William Shakespeare eternizou o triste
destino dos Príncipes da Torre, como ficaram conhecidos Eduardo e Ricardo,
filhos de Eduardo IV da Inglaterra. O ano era 1483 e Ricardo III, tio dos
meninos que contavam 9 e 11 anos respectivamente, mandou trancá-los na Torre de
Londres. Os meninos nunca mais seriam vistos após a prisão e a versão segundo a
qual Ricardo III, que havia sido designado protetor dos príncipes, os
assassinou para garantir sua usurpação do trono inglês é a mais aceita pelos
historiadores (contribui para isso o fato de duas ossadas de crianças terem
sido encontradas escondidas em uma capela no local dois séculos depois) e a
mais popular, por conta da peça Ricardo III, uma das mais célebres do bardo de
Stratford-upon-Avon: é nessa obra que Shakespeare incluiu a famosa frase “Meu
reino por um cavalo!”, dita por um Ricardo III à beira da derrota na Batalha de
Bosworth Field (a morte dele, o último plantageneta, marcaria o fim da Guerra
das Rosas em 1485, com a ascensão da Casa Tudor), em uma das mais marcantes
passagens sobre a fragilidade da sordidez humana jamais escritas. A inocência
dos dois príncipes é contrastada com o frio calculismo de Ricardo III e o
monstro parece mais monstruoso nesses momentos. Saindo do final da Idade Média
inglesa e chegando ao Rio de Janeiro contemporâneo, encontramos dois
antipríncipes encarcerados no mesmo presídio. Aliás, é mister que se diga que
Anthony Garotinho e Sérgio Cabral estão presos a partir de processos distintos
– mais ainda, por justiças distintas. Pouco importa. Testemunhar dois
ex-governadores do Rio de Janeiro serem presos na mesma semana é algo inédito e
marcante, sem dúvidas, mas também é um sintoma inequívoco de que ninguém está
acima da lei – ao menos, em tese. Os dois antipríncipes estarem presos não é
prenúncio de uma tragédia; antes, é sinal de uma redenção, embora ao final do
cárcere, ao contrário do que aconteceu com os príncipes, cada um deva encontrar
um caminho diferente diante de si.
Comecemos por Anthony Garotinho. Estamos
talvez diante do último fenômeno de massas na política brasileira. Garotinho é
um líder comunicativo incontestável. Com Leonel Brizola morto e Lula da Silva
perigosamente próximo de uma prisão por corrupção, Garotinho era o último líder
popular de facto. Na cidade do Rio de Janeiro o nome de Garotinho (e, por extensão,
de sua família) enfrenta rejeições cavalares, mas no resto do estado não é
assim. Na verdade, Garotinho é muito popular até hoje no interior, mesmo
estando fora do governo há uma década. Não é por acaso: durante os governos
dele e de Rosinha Garotinho, o interior foi bastante prestigiado – não apenas
com obras, mas também (e há quem diga que principalmente) com atenção do
governador. Garotinho é um ás no trato pessoal. Mesmo os mais ferrenhos
desafetos dele reconhecem que há nele um carisma inegável e uma forma de lidar
com as situações – mesmo as mais adversas – que faz com que convergências sejam
encontradas de uma maneira ou de outra. É um político que pecou muito por ser
passional demais e pragmático de menos no seu zênite, um erro que não teve
remédio nem com a maturidade: Garotinho sabe que nunca mais será uma liderança
nacional capaz de disputar o Palácio do Planalto competitivamente como fez em
2002, mas sabe também que se manterá uma liderança estadual até o final da
carreira e, por isso, centrou esforços em construir uma sólida rede de apoio
que o defendeu até agora. Até agora – e apenas até agora: a prisão dele mudou
tudo. Poucas imagens são mais marcantes do que um político indo parar atrás das
grades. Quando se trata de um ex-governador, mais ainda. Quando se trata de
Garotinho, que comanda Campos dos Goytacazes como um coronel de há mais de um
século, nem se fala. Aliás, qualquer boa olhada em Campos dos Goytacazes
serviria para provar que o jugo de Garotinho nada tem de leve ou de suave: a
cidade, campeã de arrecadação de royalties nos anos de bonança, não tem legado
para mostrar – é uma cidade com as mazelas de há mais de um século. O mundo
político sabe que Garotinho é um político do século retrasado, com práticas do
um século retrasado, que mantém Campos dos Goytacazes no século retrasado. Mas
os políticos do interior gostam dele assim mesmo, em boa parte por causa do
jeito de século retrasado com que ele trata todo mundo – especialmente quando
olharam para o Palácio das Laranjeiras e viram lá como Sérgio Cabral, o outro
antipríncipe preso na semana passada, os tratava: como um príncipe do milênio
passado. Assim, Garotinho goza da simpatia dos políticos e de quem quer que
tenha convivido com ele: mesmo discordando, os políticos tendem a ser mais
condescendentes um político que os trata bem e cumpre com a palavra. Claro que
a prisão dele reduz o escopo de líder estadual (que já era uma redução de líder
nacional) para líder municipal. Garotinho continuará a ser um nome de peso,
embora cada vez menor: sua prisão foi por crime eleitoral – crime, claro, mas
longe de ter o peso político de crime de corrupção. Tal fato (caso não haja
posteriores prisões por corrupção, bien sûr!) soma-se ao histórico
político dele para permitir afirmar que o antipríncipe Garotinho manterá
relevância política após sair de Bangu 8, ainda que menor devido à própria
prisão. Decididamente, não é o caso de Sérgio Cabral, que goza da antipatia
generalizada – que ele fez por merecer, diga-se, com muito esforço: o antipríncipe
Sérgio Cabral não terá relevância alguma na política após sua prisão.
