A Segunda
Batalha de El Alamein
Há uma irresistível mudança
política em curso em tantos países na América do Sul que há, na verdade, uma
coleção de mudanças no continente. O centro-esquerda vem cedendo espaço ao
centro-direita como preferência do eleitorado em quase países simbólicos para a
região, independentemente do grau de democracia. Há duas semanas, vimos isso
acontecer na Argentina, com a vitória de Maurício Macri marcando o início do
fim dos anos de hegemonia dos Kirchner. Ontem, Nicolás Maduro sofreu uma
acachapante derrota na Venezuela, marcando o início do fim dos anos de
inspiração no coronel Hugo Chávez. Por fim, na semana passada, o Congresso
Nacional abriu um processo de impeachment contra Dilma Rousseff, marcando o
início do fim da hegemonia do PT no Brasil. Tantos inícios de fim juntos
remetem à famosa frase de Winston Churchill após a vitória dos Aliados sobre o
Eixo na Segunda Batalha de El Alamein (Egito, 1942 – três meses antes, na
Primeira Batalha de El Alamein, os Aliados impediram o avanço do Eixo, mas não
conseguiram uma vitória), quando o até então invencível Erwin Rommel perdeu
para Bernard Montgomery: “Isso não é o fim, não é mesmo o começo do fim, mas,
talvez, seja o fim do começo.” Vencer Rommel, o Wüstenfuchs(“Raposa do
Deserto”) e seu temido Afrikakorps (“Batalhão da África”) foi tão
importante para o moral dos Aliados que Churchill anotaria, em suas memórias,
que, enquanto “antes de El Alamein nunca tivemos uma vitória, depois de El
Alamein nunca tivemos uma derrota.” Foi um ponto de inflexão na II Guerra
Mundial. Depois dele, nada mais seria igual: a derrota do Eixo deixou de ser
impossível e passou a ser inexorável nas areias do Egito. Assim como o
impeachment de Dilma Rousseff: desde a admissão do pedido pelo
inacreditavelmente ainda presidente da Câmara dos Deputados, sua Segunda
Batalha de El Alamein começou. E o prognóstico não lhe é favorável.
A América do Sul virou um terreno
fértil para governos populistas e autoritários nos anos 2000 por conta de
diversos fatores, dentre os quais o principal foi uma forte apreciação dos
termos de troca com o exterior. Resumidamente, os produtos que os países da
região exportam passaram a ser relativamente mais valorizados do que os
produtos e serviços que eles importam. Passaram, na prática, a ficar
relativamente mais ricos frente aos demais países do mundo. Isso significou uma
expansão da renda sem precedentes do passado recente desses países. Ao invés de
usarem a bonança – que é finita, por definição – para se desenvolverem,
promovendo reformas estruturais que preparassem seus sistemas produtivos para a
economia baseada no conhecimento, optaram por um modelo de crescimento baseado
no consumo. Assim, o dinheiro que chegava fácil não financiou uma revolução na
educação no continente nos moldes que países como Japão e Coreia do Sul
experimentaram; do contrário, intensificou-se na região o paradoxo de pessoas
que possuíam produtos extremamente sofisticados em casas sem saneamento básico.
Obviamente, não há dúvidas de que poder consumir mais mantido todo o resto
constante é preferível a apenas manter todo o resto constante. Mas, mais
obviamente ainda, não há dúvidas de que melhorar os níveis de educação mantendo
o resto constante é ainda mais preferível, uma vez que representa uma
preparação para o futuro. Foi essa visão de estadista que faltou para os governos
de esquerda que grassaram na América do Sul nos anos 2000: deveriam ter adotado
medidas impopulares no curto prazo para preparar seus países para o longo
prazo; na verdade, se o tivessem feito, já estariam começando a colher os
frutos da semeadura e se manteriam no poder por muito mais tempo, em bases
sustentáveis. Não o fizeram e agora enfrentam as inexorabilidades: estão
marchando rumo ao fim. Cada um se vê como um Rommel (na verdade, comparar
pessoas como Cristina Fernández de Kirchner, Nicolás Maduro e Dilma Rousseff a
Erwin Rommel é uma injustiça para com o grande militar alemão: o Wüstenfuchs foi
respeitado por seus comandados e por seus adversários – o próprio Churchill
tece fartos elogios a ele em suas memórias – e era tido como um oficial
prussiano de almanaque, disciplinado e cavalheiresco no sentido mais amplo da
palavra, incapaz de atingir um adversário caído ou pelas costas ou de
desrespeitar as regras da guerra – Rommel simplesmente ignorou as ordens de
Hitler para atacar alvos civis ou perseguir judeus e tratava seus prisioneiros
de forma digna e, depois, porque liderou a conspiração para assassinar oFührer em
1944, acabou sendo condenado à morte, com Hitler autorizando que ele se
suicidasse para esconder o complô e não gerar comoção popular por matar um
herói nacional) diante de sua Segunda Batalha de El Alamein particular. Seus
pontos de inflexão particulares.
