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Dois quilômetros. Por Pedro Nascimento Araujo


No Centro do Rio de Janeiro, pouco menos de dois quilômetros separam os edifícios-sede de Cedae e Petrobras. Todavia, há uma semana (desde o dia 20 de fevereiro de 2017, para ser mais preciso), ficou definido que ambas as empresas passarão a viver em mundos distintos: a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou a privatização da Cedae. Não sem choro ou vela; na verdade, foi necessária uma crise sem precedentes para que o interesse do povo prevalecesse sobre o interesse dos políticos. Assim, daqui a algum tempo (calcula-se três anos), uma nova empresa surgirá dos escombros daquela que é uma das piores prestadoras de serviços públicos do país – se não a pior. Da Cedae não se espera coisa alguma além de desperdícios, incompetência e muita, muita roubalheira: não foi à toa que expoentes da corrupção como Eduardo Cunha fizeram da estatal seus feudos; Cunha, por exemplo, é investigado por ganhos irregulares obtidos por intermédio do fundo de pensão dos funcionários da estatal, o Prece. A Cedae é um exemplo de livro-texto sobre tudo o de ruim que decorre do mero fato de ser uma empresa estatal. Mutatis mutandis, algo semelhante ocorre com todas, absolutamente todas, as empresas estatais: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Distrito Federal – pouco importa, todas (repita-se, absolutamente todas) as empresas estatais são utilizadas por políticos para benefício próprio. A Cedae é um grande símbolo do bem que se fará ao povo após ela sair das mãos do governo, mas está longe de ser o maior – esse posto pertence àquela empresa a quase dois quilômetros da Cedae, a Petrobras. São os dois quilômetros mais longos da história brasileira.

Privatização de empresas estatais deveria ser uma das insofismáveis verdades autoevidentes da política, uma das coisas mais óbvias que existem, por uma razão que soa ridícula de tão trivial: ou o governo é dono da empresa ou o governo fiscaliza a empresa. Simples assim. Não há como uma mesma entidade ser fiscalizador e fiscalizado concomitantemente. Não há esquizofrenia no mundo capaz de equalizar tal dissonância. Por mais profissional que fosse a gestão de uma empresa estatal, essa falha genética jamais deixaria de existir: sempre penderá sobre qualquer empresa estatal a sombra do conflito de interesses. Afinal, nem mesmo os mais aguerridos defensores da existência de empresas estatais são capazes de defender que empresas privadas sejam ficais de si próprias: não seria admissível, por exemplo, a indústria automobilística fixar as leis de segurança e de proteção ambiental dos carros que fabrica – e ainda fosse a responsável por fiscalizar e punir quem, dentre os seus, transgredisse tais leis. Seria inaceitável, para dizer o mínimo. E, todavia, é exatamente isso o que ocorre com toda e qualquer empresa estatal: o dono da empresa (governo) é quem faz as regras e as fiscaliza. Surreal. Ou seja, mesmo que vivêssemos em um mundo perfeito no qual não há nem corrupção nem interesses particulares dos políticos sobrepujando os interesses difusos da população, empresas estatais não são algo razoável em função do flagrante conflito de interesses. Obviamente, há corrupção e há interesses particulares prevalecendo no mundo real – e em poucos lugares esses efeitos nefastos se fazem sentir mais do que na Cedae e na Petrobras.

Cedae e Petrobras são dois monumentos à corrupção e à ineficiência, sugadouros de verbas públicas que beneficiam primeiramente quem nelas manda – os políticos. Não que seja diferente com outras estatais: Furnas e Eletrobrás, para ficar apenas no setor energético, estão sendo investigadas e os potenciais crimes são bilionários, no que já se conhece como Eletrolão. Na Petrobras, estamos acompanhando o Petrolão, roubalheira de deixar o Mensalão parecido com brincadeira de criança. Na Cedae, é sempre bom lembrar que o que aconteceu com o fundo de pensão da estatal (Prece) não difere muito do que ocorreu com a Petros, fundo de pensão da Petrobras: investimentos deliberadamente danosos para o patrimônio dos empregados da empresa, porém altamente lucrativos para quem decidida aonde perder dinheiro. Idem para o Real Grandeza (Furnas) e de virtualmente todas as empresas estatais. Não é por outro motivo que políticos se digladiam para comandar fundos de pensão de empresas estatais: literalmente tenebrosas transações são realizadas – e, no final das contas, os prejuízos são pagos pelos empregados (por meio de aumento da contribuição previdenciária) e pela sociedade, por meios diretos (injeção de capital) ou indiretos (aumento nas tarifas, por exemplo). E la nave va.

