As
paredes de Queluz
A memória afetiva de qualquer
povo tem suas peculiaridades. Especificamente, a memória coletiva brasileira
registrou D. João VI positivamente. Em pleno 1957, portanto a três anos da
inauguração de Brasília, a um ano do lançamento de Chega de Saudade, marco zero
da Bossa Nova, e a um ano da vitória sobre a Suécia na Copa do Mundo de 1958,
todos marcos de um Brasil que se modernizava, deixava para trás o complexo de
vira-latas e encantava o mundo com uma capital futurista, um futebol
mesmerizante capitaneado por Garrincha e Pelé e uma música que tornaria o
maestro soberano Antônio Carlos “Tom” Jobim um dos maiores artistas do mundo, o
samba-enredo da Portela tratou de passado: Legados de D João VI foi o primeiro
de um tetracampeonato da Águia de Madureira. A letra do grande sambista Candeia
(com Picolino e Waldir) cita fatos históricos bem conhecidos, como a abertura
dos portos, a fundação da imprensa e a invasão da Guiana Francesa, para
introduzir o refrão: “Viva o grande monarca / Regente do destino do Brasil”.
Todavia, não há na letra qualquer menção àquela que foi a Rainha do Brasil até
sua morte no Rio de Janeiro já como Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
em 1816. A razão? D Maria I, a Rainha de jure, não era a Rainha de
facto há muito: após a morte de seu marido, ela enlouqueceu e já não mais
poderia governar, muito menos em plenas Guerras Napoleônicas. Já há muito
isolada no convento do Palácio de Queluz quando da transmigração da Corte, a
soberana carola foi peça decorativa até sua morte. A história sequer registra a
maior parte do governo dela como sendo dela – oficialmente, desde 1792 D João
assumiu o papel que já desempenhava oficiosamente há muito. Para os
brasileiros, ficou para ela apenas a lembrança de “D Maria, a Louca” e de D
João como o “Regente do destino do Brasil.” Exatos dois séculos após a criação
do Reino Unido, a mais genial e menos celebrada obra de D João VI (malgrado sua
curta duração: criado em 1815 por sugestão do Príncipe Talleyrand,
representante francês no Congresso de Viena, o Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves sofreria abalos terminais com o Grito do Ipiranga em 1822, com a
Guerra de Independência que se seguiu a ele tornando impossível nos termos
tornado uma versão lusófona da Commonwealth of Nations), vivemos uma situação
semelhante: Dilma Rousseff, quem deveria governar o Brasil, não governa de
fato. E, pior, falta-nos o “Regente do destino do Brasil”, aquele que comandou
Portugal enquanto D Maria I gritava suas ordens insanas para as paredes do
Palácio de Queluz.
Traçar paralelos entre Maria
Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana (D Maria I) e Dilma Vana
Rousseff é um exercício complicado pela mais óbvia das razões: Rousseff não é
louca. Todavia, entre ambas há a inegável situação de terem perdido o controle
de seus respectivos governos, com clara vantagem para “A Louca”: D Maria I
perdeu o poder e ponto final. Rousseff, não: ainda acha que tem poder, quando
não mais o tem. Na prática, ela não é mais chefe de estado há muito. Como não
foi interditada, tem espasmos de achar que comanda o Brasil e faz coisas como
sabotar e fritar até demitir Joaquim Levy. Não é loucura; aliás, antes fosse,
porque seria perdoável. É apenas um erro monumental, que pode parecer
insanidade, mas decididamente não é. Dilma Rousseff é a pior presidente do
Brasil segundo os próprios brasileiros: nunca um governante deparou-se com
rejeição no nível da dela, nem mesmo Collor de Mello. Isso, per se, é um
feito memorável. Mas piora. Os dados da economia são péssimos e ainda não atingiram
o fundo do poço. Inflação em dois dígitos, desemprego chegando rapidamente lá,
investimentos em queda livre, zero de confiança por parte do mercado etc. etc.
