Desde o Golpe da República, o
Brasil adota o modelo presidencialista de três Poderes independentes e
idealmente harmônicos entre si, operando em um sistema de contrapesos (checks
and balances, no original em inglês). Quando em regimes democráticos, nesse
sistema cada Poder tem sua independência garantida na constituição e possui sua
estrutura própria, contando inclusive com garantia de recursos públicos.
Obviamente, não existe um sistema perfeito, mas esse é um arranjo provado em
repúblicas democráticas sólidas. Saindo da espinha dorsal do sistema (por
sinal, derivado de uma percepção incorreta de Montesquieu acerca do
funcionamento do sistema inglês; lá, não há igualdade e o Poder Executivo é subordinado
ao Poder Legislativo) e analisando cada Poder separadamente, temos estruturas
bastante próximas daquelas das mais robustas democracias republicanas do mundo;
senão, vejamos. Temos três níveis de Poder Executivo (nacional, regional e
local): embora os nomes variem (estado, província, departamento, cantão,
condado, município etc.), o fato é que a estrutura é deveras semelhante. O
mesmo pode ser dito do Poder Legislativo: independentemente dos nomes, há um
parlamento para cada uma das três esferas de governo, mesmo que alguns países
tenham sistema unicameral e outros tenham senadores estaduais, por exemplo. No
Poder Judiciário, a estratificação em três níveis também é a regra, com a
justiça local tratando de legislação local feita por legisladores locais,
justiça regional analisando a aplicação de legislação regional feita por
legisladores regionais e justiça nacional sendo responsável por temas de
interesse e repercussão gerais. Até aí, estamos iguais. Ocorre que temos, no
Brasil, não uma Justiça, mas quatro: Justiça Comum, Justiça Militar, Justiça
Trabalhista e Justiça Eleitoral. Não é de se estranhar, portanto, que nosso
Poder Judiciário seja um dos mais caros (se não o mais) e menos eficientes (se
não o menos) do mundo; com quatro Justiças, o Poder Judiciário brasileiro é
como um pato: um animal que, na teoria, sabe andar, nadar e voar – mas que, na
prática, voa mal, nada muito mal e anda pior ainda.
Com as devidas vênias a todos os
que defendem, com robustos e elaborados argumentos, a manutenção de quatro
Justiças com estruturas paralelas e independentes nos âmbitos local, regional e
nacional: é simplesmente irracional fazê-lo. Primeiro por uma questão de uma
obviedade ululante: por que os direitos militar, trabalhista e eleitoral
merecem ter uma estrutura dedicada a eles e os direitos humanos, por exemplo,
não merecem? À guisa de exercício, ignoremos momentaneamente as restrições
monetárias e concentremos nossa atenção no absurdo intrínseco da coisa per
se: manter estruturas próprias para determinados direitos e não para outros tem
um quê orwelliano – como se todos os direitos fossem iguais, mas alguns fossem
mais iguais do que os outros. Direitos humanos certamente merecem mais cuidado.
O mesmo vale para direito ambiental e direito dos consumidores, por óbvio, bem
como direitos das crianças, dos idosos e das mulheres. E por aí vai: ninguém em
sã consciência diria que há direitos melhores do que outros – e, ainda assim,
quando, há poucos dias, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, criticou
a existência da Justiça do Trabalho e trouxe o assunto à baila, não faltaram
vozes sensatas e honestas defendendo que direitos trabalhistas são mais
importantes do que (para continuar no exemplo supracitado) direitos humanos,
ambientais, dos consumidores, das crianças, dos idosos, das mulheres etc. Noves
fora as suspeitas pesando sobre Maia e uma possível agenda oculta a guiá-lo, o
fato é que o deputado expôs um nervo: não há porque se ter uma Justiça
exclusiva para os direitos trabalhistas; na verdade, não há porque se gastar
com Justiças particulares, por melhores que sejam as intenções. Ou por mais
razoáveis que as justificativas pareçam razoáveis; senão, vejamos.
