Reboot no
Itamaraty
É uma constante no universo dos
quadrinhos – e, mais recentemente, no cinema. Depois de algum tempo, faz-se o
chamado reboot de uma determinada personagem ou franquia. De Superman
a James Bond, de tempos em tempos a mesma origem é interpretada por diferentes
desenhistas (quadrinhos) ou diretores (cinema). Por algum motivo, funciona.
Quando um reboot é bem feito, constrangimentos do passado ficam devidamente
enterrados no passado. Um reboot é como uma invocação de tabula
rasa: não há constrangimentos, não há limitações, não há compromissos com o que
havia até então. Há apenas o futuro. Mais ou menos como se diz juridicamente
acerca dos chamados constituintes originários, que em tese não têm limites.
Evidentemente, há limites, conquanto sutis, para um reboot – assim
como há limites para os constituintes originários, como a existência do Jus
Cogens. Um reboot não pode descaracterizar. Não pode afastar da essência. Não
pode trair o melhor legado. Nesse sentido, a posse de José Serra como chanceler
do Brasil é uma rara oportunidade de se fazer um reboot no Itamaraty.
Uma rara oportunidade de se abandonar os exageros dos anos petistas e de se
retornar à essência da política externa brasileira. Sem revanchismos e sem
mudanças bruscas. Apenas uma volta às origens. Um reboot.
Durante os 13 anos de governo do
PT, a política externa brasileira experimentou zênite e nadir. Como sói ser em
política externa, nada do que acontece em termos internacionais em um
determinado governo é resultado apenas da ação do governo de plantão – ao menos
em democracias, com alternância de poder. De fato, a maior atenção externa que
o Brasil recebeu do mundo nos anos 2000 deve ser creditada a ações dos governos
anteriores. Com José Sarney, o Brasil fez a transição democrática e se
reinseriu nos sistemas internacionais de direitos humanos – por exemplo, o país
assinou a Convenção contra a Tortura e rompeu com o governo segregacionista da
África do Sul. Com Collor de Mello, rompeu um isolamento comercial que remetia
a décadas e abandonou publicamente seu programa clandestino de armas nucleares
– a foto do então presidente esvaziando uma pá mais do que simbólica na instalação
secreta da Serra do Cachimbo rodou o mundo e a Rio-92 apresentou à sociedade
internacional um Brasil antenado com as necessidades do mundo pós-Guerra Fria.
Com Itamar Franco, o Brasil voltou aos mercados financeiros internacionais por
meio da adesão ao Plano Brady e, com Fernando Henrique Cardoso à frente do
Ministério da Fazenda, o Plano Real promoveu a maior redistribuição de renda da
história. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, além da previsibilidade e
das reformas do estado, entrou em cena a diplomacia presidencial: o sociólogo
feito político feito chanceler feito presidente levou o Brasil a um nível de
respeito jamais visto nos tempos republicanos (o barão do Rio Branco nunca foi
presidente) e inferior apenas ao inigualável prestígio internacional de D Pedro II,
um monarca que conseguia ser internacionalmente admirado por republicanos
convictos. Houve, portanto, uma bonança perfeita quando o PT assumiu o comando
do Brasil e, por extensão, da política externa brasileira em 2003. E Lula da
Silva não decepcionou: com tudo em ordem, usou e abusou de seu charme e de suas
credenciais únicas de ter nascido pobre, fugido da seca e conseguido chegar à
Presidência da República. Para o mundo, ele era a versão brasileira do American
Dream, o self-made man que provava que o Brasil era a terra das
oportunidades. E foi assim no primeiro mandato – ao menos, até a eclosão do
Mensalão.
