Bienvenido,
Mauricio Macri!
A América do Sul finalmente
começou a década de 2010. Com um belo atraso, é verdade, mas começou. A
prevalência de governos de esquerda, típica da década de 2000, chegou ao fim. O
processo é lento e assimétrico, mas é inexorável. Para ficar apenas nos países
do Mercosul, notamos o Paraguay afastar-se da esquerda com o impeachment de
Fernando Lugo, o bispo que colecionava filhos ilegítimos. Isso foi em meados de
2012. Desde então, a nação guarani tem seguido o receituário de abertura e
liberalização da economia. Em Assunção, Horácio Cartes considera-se um amigo
dos negócios de tal monta que há muitas empresas de Argentina e Brasil
simplesmente transferindo suas plantas fabris para o sócio mediterrâneo do
Mercosul em função do melhor ambiente para produzir: menores custos e,
principalmente, mais racionalidade e menos burocracia. No Uruguay, idem – em
que pese toda a liberalização de costumes promovida pelo bonachão “Pepe”
Mujica, o país charrua é o sócio mercosulino que mais brada por novos acordos
comerciais – e que mais reclama das obstruções de Argentina e Venezuela, bem
como do silêncio obsequioso do Brasil. Com Tabaré Vásquez, Montevidéu segue no
mesmo caminho e a Banda Oriental parece ter adotado como consenso a necessidade
de se abrir para o mundo. Na Venezuela, a morte de Hugo Chávez em 2013 deixou o
país à beira do caos, levando consigo o modelo assistencialista financiado
pelos altos preços do petróleo. O efeito é dramático: os ganhos de renda dos
venezuelanos mais pobres ao longo dos anos 2000 foram simplesmente revertidos
desde a morte dele. O preço do petróleo (virtualmente o único bem que Caracas
exporta) está em queda livre por conta de fatores externos (os americanos
vinham batendo recordes com a produção de folhelho até os sauditas toparem
bancar uma guerra de preços exatamente para neutralizar a produção americana,
que é simplesmente insustentável com o barril em torno de 50 dólares) e a
situação interna de Nicolás Maduro é insustentável, com inflação, recessão,
arroubos autoritários, criminalidade e perigosíssimas acusações de cumplicidade
entre a cúpula chavista e o narcotráfico internacional alimentando o fogo do
caldeirão no qual o chavismo está-se transformando em lavagem. No Mercusul, a
nação bolivariana ainda contava com o apoio de Argentina e Brasil para seguir
viva. A mudança venezuelana deve começar no próximo mês, com a provável vitória
da oposição em eleições legislativas, uma vez que os subterfúgios já usados em
ocasiões anteriores não contarão com ouvidos moucos em Buenos Aires: com a eleição
de Mauricio Macri ontem, a saída de Maduro é mera questão de tempo, uma vez que
terá um opositor às suas políticas na Casa Rosada, ao mesmo tempo em que sua
apoiadora no Palácio do Planalto está mais preocupada em manter a própria
cabeça sobre o pescoço do que em salvar outros de guilhotinas metafóricas que
não a sua. A eleição de Macri, portanto, é o proverbial ponto de inflexão na
política sul-americana: a partir dela, não há mais dúvidas de que o continente
entrou na década de 2010.
