A
quarta chance
Em Paris, o final da XXI
Conferência das Partes (COP-21, na sigla em inglês) da Convenção-Quadro Sobre
Mudanças Climáticas atingiu um resultado espetacular. A Cidade-Luz, que um mês
antes havia sido tomada pelas trevas dos agentes do Daesh, ficará marcada
também como o nome do pacto que encerrou a Era do Carbono, doravante conhecida
como Era do Petróleo, que foi responsável por um avanço fenomenal para a
humanidade. A onipresença do petróleo em nossas vidas era tal que cometemos
usualmente o erro de pensar nele apenas como sinônimo de gasolina ou diesel.
Nada mais distante da realidade. Na verdade, quando estamos dirigindo um
automóvel em uma rodovia, a gasolina em nosso tanque é a menor parte. De fato,
o asfalto da estrada é petróleo. O pneu do veículo é petróleo. Os lubrificantes
do motor são petróleo. Todas as partes de plástico do carro são petróleo. As
telas de refração das placas também são petróleo. As folhas do sanduíche que o
motorista come foram adubadas com organoclorados de petróleo e usam pesticidas
também baseados em petróleo. A própria embalagem do lanche que o motorista come
despreocupadamente também é petróleo. Aliás, sem o diesel extraído do petróleo,
nem o plantio, nem a colheita e nem o transporte do próprio lanche seriam
possíveis. Obviamente, também há petróleo no sanduiche em si, na forma de
corantes, conservantes, espessantes etc. E por aí vai: para aonde quer que se
olhe com um pouco mais de atenção, fica imediatamente claro que o petróleo só
não é mais onipresente do que Deus em nossas vidas – e, para os ateus, nem essa
relativização pode servir de consolo... A partir de Paris, a humanidade
combinou algo que, em retrospecto, soa bastante óbvio: parar de queimar um
recurso finito e tão cheio de possibilidades e se concentrar em usá-lo para
todas as outras coisas. Para a economia baseada em queima de carbono: obrigado.
E adeus.
É curioso entender sobre como era
o mundo antes do petróleo iniciar seu reinado. Cidades eram inviáveis sem
automóveis. Em Nova York, três pés (algo em torno de um metro) de sujeira de
cavalo se acumulavam nas guias das ruas todos os dias. As charmosas entradas
com entradas elevadas por escadas são testemunhos de uma época na qual as
pessoas literalmente escalavam montes de estrume antes de entrar em casa.
Diariamente, dezenas de cavalos que quebravam as patas eram sacrificados por
agentes públicos no meio da rua e suas carcaças eram deixadas nos cantos para
serem recolhidas junto com o estrume ao final do expediente. Além disso, as
casas eram iluminadas com óleo de baleia, o que ensejou a caça predatória aos
grandes cetáceos. Sem plástico, embalava-se tudo em papel e cozinhava-se com
lenha, fatores que ajudaram a dizimar florestas. Não, a humanidade sem petróleo
não era melhor para o mundo. Porém, enamorados que estivemos com o
hidrocarboneto, passamos a utilizá-lo para tudo, literalmente tudo. E
resolvemos queimá-lo para produzir energia. Agora, chegou a conta na forma do
efeito-estufa: o fim do caminho para a encarnação do petróleo (e do carvão
também, bien sûr!) como combustível foi decretado em Paris.
Quando 188 nações se dispõem a
aceitar abrir mão de usar petróleo e carvão como combustíveis, algo muito
importante acontece: o tiro de partida para a corrida para estabelecer quais
novas formas de geração de energia vão substituir os hidrocarbonetos foi dado
de forma inequívoca. Conforme já vimos, o petróleo será usado nas formas mais
inteligentes - basicamente, para a indústria petroquímica enquanto para o
carvão restará uma inexorável e progressiva irrelevância para as próximas
décadas. Tendo isso em mente, a questão que nos interessa é como o Brasil
deveria posicionar-se diante desse cenário. Vamos recapitular: em Paris, o
mundo decidiu que o petróleo como fonte de geração de energia pode acabar
reduzido a zero até o final do Século XXI. Em outras palavras, com o petróleo
paulatinamente sendo direcionado apenas para o uso petroquímico, vai sobrar
petróleo – o “ouro negro” será rebaixado a bauxita: em bom português, o
petróleo não mais será caro e não mais será fonte de poder para tiranetes. Por
isso, em que pesem os discursos ufanistas acerca do pré-sal brasileiro, o mais
provável é que não seja economicamente viável perfurar quilômetros de sal para
extrair um recurso que pode ser facilmente bombeado a custos gritantemente
inferiores das gigantescas reservas abaixo das areias sauditas em um cenário de
abissal queda de consumo. A geração de energia no mundo será direcionada para
fontes limpas. Assim, o Brasil precisa aproveitar a zeragem da corrida por
fontes de energia. E, nesse ponto, as vantagens podem acorrer para as terras
tupiniquins: há um conceito econômico bastante explorado nos meios acadêmicos
chamado cadeias globais de produção e de valor. Basicamente, leva os preceitos
econômicos clássicos de especialização e divisão internacional da produção,
desenvolvidos a partir de Adam Smith por David Ricardo e outros (com destaque
para o modelo de Hecksher-Ohlin), para a logística da globalização. Ou seja, países
não se especializariam mais em produtos ou serviços, mas sim em etapas do
processo de geração de valor. O exemplo de livro-texto para as cadeias globais
de valor é a produção de aeronaves: cada componente é produzido em um país.
