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"Oxigênio na Arábia Saudita", por Pedro Nascimento Araujo


Oxigênio na Arábia Saudita

As críticas ao fundamentalismo religioso muçulmano costumam se concentradas em países como Afeganistão, Paquistão e Irã. São merecidas, diga-se. No Afeganistão, o Taleban criou um regime de terror que apedrejava (eufemisticamente, o termo usado era “lapidar”) pessoas consideradas daninhas ao regime. No Paquistão, há imensas áreas sob o domínio de terroristas e, mais recentemente, a minoria cristã do país virou alvo preferencial de atentados que, não obstante serem direcionados a ela, acabam invariavelmente vitimando mais muçulmanos do que cristãos. E, no Irã, a ditadura dos aiatolás continua sendo uma das que mais matam no mundo por motivos políticos e religiosos. Isso dito, há um grande sujeito oculto. Há um enorme violador de direitos humanos que, por sua parceria militar com o Ocidente, acaba sendo relegado a segundo plano: a Arábia Saudita. O reino da Casa de Saud é um dos campeões de práticas bárbaras como crucificação, lapidação e chibatadas. Lá, menores de idade podem ser condenados a penas capitais e mulheres podem ser castigadas fisicamente nas ruas pela temida Polícia Religiosa. Ou melhor: podiam – de acordo com um projeto aprovado na última semana, a atuação ostensiva da Polícia Religiosa, associada a abusos do quilate de estupros, torturas e mortes, pode estar com os dias contados.

A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista, daquele tipo que o Ocidente começou a extinguir há sete séculos, com a Carta Magna dos nobres ingleses contra o rei João Sem Terra. Todavia, ao contrário dos sucessores do rei que primeiro teve seus direitos temporais reduzidos por uma lei secular, os descendentes de Saud governam por vontade divina. A fundamentação é o wahabismo, uma corrente para lá de fundamentalista. A simbiose entre e Muhammad ibn Saud e Muhammad ibn Abd-al-Wahhab remonta a 1744, quando eles se aliaram e fundaram o então Emirado de Diriyah – origem da atual Arábia Saudita. Ou seja, a Casa de Saud tem no wahabismo sua sustentação divina, ao passo que o wahabismo tem na Casa de Saud sua sustentação terrena. A existência independente de cada um deles é incerta. Juntos, todavia, controlam a maior potência muçulmana do mundo e financiam a expansão do wahabismo por meio de madraças em diversos países, como Paquistão, Egito, Afeganistão etc. Nesses lugares, oficialmente escolas de estudos islâmicos, a radicalização é a tônica. Com a parceria, o wahabismo se tornou a base de movimentos radicais sunitas, que vão da Irmandade Muçulmana ao Hamas. E, dentro da Arábia Saudita, têm sua face mais visível na temida Polícia dos Costumes. É ela quem está sofrendo a mais notável mudança desde que Muhammad ibn Saud e Muhammad ibn Abd-al-Wahhab se deram as mãos há quase três séculos.

