Encerrada a apuração do primeiro
turno das eleições municipais de 2016, restou uma estranha sensação de que
Marcelo Freixo e Marcelo Crivella foram dois cucos alimentados por Eduardo Paes
em seu ninho. Como se sabe, o cuco é uma ave conhecida por deixar seus ovos em
ninhos de terceiros para que esses os criem. Na natureza, é possível observar
cenas involuntariamente cômicas de aves adultas muito menores do que os cucos
recém-nascidos que estão em seus ninhos se desdobrando para alimentar os
parasitas que cria junto com seus diminutos filhos legítimos – que, enquanto isso,
em muitos casos acabam perecendo de subnutrição. As cenas podem parecer
burlescas a olhos humanos destreinados, mas o que se tem é uma tática de
sobrevivência algo comum na natureza, em que pese sua evidente imoralidade: há
espécies que simplesmente parasitam outras, como é o caso do cuco. Esse
comportamento gerou, ao longo do tempo, uma associação histórica em países
europeus entre o cuco e o ato de trair, notadamente em termos maritais, a ponto
de, em algumas culturas, comparar um homem a um cuco equivaler a insinuar de
forma aberta que ele não é o pai genético dos filhos que cria. À parte a
biologia, temos uma situação política sui generis no Rio de Janeiro:
Marcelo Crivella e Marcelo Freixo apenas chegaram ao segundo turno porque foram
criados e alimentados involuntariamente por Eduardo Paes. O alcaide, em um
arroubo de arrogância difícil de ser esquecido, pulverizou o centro (e ainda
apostou no mais inviável dos candidatos de centro) e deixou os flancos abertos
para dois candidatos originalmente de nichos ocuparem o convidativo vácuo que
se tornou o segundo turno carioca. Como consequência, um dos dois cucos em
gestação galgará seu voo inaugural a partir do ninho de Eduardo Paes no dia 30
deste mês.
Comecemos pelo cuco que atende
pelo nome de Marcelo Crivella. Trata-se de um cuco deveras persistente, não há
como se negar. Há dez anos que esse cuco tenta ser prefeito ou governador – sem
sucesso. Evidentemente, as razões das derrotas em série não se resumem a um
fator apenas, mas é inegável que a associação entre Crivella e a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) tem um grande peso na rejeição cavalar que
ele carrega. De fato, Crivella é especialista em largar bem e perder apoio
conforme os adversários associam seu nome à associação religiosa fundada por
seu tio (o notório Edir Macedo, aquele que foi filmado tomando banho no
dinheiro que coletou fiéis nos megacultos que promovia em estádios anos 1980) e
da qual é bispo de acordo com a idiossincrática hierarquia local. Marcello
Crivella sempre perdeu porque grande parcela do eleitorado se apavora com a
ideia de entregar as chaves do cofre à IURD e tem pesadelos com Edir Macedo
fazendo um patético cover do Tio Patinhas de Carl Barks – que,
diga-se, nos quadrinhos construiu sua fortuna combinando trabalho duro e
estereotípica sovinice escocesa – com o dinheiro público. O roteiro de Marcelo
Crivella já era conhecido de antemão: candidato de nicho que começaria bem,
perderia preferência paulatinamente, iria para o segundo turno contra algum
adversário de centro, perderia a eleição, volte para a primeira casa e recomece
a sina de candidato de nicho. Com o segundo cuco, Marcelo Freixo, o resultado
também seria bem previsível: candidato de nicho, ficaria confinado a um
eleitorado apaixonado, porém insuficiente para garantir uma vitória. É a sina
padrão de todos os candidatos de perfil ideológico mais radical, tanto na
esquerda quanto na direita. Ainda mais porque Freixo não se preocupou em negar
as propostas mais radicais de seus correligionários. Uma boa parte do
eleitorado vota em Freixo por entender que uma voz em defesa dos direitos
humanos e contra a arbitrariedade policial é extremamente necessária na
atividade parlamentar, mas não considera que ele tem as melhores posições para
comandar a prefeitura. Assim, o natural seria Marcelo Freixo ter menos votos
para prefeito do que habitualmente tem para deputado estadual. Resumindo: nem
Marcelo Crivella nem Marcelo Freixo eram favoritos para vencer o segundo turno
da eleição para a capital do Rio de Janeiro. E, todavia, dessa vez ambos estão
no segundo turno, o que forçosamente fará com que um deles seja o próximo
inquilino do Piranhão. O responsável por isso é o inquilino de saída: Eduardo
Paes, o criador de cucos.
