Aos poucos, timidamente,
conquanto paulatinamente, a sanidade vai voltando ao dar o ar da graça em
Brasília. Já não era sem tempo. Aliás, não deixa de ser interessante notar que
dois símbolos da volta da sanidade praticamente coincidiram com o centenário de
nascimento de Ulysses Guimarães, talvez a mais perfeita encarnação de
racionalidade política que já existiu no Brasil, quase seu sinônimo
dicionarizado. Se vivo estivesse, o acumulador de epítetos (Senhor Diretas,
Senhor Democracia, Senhor Constituição, dentre outros) certamente acrescentaria
outro: Senhor Sanidade. Os exemplos são muitos, na economia e na política – e,
infelizmente, o Grande Ulysses Guimarães não está mais entre nós para ser o
fiador no Congresso Nacional da volta da sanidade. Não temos um Senhor
Sanidade, mas, finalmente, Brasília parece ter-se dado conta de que a gastança
a descoberto praticada desde o segundo governo de Lula da Silva é insustentável
– algo que Dilma Rousseff, possivelmente o maior desastre político no comando
do Brasil desde o golpe militar que instituiu o republicanismo em 1889,
insistia em não ver, por atos e omissões: o tamanho da dívida pública virou um
aleijão. De fato, o Brasil gasta mais de um bilhão de reais por dia para manter
sua dívida do tamanho que está. Simples assim: todos os dias, Brasília tira dos
nossos bolsos mais de um bilhão de reais para nos manter endividados. De fato,
com a Nova Matriz Macroeconômica de Dilma Rousseff e Guido Mantega, o Brasil
conseguiu a nada invejável proeza de aumentar a dívida pública em um período de
estagflação – certamente um dos maiores desastres econômicos de todos os
tempos. Felizmente, a racionalidade voltou. Há, aparentemente, um real
compromisso de Michel Temer com a racionalidade econômica. Espera-se que tenha
passado para sempre o tempo no qual os brasileiros eram ratinhos involuntários
em um laboratório econômico retardado que servia apenas para confirmar que
aquilo que o resto do mundo já sabia que não funcionava não funcionava mesmo.
Há problemas sobremaneira sérios no horizonte visível, que estão sendo
reconhecidos e, ao menos aparentemente, o governo busca soluções. Em termos de
política monetária, os dias de redução de juros na marra e inflação sempre
acima do centro da meta parecem ser apenas uma incômoda lembrança dos tempos
nos quais as insanidades de Arno Augustin e Nelson Barbosa eram a regra. A
política cambial também vai no mesmo sentido, com o governo não usando mais o
câmbio para compensar os descalabros das políticas monetária e fiscal. Aliás,
nesta é aonde se vê mais sanidade: a política fiscal é o grande nó górdio
brasileiro hodierno – e, aparentemente, está em vias de ser solucionado.
Nó górdio é uma expressão que
define algo virtualmente impossível de ser desfeito. Na lenda, era um nó
extremamente intrincado a ponto de haver uma profecia afirmando que quem
conseguisse desfazê-lo seria rei da Ásia – e Alexandre, diante do desafio, não
perdeu muito tempo tentando desembaralhar os fios: cortou o nó a golpe de
espada e iniciou a conquista da Ásia. Em um plano mais secular, a solução de
Alexandre é vista como um exemplo de reconhecimento de limitações e de uso de
criatividade. É mais ou menos o que o governo de Michel Temer faz quando abraça
a ortodoxia e reconhece a extensão do rombo fiscal. Ao apresentar a Proposta de
Emenda Constitucional 241, o governo busca colocar na Carta de 1988 (aquela que
o próprio Ulysses Guimarães fazia questão de reconhecer como imperfeita e,
portanto, sujeita a ajustes) limites para o aumento dos gastos públicos. Caso
logre êxito, Michel Temer entrará para a história como o primeiro a frear
apetite pantagruélico do poder público brasileiro por impostos para saciar suas
intermináveis gastanças. A medida não é perfeita – poderia ser melhor se, por
exemplo, não tivesse um elemento de indexação com base na inflação do ano
anterior. Todavia, é a primeira vez que um governo se impõe voluntariamente um
limite para gastos. Não é pouca coisa. Há duas comparações históricas recentes,
ambas de Fernando Henrique Cardoso: a limitação das reedições de Medidas
Provisórias e a Lei de Responsabilidade Fiscal, certamente duas ações
definidoras do lugar de destaque que FHC conquistou na história brasileira.