Nas cordas a ponto de ter chegado
a considerar renúncia para evitar a abertura de um processo de impeachment que,
em determinado momento, era dado como certo e só não vingou porque a oposição
preferiu mesquinhamente e egoisticamente fazê-lo “sangrar politicamente” a
aplicar-lhe o rigor legal, um acuado Lula da Silva viu na política externa sua
tábua de salvação política. E, a partir daquele momento, mudou a orientação e
interferiu diretamente no Itamaraty. Chegou a ponto de ter um preposto lá que
agia comolonga manus dele sobre toda a atividade diplomática: Marco
Aurélio Garcia, um marxista inveterado, conhecido do grande público por ter
sido flagrado comemorando com um gesto obsceno o resultado de uma investigação
que afirmava que uma tragédia aérea não foi culpa do governo, dava as cartas na
direção da política externa brasileira. Na prática, Marco Aurélio Garcia era a
garantia de que Lula da Silva entregaria a política externa brasileira em uma
bandeja de prata em troca do apoio da esquerda radical. O resultado foi o
abandono da sobriedade e a adoção do histrionismo e do voluntarismo, receita
provada no mundo inteiro para péssimas políticas externas. Então, o Brasil
passou a agir de forma inconsistente com a sua própria história: o equilíbrio
entre pragmatismo e idealismo, base da política externa brasileira, foi
rompido. Nossos diplomatas precisaram recorrer a malabarismos verbais cada vez
mais rebuscados para justificar o injustificável: o apoio a ditadores (Mugabe,
Castro etc.), o abandono da neutralidade (Israel e Palestina), a atuação
desconcertada (Irã) etc. – em suma, um desastre. Essa a política externa fazia
muito barulho, mas não entregava coisa alguma. Os problemas se acumularam.
Politicamente, Brasil perdeu sua credibilidade como ator isento e equilibrado.
Foi-se isolando paulatinamente, juntando-se cada vez mais a párias.
Comercialmente, estava cada vez mais sem opções por conta dos interesses da
falida Argentina do Casal Kirchner. Um abraço de afogados, que incluiu a
inacreditável Venezuela de Chávez e Maduro, que deixou o Brasil à parte das
grandes negociações mundiais por conta da camisa de força voluntária do Mercosul.
Para se ter uma ideia da platitude comercial brasileira durante os governos do
PT: os únicos acordos de livre-comércio que firmamos foram com Israel,
Palestina e Egito – algo que não move uma mera casa decimal nas estatísticas.
Era constrangedor ver diplomatas brasileiros tentando elaboradíssimos
contorcionismos retóricos para explicar tamanho fiasco.
Finalmente, o Itamaraty tem
chance de fazer um reboot. É uma chance de ouro para acabar de vez com a
indecente farra de concessão de passaportes vermelhos – que incluíram desde
familiares de Lula da Silva até pastores de denominações cristãs protestantes
que apoiavam o PT quando era governo. É uma oportunidade única para
redirecionar a bússola das ações internacionais rumo ao equilíbrio – nada do antiamericanismo
panfletário que abona a condescendência com violadores contumazes de direitos
humanos, nada de usar os fóruns internacionais como palanque, nada de agir
internacionalmente de acordo com os preceitos do partido no poder.
Evidentemente, não há garantia alguma de que José Serra vá capitanear o reboot que
o Itamaraty tanto necessita. Todavia, tudo aponta para que sim – ao menos a
julgar pelas declarações iniciais, o discurso de posse deverá trazer esse viés
de retorno ao Itamaraty tradicional, equilibrado entre pragmatismo (negociações
comerciais) e idealismo (defesa de direitos humanos), respeitado no mundo
inteiro como uma das melhores burocracias internacionais que existem. Se Lula
da Silva foi o responsável por afastar o Itamaraty de sua rota histórica, Dilma
Rousseff foi a responsável por relegar a política externa brasileira a um plano
muito inferior. Os recursos só não faltaram mais do que o prestígio em seu
quase governo e meio – e olha que faltaram recursos para virtualmente tudo,
como demonstram os humilhantes casos de corte de luz por falta de pagamento em
legações brasileiras, entre outros. O Itamaraty está sem prestígio, sem
dinheiro e, principalmente, sem rumo. Se José Serra conseguir recuperar a
política externa brasileira, obviamente cacifa-se para suceder a Michel Temer
em 2018. Parafraseando o grande Adam Smith: não é da benevolência de José Serra
que esperamos o resgate da política externa brasileira, mas da consideração que
ele tem por seus próprios interesses políticos. Porque tem todo interesse em
concorrer e ganhar em 2018, José Serra deve ser o artífice do reboot que
o Itamaraty tanto precisa.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
Comentários
Postar um comentário