Assim, o produto final da Embraer, por exemplo, conta com projeto brasileiro,
motor americano, asa europeia etc. Essa lógica tende a prevalecer cada vez mais
no mundo. E, por causa da CPO-21, essa lógica enseja uma oportunidade de ouro
para o Brasil para ser o foco de energia da cadeia global de produção.
É um momento crucial. Ou agimos
agora ou ficaremos para trás em mais uma revolução industrial. Seria uma
inacreditável quarta vez em quatro séculos (circa 1760: I Revolução
Industrial – baseada nas máquinas, aumentou a produtividade dos trabalhadores e
levou os britânicos ao topo do mundo; circa 1850: II Revolução
Industrial – baseada em comunicações e petróleo, levou americanos, alemães e
japoneses ao rol dos países mais poderosos do mundo; circa 1970: III
Revolução Industrial – baseada em informação, manteve os americanos na
liderança e está em curso, com a redução de custos e o aumento de produtividade
propiciados pela robotização e pela internet sendo seus mais visível efeitos)
que perderíamos o bonde da prosperidade. Uma hipotética IV Revolução
Industrial, baseada em fontes renováveis de energia, tem o potencial de mudar o
mapa de geração de valor do mundo. Senão, vejamos. A chave para isso é entender
a energia, notadamente sob a forma de eletricidade, como um insumo produtivo.
Muitos dos produtos industriais mais importantes do mundo são intensivos no uso
de energia. O caso mais emblemático é o do alumínio. Grosso modo, o que
conhecemos como alumínio é a composição de três matérias-primas: óxido de
alumínio (alumina processada, extraída da bauxita por refinamento), carbono e
eletricidade. Em uma reação química (eletrólise), a eletricidade induz a quebra
do óxido de alumínio para gerar alumínio puro (líquido) e gás carbônico. A
eletricidade corresponde a um terço do valor do alumínio. Como a bauxita tem
preços iguais em qualquer lugar do mundo (definido na Chicago Mercantile
Exchange) e com o carbono não é muito diferente, será competitivo na produção
de alumínio quem tiver menores custos de geração de eletricidade. Em uma economia
baseada em petróleo ou carvão, África do Sul e Austrália são grandes produtores
de alumínio porque geram energia basicamente por queima de petróleo e carvão,
enquanto o Brasil tem uso bem maior de hidroeletricidade para produzir alumínio
– não é exagero dizer que Tucuruvi foi construída para gerar energia para
transformar a bauxita em alumínio e, com isso, o Brasil exportar o produto
final de maior valor agregado ao invés da commodity. Em uma economia sem
petróleo e carvão, sul-africanos e australianos estão automaticamente fora do
jogo. A mesma lógica se aplica diretamente na cadeia produtiva do aço:
exportamos minério de ferro, mas poderíamos exportar ligas de aço de altíssimo
valor agregado usando nióbio (temos muitas reservas) e eletricidade. A lista é
longa e inclui virtualmente todo produto processado industrialmente, inclusive
alimentícios – com a tendência de disseminação da robotização, o diferencial de
salários tende a diminuir e o custo da eletricidade passa a ser o fiel da
balança na composição das cadeias globais de produção e de valor. Resumindo, é
simples assim: quem for mais eficiente na geração de energia sem petróleo e
carvão será ponto focal na logística mundial. E o Brasil tem potencias
vantagens comparativas nesse aspecto: litoral sem incidências de tsunamis
permite a geração maremotriz, ventos constantes são base para a energia eólica,
ausência de atividade vulcânica permite uso de energia geotérmica, drenar mais
de 20% da água doce de superfície do mundo permite um uso hidroelétrico sem
similar no mundo, ter a maior parte do país nas faixas tropical e equatorial é
uma dádiva para a energia solar, grandes reservas de urânio asseguram
fornecimento autônomo de combustível nuclear etc. As possibilidades estão dadas
e são enormes. O Brasil tem a chance única de se preparar para ser o ponto
focal de logística na produção de bens intensivos em energia: basta envidar
esforços para desenvolver tecnologia nessa área, aonde seriamos um dos poucos
países a unir capacidades técnica e material. Se fizermos isso a contento,
seremos líderes mundiais na IV Revolução Industrial, cujo passo inaugural foi
dado em Paris na última semana, quando se encerrou a COP-21. Simplesmente, não
podemos nos dar ao luxo perder a quarta chance de liderar uma Revolução
Industrial. A julgar pela média histórica, a próxima será apenas no Século
XXII. Se já estamos atrasados demais agora, não é bom sequer pensar como
seríamos com mais um século de atraso nas costas.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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