No Centro do Rio de Janeiro,
pouco menos de dois quilômetros separam os edifícios-sede de Cedae e Petrobras.
Todavia, há uma semana (desde o dia 20 de fevereiro de 2017, para ser mais
preciso), ficou definido que ambas as empresas passarão a viver em mundos
distintos: a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou a privatização da
Cedae. Não sem choro ou vela; na verdade, foi necessária uma crise sem
precedentes para que o interesse do povo prevalecesse sobre o interesse dos
políticos. Assim, daqui a algum tempo (calcula-se três anos), uma nova empresa
surgirá dos escombros daquela que é uma das piores prestadoras de serviços
públicos do país – se não a pior. Da Cedae não se espera coisa alguma além de
desperdícios, incompetência e muita, muita roubalheira: não foi à toa que
expoentes da corrupção como Eduardo Cunha fizeram da estatal seus feudos;
Cunha, por exemplo, é investigado por ganhos irregulares obtidos por intermédio
do fundo de pensão dos funcionários da estatal, o Prece. A Cedae é um exemplo de
livro-texto sobre tudo o de ruim que decorre do mero fato de ser uma empresa
estatal. Mutatis mutandis, algo semelhante ocorre com todas, absolutamente
todas, as empresas estatais: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais,
Distrito Federal – pouco importa, todas (repita-se, absolutamente todas) as
empresas estatais são utilizadas por políticos para benefício próprio. A Cedae
é um grande símbolo do bem que se fará ao povo após ela sair das mãos do
governo, mas está longe de ser o maior – esse posto pertence àquela empresa a
quase dois quilômetros da Cedae, a Petrobras. São os dois quilômetros mais
longos da história brasileira.
Privatização de empresas estatais
deveria ser uma das insofismáveis verdades autoevidentes da política, uma das
coisas mais óbvias que existem, por uma razão que soa ridícula de tão trivial:
ou o governo é dono da empresa ou o governo fiscaliza a empresa. Simples assim.
Não há como uma mesma entidade ser fiscalizador e fiscalizado
concomitantemente. Não há esquizofrenia no mundo capaz de equalizar tal
dissonância. Por mais profissional que fosse a gestão de uma empresa estatal,
essa falha genética jamais deixaria de existir: sempre penderá sobre qualquer
empresa estatal a sombra do conflito de interesses. Afinal, nem mesmo os mais
aguerridos defensores da existência de empresas estatais são capazes de
defender que empresas privadas sejam ficais de si próprias: não seria
admissível, por exemplo, a indústria automobilística fixar as leis de segurança
e de proteção ambiental dos carros que fabrica – e ainda fosse a responsável
por fiscalizar e punir quem, dentre os seus, transgredisse tais leis. Seria
inaceitável, para dizer o mínimo. E, todavia, é exatamente isso o que ocorre
com toda e qualquer empresa estatal: o dono da empresa (governo) é quem faz as
regras e as fiscaliza. Surreal. Ou seja, mesmo que vivêssemos em um mundo
perfeito no qual não há nem corrupção nem interesses particulares dos políticos
sobrepujando os interesses difusos da população, empresas estatais não são algo
razoável em função do flagrante conflito de interesses. Obviamente, há
corrupção e há interesses particulares prevalecendo no mundo real – e em poucos
lugares esses efeitos nefastos se fazem sentir mais do que na Cedae e na
Petrobras.
Cedae e Petrobras são dois
monumentos à corrupção e à ineficiência, sugadouros de verbas públicas que
beneficiam primeiramente quem nelas manda – os políticos. Não que seja
diferente com outras estatais: Furnas e Eletrobrás, para ficar apenas no setor
energético, estão sendo investigadas e os potenciais crimes são bilionários, no
que já se conhece como Eletrolão. Na Petrobras, estamos acompanhando o
Petrolão, roubalheira de deixar o Mensalão parecido com brincadeira de criança.