Sérgio Cabral só não é o maior estorvo
político que o Brasil já viu porque é impossível competir com Dilma Rousseff e
Lula da Silva: por definição, estorvo estadual empalidece diante de estorvo
federal. Sérgio Cabral é a versão política do sujeito que é bem-apessoado,
bem-nascido, educado, culto e agradável no primeiro contato – mas que se prova
cada vez mais desagradável, mentiroso, arrogante e inescrupuloso conforme o
tempo passa e se revela paulatinamente. Ele teve tudo para fazer o melhor
governo que o Rio de Janeiro já teve – e, em muitos aspectos, o fez: escolheu e
deu carta branca a nomes como Joaquim Levy na Secretaria de Fazenda e José
Mariano Beltrame na Secretaria de Segurança, verdadeiros craques em suas áreas
que entregaram resultados maravilhosos. Reformou e racionalizou o Rio de
Janeiro. Fez obras há muito necessárias e alinhou-se a Brasília, indo contra
uma irracional tendência do Rio de Janeiro (estado e município) de fazer
oposição ao Palácio do Planalto. Sérgio Cabral tinha, portanto, tudo para ser a
referência política do Rio de Janeiro e uma liderança nacional capaz de
disputar o Palácio do Planalto. Todavia, escolheu o caminho da arrogância e da
corrupção. Deslumbrou-se com o poder como poucos antes dele. Deixava os
políticos esperando horas para recebê-los – isso quando não simplesmente saía
sem avisar. Prometia e não cumpria – e jactava-se disso diante de outros
políticos. Humilhava subordinados. Era, em suma, a própria definição de pessoa
desagradável. E, por fim, transformou seu governo em um vergonhoso balcão de
negócios. Não é estranho especular se ele não deu as áreas técnicas do governo
para tantas pessoas competentes apenas para que apenas ele e seus asseclas
pudessem locupletar-se com as benesses do poder (como no patético caso de
mandar o helicóptero oficial buscar seu cachorro) e com os dividendos privados
de obras públicas. De acordo com as denúncias apresentadas, baseadas em várias
colaborações premiadas no âmbito da Operação Lava-Jato, Sérgio Cabral comandou
uma quadrilha que deliberadamente criou esquemas sofisticados para assaltar os
cofres públicos por meio da corrupção. Ao contrário de Garotinho, Sérgio Cabral
não conta com o apoio do mundo político por conta da arrogância desbragada com
que tratava seus pares: ninguém o defenderá porque todos estavam apenas
esperando o momento da queda dele para se vingarem das incontáveis humilhações
sofridas. Se há um político que não fez senão plantar vento, esse político
chama-se Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho. A colheita de tempestade será
longa e profícua, para deleite de quase todos os políticos. Ele fez por
merecer: ninguém sairá em defesa dele, ainda mais porque a condenação é por
corrupção, e sua relevância política, que já andava em torno de zero (para ser
sincero, apenas uma pessoa de peso – além de Luiz Fernando Pezão, o governador
em desgraça – defendia o agora morador de Bangu 8: Eduardo Paes, prefeito do
Rio de Janeiro em fim de mandato, irmão do dono do apartamento na Praia do
Leblon estranhamente cedido de graça para Sérgio Cabral há anos), tende a
convergir para o zero absoluto. Dos antipríncipes presos, Sérgio Cabral é o
mais próximo da morte política, que de metafórica tem quase nada. Seu destino
está traçado: quando sair da prisão, o que pode demorar bastante caso ele não
opte por colaborar com a justiça entregando alguém acima dele (que, se houver,
só pode ser ocupante do terceiro andar do Palácio do Planalto), ele não terá
mais carreira política pela frente. Virtualmente todos os políticos e técnicos
que conviveram com ele o detestam e comemoram a queda dele – que, repita-se,
ele fez por merecer tamanha antipatia de volta. Dois antipríncipes foram presos
na mesma semana. Em comum, apenas um fato: ambos foram governadores do Rio de
Janeiro. Tudo o mais os separa. Ao contrário dos príncipes presos na Torre de
Londres, terão destinos distintos, escolhidos por eles próprios, e não por um
algoz usurpador como Ricardo III. Desses antipríncipes não devemos sentir pena.
A prisão deles, ainda que por motivos distintos e com consequências mais
distintas ainda, iguala a desgraça deles à redenção da sociedade.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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