Kigali não é exatamente um dos
destinos turísticos mais populares do mundo. Localizada no Leste da África, a
capital de Rwanda sofreu bastante com a terrível guerra civil que devastou o
país nos anos 1990 e tornou-se uma terra desolada, com pilhas e pilhas de
corpos espalhados pelas ruas. Duas décadas depois, todavia, Kigali vem se
consolidando como uma das mais vibrantes – e seguras – capitais africanas. Essa
dinâmica cidade não está ainda nos radares turísticos, mas já possui um feito e
tanto para se orgulhar – foi em Kigali que mais de 200 nações assinaram um
acordo (conhecido como Acordo de Kigali) para reduzir em quase 80% as emissões
de HFC, um gás altamente associado ao efeito-estufa. Um valor simbólico muito
forte une a capital de um pequeno país mediterrâneo africano devastado por
genocídios com todo o planeta ameaçado pelo mau uso de recursos naturais: a
esperança na reversão do que parecia irreversível. Em Kigali, a cooperação
internacional visando o bem de todos deu as caras como há muito não se via –
principalmente porque não se trata de um daqueles invertebrados gasosos tão
caros à diplomacia como “protocolos de intenção”, mas sim de um acordo de
aplicação compulsória. O exemplo de Kigali vem em boa hora: ao complementar
aquele que talvez seja o maior exemplo de colaboração internacional na área
ambiental (o Protocolo de Montréal de 1987, que baniu o gás CFC, altamente
danoso para a Camada de Ozônio), coloca uma bem-vinda pressão para que o Acordo
de Paris, ora em ratificação, seja implementado em seus termos mais estritos a
partir da convenção em Marrakesh no próximo mês.
O Acordo de Kigali vem
complementar o incrível Protocolo de Montréal. Há três décadas, naquele
longínquo ano de 1987, o mundo já discutia o aquecimento global (tanto que a
Rio-92 aprovaria a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas, base tanto para o Protocolo de Kyoto quanto para o Acordo de
Paris), mas a principal preocupação era com o crescente buraco na Camada de
Ozônio, que protege o planeta de radiações cósmicas danosas à vida. O medo de
que a atividade humana condenasse a própria humanidade se traduziu na Convenção
de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio (e o fato de ter sido assinada por
todos os membros da ONU em 1985, em plena II Guerra Fria, demonstra o tamanho
da preocupação mundial com o assunto), base para o Protocolo de Montréal
(também assinado por todos os membros da ONU, dois anos depois), que baniria o
uso do CFC progressivamente a partir de sua vigência em 1989. Desde então, nada
com tamanha abrangência foi possível. Montréal foi um sucesso, mas apenas até a
página 4. Ocorre que, para não usar mais o gás clorofluorcarbono (CFC), gás
crucial para os sistemas de refrigeração, o mundo passou a adotar o HFC
(hidrofluorcarbono). A diferença não é sutil: por não conter cloro, o HFC é
neutro para a Camada de Ozônio, enquanto o CFC a destruía por meio de reações químicas
entre o cloro e um átomo de oxigênio do ozônio ocorridas nos confins da
atmosfera. Todavia, o HFC se provou um gás com forte atuação no efeito-estufa.
Assim, em poucas décadas, toda a indústria mundial de refrigeração se viu
diante da incômoda (leia-se custosa) situação de voltar a ser vilã ambiental
após mudar todos os seus processos. Sem o sucesso pregresso do Protocolo de
Montréal, o Acordo de Kigali não seria factível – muito provavelmente, entraria
na vala comum do Acordo de Paris. E o sucesso pregresso de Montréal não foi
casual: pela primeira vez, desenhou-se um processo em etapas, com financiamento
por meio de um fundo multilateral e metas progressivas, com os países menos
desenvolvidos se beneficiando dos avanços tecnológicos dos países mais
desenvolvidos, em um tipo de cooperação internacional raramente visto. E eis o
legado de Kigali, que aprofunda aquele de Montréal ao admitir que a primeira
solução, conquanto cara e demorada, poderia ser aperfeiçoada: a cooperação
internacional com vistas ao bem maior é possível. E Kigali já deixa de cara uma
senhora ajuda para a implementação do Acordo de Paris, uma vez que será
responsável por ¼ da meta de limitar o aumento de temperatura a dois
graus até 2100. A conferência internacional dos países que são parte do Acordo
de Paris ocorrerá em Marrakesh no próximo mês contará com esse belo empurrão.
O mesmo ano de 1987, que parece
jurássico aos olhos atuais (afinal, naquele ano o Império Soviético ainda
existia e a internet nem ficção científica era), viu surgir o conceito de
desenvolvimento sustentável, com a publicação do Relatório Brundtland (“Nosso
Futuro Comum”) pela ONU. Esse conceito, que basicamente preconiza que
desenvolvimento e sustentabilidade podem andar lado a lado, é a base da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (1992), da qual o
Acordo de Paris é parte, como também foi o Protocolo de Kyoto. Evidentemente, é
muito mais simples obter-se um acordo global quando o escopo é limitado a um
setor, como no caso da refrigeração, do que quando envolve virtualmente todos
os setores. Ainda assim, não é impossível. Um bom exemplo foi dado pela União
Europeia. Em tempos de crescente euroceticismo (para não mencionar o indigesto
Brexit), o Parlamento Europeu ratificou o Acordo de Paris. Com isso, atingiu-se
o patamar mínimos de 55% das emissões globais (a UE responde por 12% do total
mundial) previsto no texto para que o sucessor do Protocolo de Kyoto entre em
vigor. Mas apenar viger não basta. É necessário que se transponha para Marrakesh
o consenso que Montréal e Kigali tiveram. Em Paris a dificuldade foi achar um
denominador comum – e a dimensão da disputa pode ser dada por um exemplo apenas
aparentemente comezinho: o fato de a tentativa de usar a palavra “shall” (um
verbo impositivo em inglês) para as ações a serem tomadas por países de
industrialização tardia e a palavra “should” (um verbo sugestivo em inglês)
para as ações a serem tomadas pelos países de industrialização tardia quase ter
colocado tudo a perder traduz claramente as vicissitudes de uma negociação em
uma escala bem maior. Difícil, de fato – mas não impossível. A Índia, um país
considerado intransigente (e terceiro maior emissor individual de carbono do
mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos), ratificou o Acordo de Paris no
começo deste mês, de modo a chegar em Marrakesh com força para exigir mais dos
demais. China e Estados Unidos, por sua vez, têm uma negociação bilateral nesse
sentido. Argentina, Brasil e México, outros grandes emissores individuais, também
abandonaram o tradicional cavalo de batalha de não aceitar metas vinculantes
para países de industrialização tardia. Há, portanto, motivos razoáveis para se
esperar o melhor em Marrakesh. Não será de uma vez só, evidentemente: ainda há
tanto pequenos emissores refratários a adotar metas vinculantes quanto grandes
emissores individuais que ou são esfinges (Rússia) ou estão em situação
política delicada para ratificar (Japão e a Austrália). Não obstante isso, em
Marrakesh poderá ser aventada a possibilidade de buscar na Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas uma unanimidade vista apenas no âmbito
da Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio. O modus
operandi, que foi dado pelo Protocolo de Montréal, acaba de ser ratificado e
ampliado pelo Acordo de Kigali: metas factíveis, progressivas e claramente
definidas, financiamento por meio de um fundo multilateral, países menos
desenvolvidos sendo beneficiários das inovações surgidas nos países mais
desenvolvidos – em suma, uma cooperação internacional digna desse nome. Que o
exemplo de Kigali inspire os negociadores em Marrakesh. O planeta agradece.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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