Na Cedae, é sempre bom lembrar que o que aconteceu com o fundo de pensão da
estatal (Prece) não difere muito do que ocorreu com a Petros, fundo de pensão
da Petrobras: investimentos deliberadamente danosos para o patrimônio dos
empregados da empresa, porém altamente lucrativos para quem decidida aonde
perder dinheiro. Idem para o Real Grandeza (Furnas) e de virtualmente todas as
empresas estatais. Não é por outro motivo que políticos se digladiam para
comandar fundos de pensão de empresas estatais: literalmente tenebrosas
transações são realizadas – e, no final das contas, os prejuízos são pagos
pelos empregados (por meio de aumento da contribuição previdenciária) e pela
sociedade, por meios diretos (injeção de capital) ou indiretos (aumento nas
tarifas, por exemplo). E la nave va.
Os argumentos contra são tão
óbvios que a própria ideia de que haja muitas pessoas que defendam a existência
de empresas estatais de boa-fé demora a ser digerida. E, no entanto, há aos
borbotões quem defenda que o governo deve ser raposa e galinheiro, verdugo e
vítima, juiz e réu – tudo ao mesmo tempo. A origem de tal descompasso é antiga
e desponta a partir de uma interpretação errônea e, permitam-me dizer,
preconceituosa. Trata-se de uma arraigada rejeição ao capitalismo, algo que não
se observa nos países mais avançados, mas também de uma mais arraigada
xenofobia – uma associação ancestral entre o que é estrangeiro e o que é
predatório, como se empresários brasileiros (e isso inclui o governo) fossem
essencialmente benéficos para o país e empresários estrangeiros fossem
essencialmente maléficos. Um sociólogo talvez traçasse a origem de tal aversão
ao longo isolamento que Portugal impôs ao Brasil (essencialmente, fomos
oficialmente integrados à Europa Expandida em 1500, mas fomos isolados por
Lisboa e passamos ao largo de tudo que moldaria o mundo moderno até 1808:
Renascimento, Revolução Gloriosa, Revolução Industrial, Revolução Americana e
Revolução Francesa, só tendo contato com o mundo quando as Guerras Napoleônicas
chegaram à soleira da Sereníssima Casa de Bragança) e que o país, mesmo após a
Guerra de Independência, manteria ciclicamente: grosso modo, vivemos
sístoles e diástoles entre isolamento e integração, com a liberalização dos
anos 1990 ainda sendo muito incompleta, como demonstraram as proibição à
importação de café vietnamita que os cafeicultores brasileiros conseguiram
aprovar há poucos dias, mostrando que, entre todos os consumidores pagarem o
preço internacional (mais baixo) de um produto e garantir um preço de venda
maior para os produtores nacionais, o governo continua socializando as perdas,
conforme a clássica definição de Celso Furtado. As empresas estatais nada mais
são do que a institucionalização da socialização das perdas: todos pagam mais
caro por produtos e serviços piores em nome de um suposto bem maior – que, na
prática, é mera apropriação dos excedentes por grupos de interesse privado,
quer por corrupção, quer por ineficiência (leia-se baixíssima produtividade)
decorrente de uso político dessas empresas. Há uma definição antiga sobre o
comunismo que diz que o comunismo é perfeito na teoria um desastre na prática.
O mesmo se pode dizer sobre empresas estatais.