etc. – e mais etc.: não há boas notícias nesse front e não haverá tão cedo. A
origem desses problemas é 100% responsabilidade dela. A tal Nova Matriz
Macroeconômica já entrou para os anais da histórica econômica nacional como um
desastre comparável ao Encilhamento de Ruy Barbosa ou o confisco de Collor de
Mello. Gestada com DNA fornecido pela própria Dilma Rousseff e tendo como
ventre de aluguel o anódino Guido Mantega, a Nova Matriz Econômica foi embalada
por Arno Augustin e Nelson Barbosa. O resultado? Depressão, um termo econômico
que basicamente indica recessão para lá de grave e prolongada. Por isso,
Rousseff foi obrigada a chamar Joaquim Levy para ser como uma tutora prussiana
para seu filho mimado. Ótima ideia – exceto pelo fato de que admoestava a
educadora sempre que esta se mostrava rígida com o miúdo. Na prática, sabotou o
trabalho de Levy sistematicamente. A governanta tedesca se cansou de ser
tratada como incompetente por quem sabotava seu trabalho e, germanicamente,
pediu as contas sem alarde. Para educar o menino, Rousseff contratou alguém de
acordo com sua ideia torta de que fazer todas as vontades do menino não o
tornaria mimado: Nelson Barbosa. Não há como dar certo – e até as paredes do
Palácio da Alvorada sabem disso.
D Maria I viveu mais de duas
décadas alijada da condição de governante. Suas ordens só eram ecos nas paredes
rococós do Palácio de Queluz e, depois da transmigração, nas paredes mais
discretas do Convento do Carmo. Ninguém duvidava das boas intenções dela.
Ninguém duvidada da honestidade dela. O problema é que ninguém confiava na
capacidade dela de governar – e estamos falando de uma monarca absolutista, com
poder lastreado no direito divino. A capacidade de governar, decididamente, D
Maria I havia perdido, por mais poderosa que fosse. Finalmente chegamos ao
ponto que iguala D Maria I e Dilma Rousseff: incapacidade de governar – uma
pela loucura completa, outra pela perda completa de sustentação política. D
Maria I, a Louca, todavia, teve mais sorte do que Dilma Rousseff: contava com
seu filho, o Príncipe Regente D João, um “grande monarca” que assumiu as rédeas
do reino quando sua mãe não tinha mais condições de fazê-lo. A patente loucura
dela foi fator determinante para tanto. Ao gritar ordens desconexas em Queluz,
não havia mais como negar seu impedimento para o cargo. Lusitanamente, o filho
não fez o uso do trono da mãe para usurpá-lo; do contrário, o fez para
preservar todos (Portugal, Coroa e mãe) de usurpadores que certamente
grassariam em meio ao caos de um Reino que se dissolveria a olhos vistos. Dilma
Rousseff não tem seu D João. Aliás, o Palácio da Alvorada mal tem paredes,
sendo mais afeito a vidraças. E o Brasil tem menos esperança ainda de que Dilma
Rousseff volte atrás na ideia insana de colocar Nelson Barbosa para comandar o
Ministério da Fazenda. Nos tempos de D Maria I, a Louca, apenas as paredes do Palácio
de Queluz aquiesceriam com seus obsequiosos silêncios diante de tão absurda
ordem – e mais nenhum português. Nos tempos de Dilma Rousseff, 200 milhões de
brasileiros são obrigados a sofrer com estapafúrdia ideia de que Dilma Rousseff
e Nelson Barbosa usarão as mesmas medidas que usaram para criar a atual
depressão econômica para debelá-la. A proposição é tão surreal que ninguém se
espantaria se as parcas e inanimadas paredes do Palácio da Alvorada criassem
vida e sussurrassem para a autora da ideia, com o sotaque de Portugal dos dias
em que D Maria I disparava impropérios ao vento no Palácio de Queluz: “Vós
também enlouquecestes, augusta senhora?”
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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