Os argumentos contra são tão óbvios que a própria ideia de que haja muitas pessoas que defendam a existência de empresas estatais de boa-fé demora a ser digerida. E, no entanto, há aos borbotões quem defenda que o governo deve ser raposa e galinheiro, verdugo e vítima, juiz e réu – tudo ao mesmo tempo. A origem de tal descompasso é antiga e desponta a partir de uma interpretação errônea e, permitam-me dizer, preconceituosa. Trata-se de uma arraigada rejeição ao capitalismo, algo que não se observa nos países mais avançados, mas também de uma mais arraigada xenofobia – uma associação ancestral entre o que é estrangeiro e o que é predatório, como se empresários brasileiros (e isso inclui o governo) fossem essencialmente benéficos para o país e empresários estrangeiros fossem essencialmente maléficos. Um sociólogo talvez traçasse a origem de tal aversão ao longo isolamento que Portugal impôs ao Brasil (essencialmente, fomos oficialmente integrados à Europa Expandida em 1500, mas fomos isolados por Lisboa e passamos ao largo de tudo que moldaria o mundo moderno até 1808: Renascimento, Revolução Gloriosa, Revolução Industrial, Revolução Americana e Revolução Francesa, só tendo contato com o mundo quando as Guerras Napoleônicas chegaram à soleira da Sereníssima Casa de Bragança) e que o país, mesmo após a Guerra de Independência, manteria ciclicamente: grosso modo, vivemos sístoles e diástoles entre isolamento e integração, com a liberalização dos anos 1990 ainda sendo muito incompleta, como demonstraram as proibição à importação de café vietnamita que os cafeicultores brasileiros conseguiram aprovar há poucos dias, mostrando que, entre todos os consumidores pagarem o preço internacional (mais baixo) de um produto e garantir um preço de venda maior para os produtores nacionais, o governo continua socializando as perdas, conforme a clássica definição de Celso Furtado. As empresas estatais nada mais são do que a institucionalização da socialização das perdas: todos pagam mais caro por produtos e serviços piores em nome de um suposto bem maior – que, na prática, é mera apropriação dos excedentes por grupos de interesse privado, quer por corrupção, quer por ineficiência (leia-se baixíssima produtividade) decorrente de uso político dessas empresas. Há uma definição antiga sobre o comunismo que diz que o comunismo é perfeito na teoria um desastre na prática. O mesmo se pode dizer sobre empresas estatais.

