsão, com as migrações forçadas (caso de todos os refugiados), a urgência
leva a perspectiva de segurança e a proximidade a falarem mais alto. Por isso,
ainda que tenha apenas uma ponta de seu território em continente europeu, a
Turquia recebe mais imigrantes do que toda a União Europeia. Obviamente, também
é da Turquia que provém a maior parte dos refugiados que chegam à União
Europeia. Basicamente, esses refugiados se dão conta de que o retorno à Síria é
cada vez menos provável e, uma vez que a imigração assume ares de fait
accompli, optam por se estabelecer de vez na Europa e migram a partir da
Turquia para as praias do sul do continente, morrendo aos borbotões na
travessia pelo Mediterrâneo – caso de Aylan “Kurdi” Shenu. Por isso, líderes
europeus esperam uma maior contribuição de Ankara para conter a saída da
Turquia para, simultaneamente, criar condições para assentar as pessoas em
território turco e criar restrições para a saída rumo à União Europeia. Com a
recente demonstração de força de Recep Tayyip Erdoğan, fica cada vez mais
improvável represar a tragédia em terras turcas sem concessões. E se o custo de
evitar que mais imigrantes cheguem à Europa for fazer vista grossa às cada vez
menos inibidas violações de direitos humanos que Erdoğan vem patrocinando na
Turquia, Bruxelas parece paulatinamente mais disposta a aceitá-lo: com Angela
Merkel pressionada para conter a chegada de imigrantes, correndo risco de
perder o poder no país que, na prática, comanda a União Europeia, poderemos em
breve ver os interesses de políticos europeus serem colocados acima dos valores
da União Europeia. A União Europeia precisa da Turquia. E Erdoğan já começa a
negociar seu preço.
O primeiro ponto que ele vai
exigir é o descongelamento das negociações sobre a adesão da Turquia à União
Europeia. Trata-se de uma questão extremamente sensível para Recep Tayyip
Erdoğan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento. Na verdade, eles vêm lidando
com isso, com idas e vindas, desde 2005. Erdoğan sabe que é difícil incluir um
país muito populoso, com quase 80 milhões de pessoas (população semelhante à
alemã), na União Europeia – e isso fica pior ainda se esse país for bem mais
pobre do que os europeus. Além disso, some-se a possibilidade de tornar a
vizinhança complicadíssima da Turquia em fronteira europeia e nota-se que a
adesão é quase impossível. Por fim, há a questão cultural, que afeta tanto
xenófobos: muçulmanos passariam a ser uma força muito grande no continente que
define seus valores, suas leis, sua ética e, em última análise, sua própria
identidade, pelo cristianismo. Tarefa impossível fazer da Turquia parte da
União Europeia – e, no entanto, foi esse o peixe que Erdoğan e sua turma
venderam. Na verdade, um dado ilustra claramente a desconfiança não verbalizada
dos europeus em relação aos turcos: os nacionais da Turquia não contam até hoje
sequer com uma isenção de visto para entrar na Europa, coisa que o Brasil, país
em nível semelhante de desenvolvimento, já tem desde a década passada, por
exemplo. Todavia, é forçoso notar que Erdoğan, ao perceber que não conseguiria
da União Europeia coisa alguma além de colaborações em áreas importantes (além
de ser membro da OTAN, Ankara negocia junto com Bruxelas a participação na
Parceria Transatlântica), Erdoğan tentou se livrar do estorvo: esbravejou,
anunciou prazos de tolerância para uma decisão de Bruxelas etc. e não tocou
mais no assunto para evitar a percepção de fracasso por parte de seus
eleitores. Fazer com que Bruxelas anuncie agora uma reabertura pública das
negociações com Ankara – de preferência, com todas as pompas pertinentes –
seria um trunfo político grande demais para uma raposa felpuda como Erdoğan
deixar escapar por entre os dedos. Além disso, ele certamente espera que a
União Europeia pare de elaborar seguidos relatórios e críticas às ações
autoritárias que são tão caras ao grupo político de Erdoğan, como a perseguição
a opositores e mesmo o uso da existência de ações do ISIS na Síria como uma mal
disfarçada desculpa para bombardear posições de rebeldes curdos. Depois de um
atentado terrorista perpetrado por dois homens-bomba em um protesto basicamente
curdos contra o governo de Erdoğan no começo de outubro, Erdoğan teve um
pretexto para endurecer a repressão. E, por fim, obviamente, Erdoğan vai exigir
dinheiro, muito dinheiro de Bruxelas para poder reter os refugiados na Turquia
e evitar que eles cheguem à União Europeia. Em suma, com a vitória nas eleições
parlamentares, Erdoğan teve a certeza de que Bruxelas dará tudo o que ele
pedir: dinheiro, reabertura das negociações e, principalmente, os valores da
União Europeia. Erdoğan venceu.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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