Congelar o crescimento real dos gastos públicos abre espaço para controlar o
crescimento da dívida pública – que, como se sabe, custa mais de um bilhão de
reais por dia apenas para continuar sendo rolada. Mas há mais. A reforma do
sistema previdenciário é outro nó górdio no caminho: é necessário resolver o
quanto antes a bomba-relógio previdenciária, uma vez que o envelhecimento da
população é irreversível. Uma proposta que contemple idade mínima para todos e
fim de normas especiais deve ser apresentada em breve. Há ainda o
reconhecimento da necessidade de fazer reformas trabalhista e tributária, mas
dificilmente Michel Temer terá condições de fazer todas. Todavia, se ele
conseguir apenas aprovar o limite para o aumento dos gastos governamentais já
terá feito mais para o futuro da economia do Brasil do que Lula da Silva e
Dilma Rousseff somados. E Michel Temer tem todas as condições de fazer isso por
um motivo simples: ele sabe fazer política.
Política é, por definição,
negociação. Quando não há negociação não há política: há ditadura, há tirania,
há terror – há, em suma, apenas força bruta. Dilma Rousseff foi tão
incompetente também nesse diapasão que só é possível compará-la a outros
desastres políticos ambulantes como Hermes da Fonseca ou João Figueiredo. Ao
contrário de Dilma Rousseff, Michel Temer dialoga com o Congresso Nacional e,
mais importante, apresenta pautas impopulares aos congressistas chamando para
si o desgaste político. Com isso, e com as constantes interações com os
congressistas (visitas, jantares etc.), Temer consegue pautar o Congresso
Nacional e ter suas reformas aprovadas – pelo menos, até agora. Pelo que ele
tem dito, pode-se inferir que Michel Temer vai usar seu capital político não
para ser aclamado no presente e reeleito, mas para garantir um lugar na
posteridade como um estadista. É uma sábia decisão para quem terá pouco mais de
dois anos de governo. Depreende-se, ainda, que ele avançará em privatizações e
em política externa pragmática, ambos assuntos com potencial voltada para os
interesses nacionais. Com tudo isso, pode-se esperar que o governo de Michel
Temer seja um bom governo de transição em termos econômicos, daqueles que são
posteriormente estudados como sendo a base de um período de grande crescimento
econômico. O Brasil tem alguns precedentes competentes de gestão econômica por
parte de governos de transição, independentemente das atuações políticas de
cada um deles. Um exemplo sempre lembrado de um bom governo de transição em
termos econômicos é Café Filho: graças à instrução 113 da SUMOC, tornou
possível o boom de Juscelino Kubistchek. Outro exemplo é dado pelas Reformas
Campos-Bulhões durante o governo de Castello Branco: graças a elas, o Milagre
Brasileiro pôde ocorrer, com o país crescendo a uma média de 10% entre 1967 e
1973. Por fim, há o caso de Itamar Franco, que reinseriu o Brasil nos mercados
internacionais (o país estava fora desde a infame “Moratória Soberana” de José
Sarney) e acabou com a hiperinflação com o Plano Real, capitaneado por Fernando
Henrique Cardoso: bases que ajudaram demais a permitir o crescimento durante os
anos 2000. A seus modos, cada um dos governos de transição cortou um nó górdio
a golpe de espada. Obviamente, não se chega a desejar que o Brasil passe por
mais momentos traumáticos para ter mais governos de transição que estejam menos
preocupados com o aplauso momentâneo e mais interessados em fazer o que é
melhor para o longo prazo – mas não deixa de ser curioso notar que governos de
transição parecem ser mais capazes de cortar nós górdios do que governos
eleitos, ainda que com amplas maiorias. Aparentemente, governos de transição são
mais afeitos à sanidade.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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