Mohammed bin Salman tem apenas 30 anos e é vice-príncipe herdeiro, um cargo que não espanta tanto dada a numerosíssima prole dos reis sauditas. Tido como a eminência parda do reino e considerado pelos analistas políticos o favorito do rei Salman bin Abdulaziz, Mohammed bin Salman vem assumindo a missão de adaptar a Arábia Saudita aos novos e possivelmente irreversíveis tempos de petróleo em decadência. Os sauditas trabalham com cenários prevendo o barril de petróleo cotado a menos de 10 dólares. A tal valor, virtualmente todos os demais produtores mundiais quebrariam, pois o custo de produção é superior a isso. Na verdade, apenas países com enormes reservas conhecidas e de baixíssimo custo de extração poderiam continuar no jogo: fora a Arábia Saudita como um todo, talvez alguns poços em locais como Kuwait, Iraque e Irã seriam viáveis. A grande vantagem dos sauditas é uma estrutura gigantesca já montada em campos mais gigantescos ainda. De fato, analistas estimam que somente a Casa de Saud poderia ter lucro mesmo com o barril cotado a ridículos cinco dólares. Em Ryiadh, já se tem como certo que o uso do petróleo como combustível é inexorável – e que a paulatina limitação de seu uso a uma indústria petroquímica que também tenderá a buscar insumos renováveis levará a quedas ainda maiores nas cotações no longo prazo. Em outras palavras, os sauditas sabem que precisam extrair o máximo dos estimados três séculos de óleo que ainda possui abaixo de suas areias o mais breve possível sob pena de terem de abandoná-los lá por absoluta falta de demanda. Por isso, as reformas econômicas são cruciais. A legitimidade da monarquia saudita reside tanto no wahabismo quanto nas benesses decorrentes do bombeamento de petróleo distribuídas a toda a sociedade, ainda que a parte do leão fique para o Palácio Real: gasolina quase de graça, educação e saúde gratuitas, moradias e transportes subsidiados, impostos baixíssimos etc. Porém, com os tempos de barril a 150 dólares cada vez mais no retrovisor, ou a Casa de Saud acha novas formas de manter a lealdade de seus súditos ou arrisca-se a perder o pescoço. Simples assim. Escalado para essa tarefa, o príncipe Mohammed bin Salman foi além. Está tentando modernizar o próprio wahabismo, um tabu em sua família. E está começando pela Polícia Religiosa.

A Polícia Religiosa é o braço operacional do wahabismo. A mera existência uma força policial dedicada apenas a garantir observância de costumes religiosos na vida cotidiana dos cidadãos é algo surreal aos olhos ocidentais. A visão de uma polícia de costumes é algo tão medieval à nossa própria compreensão que o significado da Polícia Religiosa saudita está além do imaginável. Talvez a literatura possa nos dar ideias, como a sociedade totalitária comunista distópica que George Orwell descreveu em “1984” possa ser comparada à Arábia Saudita porque, na prática, a Polícia Religiosa age como um a versão wahabista do Big Brother orwelliano. Ou, mais apropriadamente, caso a reforma do príncipe Mohammed Bin Salman seja realmente implementada, a Polícia Religiosa não mais poderá deter e reprimir pessoas que eles discricionariamente considerarem violadoras do wahabismo em espaços públicos. Assim, os agentes da Polícia Religiosa (oficialmente chamada pelo pomposo nome “Comitê de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício”, popularmente conhecida como Mutawa) continuarão com suas presenças ameaçadoras nas ruas, mas mais não poderão aplicar punições in loco: serão obrigados a reportar suas observações a autoridades policiais civis que as investigarão. Sim, continua sendo crime abrir estabelecimentos nas horas de oração determinadas pelo muezim, mulher andar em público desacompanhada de um homem “responsável” por ela ou sem o longo véu preto (“abaya”) etc. Todavia, Mohammed bin Salman não é um liberal, ao menos na acepção ocidental do termo. O que ele busca é garantir-se à frente do trono saudita no futuro, posando de modernizador. Além da reforma da Polícia Política, que certamente melhorará a imagem do reino no exterior ao garantir que estrangeiros não serão constrangidos em público ao mesmo tempo em que garante que os preceitos do wahabismo serão seguidos pelos sauditas, o vice-príncipe deve ficar à frente da cada vez mais provável privatização da Saudi Aramco, possivelmente a criação da maior empresa da história, com valor de mercado estimado em mais de um trilhão de dólares – um negócio que só tem a ganhar com o fim da Polícia Política ostensiva. Se conseguir submeter os cinco mil homens da Polícia Religiosa às novas regras, o vice-príncipe Mohammed bin Salman não apenas turbinará suas chances de reinar, mas a própria Casa de Saud e, por extensão, a Arábia Saudita. Evidentemente, ainda é muito pouco diante da colossal quantidade de obscurantismo, sectarismo e violações sistemáticas de direitos humanos que grassam na Arábia Saudita e nos locais nos quais o wahabismo que a Casa de Saud financia atua, mas pode ser o passo mais difícil da caminhada de mil milhas do povo saudita: o proverbial primeiro passo.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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