A Argentina é como o Brasil: não
é para amadores, especialmente na política. Tentar entender como dois
candidatos peronistas disputam a sucessão de uma presidente peronista e são
adversários entre si é algo para dar nó na cabeça de qualquer um. E, todavia, é
exatamente assim: Cristina Fernández de Kirchner é peronista e escolheu como
candidato à sucessão Daniel Scioli, também peronista, que perdeu a disputa para
o peronista Mauricio Macri. Olhando assim, parece que todos são farinha do
mesmo saco. Não são. É preciso entender que a política argentina gira em torno
do peronismo desde meados do século passado. Juan Domingos Perón definiu uma
linha de atuação populista que mudou a história política argentina. À parte sua
conturbada vida pessoal (que incluiu de acusações de enriquecimento ilícito a
romances com dançarinas de cabaré e meninas adolescentes até uma admiração
pública pelos nazistas e fascistas), Perón presidiu o país logo após a
decadência da Argentina se insinuar pela primeira vez, na chamada Década
Infame, os anos 1930. A Argentina, então um país de primeiro mundo, começaria
naquela década uma descida rumo ao terceiro mundo (ditaduras, inflação,
pobreza, populismo etc.) que não teve mais fim, mas que Perón conseguiu
estancar durante os anos 1940 e 1950. Embora se olhe para os anos de Perón com
a lente do populismo, é muito pouco para entender o fenômeno. Sim, Perón
nacionalizou empresas, mas também pagou a dívida externa argentina. Aumentou
salários e lucros, de carona em uma industrialização por substituição de
importações. Foi, em grande medida e sem exagero, como os anos de Getúlio
Vargas no Brasil: cada facção política escolheu o retalho que lhe interessava e
deliberadamente ignorou os demais – vale lembrar, sempre, que Vargas não queria
criar o monopólio estatal do petróleo e foi forçado a fazê-lo pelo Congresso
Nacional e, ainda assim, grupos trabalhistas tenham, a posteriori, usado
isso como “prova” de nacionalismo dele. Por isso, há tantos peronismos na
Argentina: os anos de Perón permitiram que estranhos peronismos à la carte surgissem
no país platino, com cada grupo escolhendo apenas o que lhe seria conveniente
do peronismo. Como agora, com um presidente eleito peronista sendo opositor da
presidente peronista. O peronismo de Mauricio Macri difere e muito daquele de
Cristina Fernández de Kirchner – incidentalmente, o peronismo dela também
diferia, embora menos, do peronismo de Daniel Scioli, o candidato derrotado que
ela apoiou. Mas o peronismo de Macri tem realmente algo de diferente, embora
não novo: ele tem apoio da União Cívica Radical. E isso muda tudo.
Alberto Sanz é o líder da União
Cívica Radical que mais apareceu na campanha de Mauricio Macri. Na verdade,
Macri foi eleito por uma coligação de nomeCambiemos (“Mudemos” ou
“Troquemos”, uma nada sutil alusão ao desgaste gerado após 12 anos de
kirchnerismo na Argentina), que tem a UCR como um dos pilares. A questão é que
a UCR é o mais antiperonista dos partidos argentinos, além de ser o mais antigo
– sua fundação remonta ao Século XIX. Durante a Década Infame e os
anos de Perón, a UCR foi a principal legenda de oposição. Foi ali que se
fomentou seu antiperonismo. Teve seus momentos de poder com Arturo Frondizi (de
excelente memória na diplomacia dos dois países: o encontro de Frondizi com
Jânio Quadros em Uruguaiana é citado até hoje pelo Itamaraty como o melhor
“espírito” que as relações bilaterais podem ter) e Arturo Illia, mas a luta
contra o peronismo foi mais forte – Illia seria eleito em uma época na qual a
UCR conseguiu proibir o peronismo de participar de eleições. É bom que se diga
que as hostilidades eram recíprocas. Desde Raúl Alfonsín (outro de excelente
relação com o Brasil: junto com José Sarney, deu início ao que seria conhecido
depois como Mercosul), todavia, a UCR não chega ao poder na Argentina. O fato
de ter chegado agora, abraçada com um peronista, indica que as fronteiras
político-ideológicas que tanto marcaram a Argentina talvez estejam se
dissolvendo. Ainda é cedo para afirmar, claro. As ideias de Mauricio Macri,
todavia, são bem mais próximas daquelas da UCR do que daquelas clássicas do
peronismo – ao menos do populismo baseado no “peronismo à la carte” que se
convencionou tomar como peronismo nas últimas décadas. Os problemas platinos
que Mauricio Macri vai herdar em poucas semanas são conhecidos. Inflação
galopante, governo perdulário, reservas internacionais minguando, default da
dívida externa, quebra de contratos, corrupção, manipulação de informações,
política externa ideologizada etc. etc. etc. são desafios fenomenais. Porém, a
favor de Macri há o fato de a UCR estar no governo, o que pode criar condições
políticas favoráveis para que Macri adote as medidas impopulares tão
necessárias para que a Argentina possa voltar a ser um país próspero, apesar da
previsível oposição do peronismo kirchnerista. Bienvenido, Mauricio Macri!
Boa sorte!
Pedro Nascimento Araujo é economista.
Comentários
Postar um comentário