Eduardo Paes estava nos píncaros
do sucesso ao final do Rio-2016. Tem dinheiro em caixa em um momento no qual as
demais esferas de poder estão com pires nas mãos. Tem realizações de sobra para
mostrar. Tem uma verborragia que, apesar de muitas vezes constrangedora, de
certo modo lhe dá um ar mais travesso do que arrogante. Tem, principalmente, a
qualidade de não se esconder quando algo dá errado: apresenta-se como
responsável por tudo que ocorre de bom e de ruim sob seu comando – apenas de
ser a mais básica das qualidades de um líder, a responsabilidade andava em
baixa no Brasil desde que Lula da Silva conseguiu a inacreditável proeza de se
safar do Mensalão com a surreal lengalenga de ser um chefe que não é
responsável pelo que os subordinados fazem em seu nome. Eduardo Paes tinha tudo
para ser o nome da política nacional nos próximos anos. Elegeria seu sucessor,
eleger-se-ia governador, faria uma boa gestão e, em 2026, estaria pronto para
ir morar no Palácio do Planalto. Bastaria não cometer erros crassos. E erros
crassos cometeu, na gestão de seu ninho: alimentou dois cucos e deixou seu
escolhido fenecer de inanição. O escolhido foi um erro primordial, um pecado
original. Paes teve um arroubo de arrogância ao escolher Pedro Paulo para
sucedê-lo. O erro não foi escolhê-lo pelo que Pedro Paulo tem: competência
administrativa – isso restou provado pelo fato de ter sido ele o artífice do
sucesso administrativo dos dois governos de Eduardo Paes. O erro foi escolhê-lo
pelo que ele não tem: credibilidade. De fato, Pedro Paulo não é um primor de
carisma, mas isso também é perfeitamente contornável em um candidato que se
vende como administrativamente competente – principalmente quando tem
resultados para corroborar seu pleito, caso inequívoco de Pedro Paulo. Todavia,
a credibilidade que ele não tem deriva do problema conjugal que colou
indelevelmente nele a pecha de agressor de mulheres – e, nesse caso, pouco
importou aos eleitores que o processo tenha sido arquivado por falta de provas.
Na verdade, pouco ou nada importou aos eleitores a alegação dos defensores de
Pedro Paulo de que os indícios físicos de agressão são frágeis e apontam mais
para ferimentos causados por defesa contra uma agressão da parte dela do que
propriamente de agressão. Além disso, a ausência de um desmentido contundente
da própria ex-cônjuge ao vivo sepultou de vez a esperança de tornar a questão
um fato superado.
O porquê de Eduardo Paes ter
escolhido um candidato com uma vulnerabilidade que faz dele um Aquiles às
avessas permanecerá um mistério. O próprio Paes deveria se lembrar que a
chegada dele à prefeitura foi depois de os caciques do PMDB fluminense
desistirem de tentar emplacar Alessandro Molon em 2008. Molon, vale lembrar,
era o nome favorito da chapa PMDB-PT para a sucessão do desgastado César Maia
porque Paes, então deputado federal, havia sido um opositor ferrenho de Lula da
Silva durante o Mensalão em Brasília. Paes era candidato sem apoio. Uma análise
centrada das fragilidades de Molon e uma mudança de postura de Paes foram a
senha para a mudança. Com Paes, a excelente relação entre as três esferas de
governo (Sérgio Cabral no Estado, Lula da Silva na União) fez fluir para a
cidade recursos inimagináveis na época em que a prefeitura do Rio de Janeiro
era usada como trampolim para pautas nacionais, invariavelmente de oposição.
Eduardo Paes poderia ter patrocinado uma mudança semelhante em sua sucessão.
Candidatos sem apoio dele mas ligados a ele havia – Índio da Costa e Carlos
Osório não tinham a rejeição de Pedro Paes e foram parte da equipe de Paes.
Bastaria ungir um deles e colocar o outro como candidato a vice, exigindo que
Pedro Paulo fosse mantido à frente da Secretaria de Governo, e a fatura
provavelmente seria liquidada, talvez mesmo em primeiro turno. Ao invés de
trazer para o ninho e alimentar as crias suas que estavam sem amparo, Eduardo
Paes preferiu ser o cuco que regurgita alimentos para filhos de outros. Deu no
que deu: com o centro fragmentado, dois candidatos de nicho chegaram ao segundo
turno (vale lembrar a expressiva votação que outro candidato de nicho, Flávio
Bolsonaro, um inexpressivo filho de Jair Bolsonaro, teve – por pouco, não foi
disputar o segundo turno contra Crivella) e o candidato de Paes,
presumivelmente o grande eleitor de 2016 no Rio de Janeiro, ficou de fora da
disputa.
Agora, Marcelo Crivella e Marcelo
Freixo disputarão uma eleição sem final definido. Crivella busca se apresentar
como a opção de centro e tem-se posicionado para herdar os votos pulverizados
tanto dos candidatos de centro abandonados por Paes quanto do candidato de
nicho da direita. Freixo, por sua vez, ainda não demonstrou a mesma disposição
de inclinar-se para o centro, o que poderá ser-lhe fatal nesse segundo turno. O
candidato socialista abraçou o discurso de defesa e vitimização do PT que foi
fatal para Jandira Feghali (que, por sinal, o apoia, assim como o PT) e ainda
não se afastou dele, enquanto Crivella busca mostrar-se tolerante e próximo de
outras denominações religiosas, além de afirmar publicamente que a IURD não
terá papel em um eventual governo dele. Em suma, ambos brigarão pelo espólio de
Eduardo Paes sem dar a ele o crédito necessário, como convém a um criador de
cucos. Curiosamente, nenhum dos dois contendores está disposto a acenar a Pedro
Paulo – o escolhido por Eduardo Paes foi abandonado por todos. Como ocorre na
natureza, os cucos venceram. O criador de cuco perdeu.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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