Um olhar mais detalhado
certamente apontaria que as quatro Justiças poderiam, no máximo, virar duas,
com uma Justiça Militar exclusiva para os militares e uma Justiça Civil
abarcando todas as demais. Trata-se, todavia, de um argumento falacioso. De
fato, os militares têm sua lei – apenas a título de exemplo: a pena de morte é
permitida no Brasil para crimes especificamente cometidos por militares em
tempos de guerra – e, portanto, o argumento da manutenção de uma justiça
apartada tem seu apelo, mas simplesmente não justifica os gastos em tempos de
paz. Eclodindo guerras, tribunais ad hoc seriam estabelecidos e
pronto. Nada justifica a manutenção permanente durante tempos de paz de uma
estrutura com atuação em todo o país apenas para julgar a aplicação da pena
capital em tempos de guerra. Assim como a Justiça Trabalhista, a Justiça
Militar possui tribunais superiores próprios, com todo o nababesco aparato que
atende aos juízes – e o termo nababesco não é mera figura de linguagem aqui.
Vamos aos humilhantes números: as Quatro Justiças do Poder Judiciário custam
quase 1½% do PIB brasileiro. Nos Estados Unidos da América, terra de advogados par
excelence (Alexis de Tocqueville observava como os americanos acorriam ao
sistema judicial para resolver duas querelas no clássico Democracia na
América), aonde se resolve virtualmente tudo nos tribunais e aonde há tribunais
de júri também para virtualmente tudo, esse percentual é de 0,15%. O resultado
disso deveria ser um excedente de juízes por 100 mil habitantes no Brasil e uma
escassez atroz nos EUA, mas não é: enquanto a norte do Rio Grande há quase 11 juízes
por 100 mil habitantes, no Brasil esse número mal chega a oito – mesmo mais do
que decuplicando a parcela empenhada do PIB para custear o Poder Judiciário. A
explicação é simples: enquanto na Inglaterra (que também gasta 0,1% do PIB) há
30 funcionários do Poder Judiciário para cada 100 mil habitantes, no Brasil há
mais de 200, sem contar as pencas de terceirizados (parece piada, mas não é:
apenas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro paga quase 200 organizadores de
tráfego para disciplinar o entra-e-sai de automóveis oficiais em suas
instalações e arredores) que tornam esse já surreal número ainda maior. Quando
se pensa que as estruturas da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho
provavelmente replicam esse comportamento, tem-se uma ideia do tamanho do
desperdício. Mas, a favor delas, diga-se, ao menos, que sempre há e haverá
questões trabalhistas e que sempre há e haverá o risco de eclosão de guerras.
No caso da Justiça Eleitoral, nem um pretexto minimamente razoável se tem.
Não à toa, além do Brasil, nenhum
país democrático de médio ou grande porte possui uma Justiça Eleitoral
permanente. Nenhum. Por uma razão ridiculamente simples: Justiça Eleitoral é
para quando há eleições. Antes que os argumentos de que seria necessário manter
uma Justiça Eleitoral permanente para garantir que crimes eleitorais não
ocorram fora das eleições (o que tem como corolário a espúria ideia de que as
democracias mais avançadas do mundo são um celeiro de crimes eleitorais que
grassariam nos períodos entre eleições), basta lembrar que crimes eleitorais
são crimes e, portanto, poderiam perfeitamente ser reprimidos, investigados e
julgados como qualquer outro crime. Assim, durante períodos eleitorais,
formar-se-iam juízos ad hoc de plantão e pronto: nada de mais uma
estrutura paralela – precisamos de apenas uma Justiça que funcione, sem
sobreposição de estruturas, cargos, funções. Evidentemente, nem tudo na vida (e
menos ainda na política) resume-se à racionalidade nua e crua. Transformar as
quatro Justiças em apenas uma parece ser uma tarefa ingrata, difícil, quase
impossível; mas, na verdade, não é. Obviamente, depende primeiramente da
existência de vontade política, um artigo aparentemente em extinção, mas não
apenas disso. Precisa de apoio popular maciço para se poder enfrentar as fortes
resistências corporativas, ainda que legítimas e bem-intencionadas. O respaldo
da opinião pública viria da combinação da apresentação da economia ao se deixar
de ter quatro Justiças com um compromisso gravado nas tábuas da lei que a economia
feita com a unificação das Justiças não seria usada para a contratação de
manobristas ou garçons para suntuosos palácios ou compra de carros oficiais.
Dessa forma, os brasileiros apoiariam as mudanças e cobrariam mais eficiência
da Justiça – que poderia, no futuro, também ter seus chefes eleitos pelo povo,
como ocorre em outras democracias consolidadas do mundo, mas isso é assunto
para se discutir depois da unificação; afinal, com quatro Justiças, um debate
sobre democratização do Poder Judiciário é mero devaneio.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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