Cedae e Petrobras são, portanto, expressões coirmãs de um mesmo comportamento. São dois desastres que nos obrigam a pagar, tanto na forma de produtos e serviços caros e ruins, como na forma de dinheiro público tragado por leviatãs embriagados. Certamente, a atual administração da Petrobras está tentando reverter o que foi feito nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. Com absurdos como a Refinaria Abreu e Lima (custo final ao menos cinco vezes superior ao orçado – e contando!) e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (sobrepreço de pelo menos 20 bilhões de reais, conforme investigação em curso do TCU), não é de se estranhar que os acionistas da empresa tenham visto seu valor de mercado despencar vertiginosamente – e, pior, seus empregados (inativos inclusive) começarão em breve a pagar taxas extras para cobrir o rombo no fundo de pensão (Petros), que também deverá receber aportes do Tesouro Nacional. Além disso, a empresa está passando por um inevitável processo de desinvestimento (o plano era vender 15 bilhões de dólares em ativos em 2016, meta que não foi alcançada) e se desfazendo de ativos desesperadamente; ou seja, está vendendo na baixa. Em suma, pagamos caro por um combustível caríssimo e de péssima qualidade: os padrões ambientais aqui são incrivelmente aquém do que se adota no mundo desenvolvido e, mesmo assim, a redução da quantidade de enxofre no diesel (de 500 para 50 partes por milhão, quando lá fora já se trabalha com 5) atrasou anos. Galinheiro e raposa, o governo simplesmente não pode exigir de si mesmo que faça mais e melhor porque, em última análise, isso significaria impedir-se de usar politicamente suas empresas. Ao final das contas, somos sós que pagamos a conta dessa esquizofrenia. Tome-se o caso da Cedae, exemplo bem-acabado do tamanho do estorvo que uma empresa estatal é para um povo: quando partes da empresa foram privatizadas há quase duas décadas (1999), empresas venceram as concessões em locais como Niterói, Petrópolis, Região dos Lagos etc. Eis o resultado: de lá para cá, a distribuição de água em Niterói atingiu 100%. E antes que alguém pense que isso se deu por excluir favelas, por exemplo, uma informação: favelas fazem parte da conta. A coleta de esgoto está bem acima de 90% e também a caminho da universalização – o índice era de vexaminosos 20% antes da privatização. A explicação para tal mudança é direta: o governo deixou de se autofiscalizar e passou a fiscalizar a concessionária. Os índices de desperdício (na Cedae, atualmente quase metade da água tratada não chega aos consumidores finais) também entraram na média internacional, abaixo de 20%. Não porque a Águas do Brasil (grupo que controla a maioria das concessionárias fluminenses) seja intrinsecamente boa, mas simplesmente porque, por ser uma empresa privada, ela passa a ter de cumprir metas que serão fiscalizadas pelo governo, com um incentivo extra: os políticos sabem que o povo gosta quando são implacáveis com as concessionárias – e político algum perderia tal oportunidade de ficar bem com os eleitores.

Os políticos também sabem que perdem chance de corrupção e uso político quando uma empresa deixa de ser estatal. É isso que deve acontecer com a Cedae, que tem preço de venda estimado em 3½ bilhões de reais: em alguns anos, a região atendida pela concessionária estará próxima da universalização e, finalmente, poderemos vislumbrar a despoluição da Baía de Guanabara – um sumidouro de mais de um bilhão de dólares nas mãos da Cedae. Privatização funciona. Ponto. E, caso um dia a empresa que ganhou a concessão não consiga cumprir com seus compromissos, simplesmente aplicam-se as punições e troca-se a empresa – e, se a empresa falir por conta disso, o azar é apenas dos acionistas dela, não do povo. Realmente, é difícil que argumentos racionais embasem a defesa da existência de empresas estatais. O que se tem é preconceitos arraigados sofrendo uso cínico por parte de alguns políticos. Assim, a melhoria que deverá acontecer para a população após a privatização da Cedae é a mesma que acontece após toda privatização. Simplesmente não há porque não ser assim com a Petrobras – e com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, com a Eletrobrás, com Furnas etc. Quando a Petrobras for enfim vendida por um governo que se preocupe mais com os consumidores brasileiros do que com os seus pares políticos, teremos finalmente concorrência e preços menores em um mercado regulado. Obviamente, ainda falta muito para que isso ocorra. Todas as demais empresas citadas deverão ser privatizadas antes – e seria importante criar leis restringindo sobremaneira a capacidade de governos de fazer jogo duplo de fiscalizador e fiscalizado: uma empresa estatal só poderia ser criada em plano federal, mediante um mecanismo legislativo complexo, com clara definição de origem dos recursos e, principalmente, com prazo de existência definido ex-ante: a partir desse ponto, ela precisa ser passada para a inciativa privada e o governo precisa retomar seu papel par excellence: o de regulador. Enquanto não privatizarmos todas as empresas estatais e não tivermos uma lei que impeça a criação de novas, os dois quilômetros que separam a Cedae da Petrobras continuarão parecendo uma distância interestelar.

Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com

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