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Also sprach Barroso. Por Pedro Nascimento Araujo



 

Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen (Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, no título em português) é uma das obras mais importantes da filosofia mundial e foi lançada em 1885. Com ela, o prussiano Friedrich Nietzsche consagrou-se como um dos pilares do pensamento ocidental. Nela, Nietzsche aborda conceitos que seriam usados para o bem e para o mau nos séculos, notadamente na construção de uma sociedade ocidental laica – lá estão a ideia de Super-homem (Übermensch, no original em alemão, a hipotética evolução além do homo sapiens que foi apropriada e distorcida por supremacistas raciais – leia-se nazistas–para justificar genocídios) e a icônica frase Gott ist tot (literalmente: “Deus está morto”), que Nietzsche considera pré-requisito para a evolução do ser humano para o estágio de Übermensch. Enfim, Also sprach Zarathustra é uma obra seminal que revisita, reinventa e atualiza a doutrina do persa Zaratustra. Pois bem, na semana passada, Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, fez uma proposta de revisitar, reinventar e atualizar a legislação brasileira antidrogas. É uma postura altamente realista e racional: as drogas ilícitas já causam sofrimento demais. Não precisamos que, além do sofrimento causado pelo consumo aos dependentes químicos, às suas famílias e às vítimas de ações decorrentes do consumo de narcóticos, sejamos ainda obrigados a sofrer com a violência e a corrupção decorrentes da existência dos narcotraficantes.

Não fosse pela ilegalidade, narcotráfico seria, em última análise, um negócio como outro qualquer: oferta e demanda, qualidade e preço, vendedores e compradores, canais de distribuição, cadeias de produção e posicionamento de mercado por qualidade ou por preço. Tratamos aqui de substâncias cujo consumo é nocivo à saúde de quem as consome e à segurança da sociedade. Nada de novidade aqui, na verdade. Na primeira categoria podemos incluir do tabaco ao fast food, por exemplo, e na segunda podemos incluir do álcool aos ansiolíticos – todos vendidos livremente, com regulamentação e taxação. O que o ministro Barroso propõe é isso: que os narcóticos ilegais passem a ser narcóticos legais, como é o caso do álcool. Há menos de 100 anos, tentou-se tornar o consumo de álcool ilegal nos Estados Unidos da América. A razão era a mais nobre possível: o álcool é um produto viciante e capaz de destruir vidas, levando doenças, dor e desespero a milhões de famílias. Se a intenção era boa, a prática foi um fracasso: ao proibir-se a produção e o consumo de bebidas alcoólicas, chegou-se a um fiasco de dimensões continentais. Os EUA foram o maior laboratório que já se teve para que se testasse a lógica de que proibir simplesmente não funciona – durante a década de vigência da chamada Lei Seca, o consumo de bebidas se manteve praticamente estável, mas a violência e a corrupção cresceram assustadoramente: para que a demanda por bebidas continuasse sendo atendida, criminosos como Al Capone defendiam seus territórios a bala e ou cooptavam ou silenciavam quem estivesse em seus caminhos. Para os consumidores de álcool, os preços ficaram mais pesados – economicamente: o consumo de álcool de um alcoólatra tende a ser inelástico em relação à renda, o que implica dizer que o problema social associado ao alcoolismo se agravou porque, com os preços maiores, uma parcela maior da renda dos consumidores passou a ser utilizada para o consumo de bebidas alcoólicas, sobrando menos para as demais despesas – e a qualidade passou a ser um problema, com muitos registros de casos de intoxicação e de morte causados por bebidas clandestinas contaminadas. Em suma: de 1920 a 1933, período em que a Lei Seca esteve valendo nos Estados Unidos, o país chegou perigosamente perto de enveredar por uma senda de estado falido. A melhor das intenções gerou a mais daninha das práticas, e isso ficou documentado como uma lembrança de que a realidade sempre se impõe e de que as pessoas não são perfeitas: sempre haverá consumidores de álcool e de drogas e, em uma espécie de Lei de Say às avessas, sempre que houver demanda, surgirá oferta – a economia, assim como a natureza, abomina o vácuo e alguém fornecerá o que os consumidores desejam. E esse alguém será um bandido que roubará, corromperá, intimidará e matará para se manter no negócio de vender com muito lucro um produto de péssima qualidade; afinal, custa caro manter-se em negócios ilegais e, obviamente, é mister haver um prêmio de risco muito maior do que em negócios legais – do contrário, ninguém arriscaria o próprio pescoço em um negócio ilegal.

É preciso que se diga que o que o ministro Barroso propõe não é inédito: várias vozes defendem a descriminalização das drogas simplesmente porque entenderam que é a solução que oferece mais benefícios na vida real. Todavia, é a primeira vez que alguém na Suprema Corte do Brasil expressa claramente tal posição. Also sprach Barroso. O ministro não propõe que deixemos de considerar os efeitos daninhos do consumo de narcóticos ilícitos; pelo contrário, ele propõe que a produção e a venda das drogas passem a ser um negócio lícito, taxados e com restrições de publicidades semelhantes às adotadas em relação a indústria do tabaco: já que não se consegue acabar com o consumo das drogas, legalizá-las significa tão-somente acabar com os traficantes – o que seria maravilhoso per se. Assim, embora a questão de saúde pública continuasse intocada, a questão da violência virtualmente cessaria de existir. É preciso ser ideologicamente cego demais para não entender que isso é positivo sob qualquer prisma. Mais do que isso, é uma tendência mundial. Os EUA podem chegar ao centenário da Lei Seca com a maconha descriminalizada nacionalmente, coisa que já acontece legalmente no Uruguay e, ainda que de forma muitas vezes tácitas, em muitos outros países. Ou seja, descriminalizar maconha acontecerá, mais cedo ou mais tarde. A questão principal envolve drogas mais viciantes e caras – logo, mais lucrativas: basicamente cocaína, heroína e drogas sintéticas. Luís Roberto Barroso citou três razões para fundamentar sua posição a favor: acabar com o tráfico e todas as mazelas a ele associadas, reduzir a superlotação no sistema prisional ao impedir que consumidores ou pequenos traficantes sem crimes violentos sejam presos e controlar do consumo. São razões suficientemente mais fortes do que o temor de que o consumo aumente com a liberalização – diga-se: um temor jamais confirmado na prática nos locais nos quais houve legalização do consumo, exatamente como aconteceu nos EUA após o fim da Lei Seca, quando se temia que o país viraria uma nação de alcoólatras e isso simplesmente não aconteceu, com o consumo se mantendo em níveis equivalentes aos observados antes e durante a vigência da proibição. Assim, Barroso propõe a lógica: que demos passos no sentido de descriminalizar as drogas. Se é verdade que isso não reduz o consumo de drogas, também é verdade que não o aumenta – descriminalizar as drogas é, portanto, uma ação neutra em termos de consumo. Todavia, msmo sem mantendo o consumo igual, descriminalizar as drogas significaria acabar com o tráfico (obviamente, desde que uma taxação por demais exagerada não acabe por tornar o tráfico economicamente atrativo mesmo em um ambiente de descriminalização, como ocorre, por exemplo, com os cigarros), financiar o tratamento dos dependentes com os próprios impostos cobrados no consumo e reduzir a superpopulação carcerária – só pontos positivos de um lado, contra um ponto neutro de outro. E, por fim, como bem lembrou Barroso: teremos sempre a tranquilidade de saber que, caso a sociedade não aprove os resultados por qualquer motivo, é sempre possível retornar ao status quo ex-ante – ou seja, voltar a proibir. Also sprach Barroso.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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