Cedae e Petrobras são, portanto,
expressões coirmãs de um mesmo comportamento. São dois desastres que nos
obrigam a pagar, tanto na forma de produtos e serviços caros e ruins, como na
forma de dinheiro público tragado por leviatãs embriagados. Certamente, a atual
administração da Petrobras está tentando reverter o que foi feito nos governos
Lula da Silva e Dilma Rousseff. Com absurdos como a Refinaria Abreu e Lima
(custo final ao menos cinco vezes superior ao orçado – e contando!) e o
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (sobrepreço de pelo menos 20 bilhões de
reais, conforme investigação em curso do TCU), não é de se estranhar que os
acionistas da empresa tenham visto seu valor de mercado despencar
vertiginosamente – e, pior, seus empregados (inativos inclusive) começarão em
breve a pagar taxas extras para cobrir o rombo no fundo de pensão (Petros), que
também deverá receber aportes do Tesouro Nacional. Além disso, a empresa está
passando por um inevitável processo de desinvestimento (o plano era vender 15
bilhões de dólares em ativos em 2016, meta que não foi alcançada) e se
desfazendo de ativos desesperadamente; ou seja, está vendendo na baixa. Em
suma, pagamos caro por um combustível caríssimo e de péssima qualidade: os
padrões ambientais aqui são incrivelmente aquém do que se adota no mundo
desenvolvido e, mesmo assim, a redução da quantidade de enxofre no diesel (de
500 para 50 partes por milhão, quando lá fora já se trabalha com 5) atrasou
anos. Galinheiro e raposa, o governo simplesmente não pode exigir de si mesmo
que faça mais e melhor porque, em última análise, isso significaria impedir-se
de usar politicamente suas empresas. Ao final das contas, somos sós que pagamos
a conta dessa esquizofrenia. Tome-se o caso da Cedae, exemplo bem-acabado do
tamanho do estorvo que uma empresa estatal é para um povo: quando partes da
empresa foram privatizadas há quase duas décadas (1999), empresas venceram as
concessões em locais como Niterói, Petrópolis, Região dos Lagos etc. Eis o
resultado: de lá para cá, a distribuição de água em Niterói atingiu 100%. E
antes que alguém pense que isso se deu por excluir favelas, por exemplo, uma informação:
favelas fazem parte da conta. A coleta de esgoto está bem acima de 90% e também
a caminho da universalização – o índice era de vexaminosos 20% antes da
privatização. A explicação para tal mudança é direta: o governo deixou de se
autofiscalizar e passou a fiscalizar a concessionária. Os índices de
desperdício (na Cedae, atualmente quase metade da água tratada não chega aos
consumidores finais) também entraram na média internacional, abaixo de 20%. Não
porque a Águas do Brasil (grupo que controla a maioria das concessionárias
fluminenses) seja intrinsecamente boa, mas simplesmente porque, por ser uma
empresa privada, ela passa a ter de cumprir metas que serão fiscalizadas pelo
governo, com um incentivo extra: os políticos sabem que o povo gosta quando são
implacáveis com as concessionárias – e político algum perderia tal oportunidade
de ficar bem com os eleitores.
Os políticos também sabem que
perdem chance de corrupção e uso político quando uma empresa deixa de ser
estatal. É isso que deve acontecer com a Cedae, que tem preço de venda estimado
em 3½ bilhões de reais: em alguns anos, a região atendida pela
concessionária estará próxima da universalização e, finalmente, poderemos
vislumbrar a despoluição da Baía de Guanabara – um sumidouro de mais de um
bilhão de dólares nas mãos da Cedae. Privatização funciona. Ponto. E, caso um
dia a empresa que ganhou a concessão não consiga cumprir com seus compromissos,
simplesmente aplicam-se as punições e troca-se a empresa – e, se a empresa
falir por conta disso, o azar é apenas dos acionistas dela, não do povo.
Realmente, é difícil que argumentos racionais embasem a defesa da existência de
empresas estatais. O que se tem é preconceitos arraigados sofrendo uso cínico
por parte de alguns políticos. Assim, a melhoria que deverá acontecer para a
população após a privatização da Cedae é a mesma que acontece após toda
privatização. Simplesmente não há porque não ser assim com a Petrobras – e com
o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, com a Eletrobrás, com Furnas
etc. Quando a Petrobras for enfim vendida por um governo que se preocupe mais
com os consumidores brasileiros do que com os seus pares políticos, teremos
finalmente concorrência e preços menores em um mercado regulado. Obviamente,
ainda falta muito para que isso ocorra. Todas as demais empresas citadas
deverão ser privatizadas antes – e seria importante criar leis restringindo
sobremaneira a capacidade de governos de fazer jogo duplo de fiscalizador e
fiscalizado: uma empresa estatal só poderia ser criada em plano federal,
mediante um mecanismo legislativo complexo, com clara definição de origem dos
recursos e, principalmente, com prazo de existência definido ex-ante: a
partir desse ponto, ela precisa ser passada para a inciativa privada e o
governo precisa retomar seu papel par excellence: o de regulador. Enquanto
não privatizarmos todas as empresas estatais e não tivermos uma lei que impeça
a criação de novas, os dois quilômetros que separam a Cedae da Petrobras
continuarão parecendo uma distância interestelar.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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