Na Argentina, Maurício Macri
venceu a versão platina da Segunda Batalha de El Alamein e jogou a pá de cal no
populismo do Casal Kirchner, mas há outros exemplos. Em relação à Venezuela,
sócia do Mercosul graças à mais vergonhosa ação da diplomacia brasileira em
décadas, Macri afirma que, se o país bolivariano continuar a manter
características de ditadura (presos políticos, censura etc.), ele vai seguir o
velho ditado francês: Il faut appeler un chat un chat (“Deve-se
chamar de gato a um gato”) para dizer o óbvio – se a Venezuela age como uma
ditadura, então a Venezuela é uma ditadura. Horácio Cartes, presidente do
Paraguay, país que foi escandalosamente escanteado para Brasil e Argentina
colocassem a Venezuela para dentro do Mercosul, deu declaração nesse sentido
recentemente sobre a Venezuela, afirmando que não há porque ele chamar ditadura
de outra coisa senão ditadura. A posição do Uruguay não difere. Apenas o Brasil
continua defendendo o aprendiz de tirano bigodudo que dá expediente no Palácio
de Miraflores, mas, mesmo que Dilma Rousseff consiga se manter no poder, a
posição que ela e seu partido vêm obrigando o Itamaraty a defender não se
sustenta sozinha. Aliás, na própria Venezuela, é bem provável que Maduro não
termine seu mandato: com a derrota de ontem, a oposição passa a controlar o
Parlamento e o recall de Maduro já pode acontecer pelo voto popular
em 2016 – algo bem plausível para um presidente com a popularidade no chão e em
uma economia em frangalhos. Maduro já é um espectro assombrando as vidas dos
venezuelanos, mas ainda poderá resistir no cargo por um bom tempo antes de ser
definitivamente relegado ao lixo da história. De qualquer modo, é inexorável –
Maduro já está acabado: falta apenas saber como será o fim dele, porque ele
teve uma derrota digna de Segunda Batalha de El Alamein ontem. No Brasil, Dilma
Rousseff começou sua Segunda Batalha de El Alamein na semana passada. No papel,
ela tem números suficientes para impedir o impeachment – mas o papel
aceita tudo: vale sempre lembrar que Collor de Mello também tinha, mas, à
medida que o processo de impeachment vai evoluindo, tudo muda ao
sabor da opinião pública, o que é uma péssima notícia para a presidente mais
impopular na história das pesquisas de popularidade. A situação de queda dela
também vai ganhando contornos de inexorabilidade: se conseguir matar o impeachment no
nascedouro, ainda ganha sobrevida; se não, com o processo acontecendo e
ganhando atenção popular, será mera questão de tempo para que o Congresso
Nacional reflita a rejeição recorde que ela tem junto ao povo brasileiro e vote
pela sua saída. E, mesmo que consiga sobreviver, ainda há outros processos de
impeachment possíveis (vale lembrar que o Congresso ainda não apreciou a
rejeição das contas dela pelo Tribunal de Contas da União – um fato claro para
um novo pedido de impeachment) e há a claríssima possibilidade de o
Tribunal Superior Eleitoral cassar a chapa dela em 2014 por conta de
irregularidades associadas a benefícios decorrentes do Petrolão, cada vez mais
provados conforme a Lava-Jato avança rumo aos escalões superiores do PT. Ou
seja, a queda de Dilma Rousseff é inexorável, gostemos disso ou não. O ponto de
inflexão chegou: a versão tupiniquim da Segunda Batalha de El Alamein começou
na semana passada em Brasília. Já sabemos o resultado dela antes mesmo de ela
começar.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
Comentários
Postar um comentário