Theresa May decididamente não é a
liderança mais adequada para um momento tão delicado para os maiores guardiães
da democracia que nossa esfera azul já viu. De fato, há apenas dois anos o
mundo se curvava em respeito aos britânicos pelos 800 anos da Carta Magna. O
minúsculo arquipélago de clima surpreendentemente temperado em altitudes
elevadas (Londres fica a 51,5° Norte, mesma faixa de Moscow, que fica a 55, 7°)
já foi a maior potência do mundo, o império aonde a qualquer hora sempre havia
um território sendo banhado pelo Sol, na famosa definição oitocentista. O local
aonde o Iluminismo surgiu. O local aonde os Direitos Humanos entraram na lei (a Bill
of Rights da Revolução Gloriosa de 1689 inspirou os americanos e franceses
de um século depois e a própria ONU), aonde o capitalismo provou sua força e
aonde a democracia convive perfeitamente bem com a monarquia não é mais o
mesmo. Pátria de contrastes, capaz de condenar Oscar Wilde por ser homossexual
enrustido e condecorar como Cavaleiro do Império Britânico ninguém menos do que
o homossexual assumido Elton John, o Reino Unido assenta-se na ideia de
respeito e colaboração entre os países que o formam e os que formam a chamada Commonwealth.
Com a derrubada pela Câmara Baixa (Comuns) dos adendos incluídos pela Câmara
Alta (Lordes) acerca das garantias aos cidadãos europeus vivendo no Reino Unido
da Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales) e da Irlanda, a própria
unidade britânica está em cheque pela primeira vez desde 1923, quando a Irlanda
do Sul (Eire) se tornou uma república independente. Mas, na verdade, o chamado Brexit tem
mais paralelos com a perda dos Estados Unidos da América em 1783, do que com a
perda do Eire em 1923. Será fascinante olhar para o Brexit daqui a
alguns séculos e entender como os britânicos mais uma vez influenciaram o
mundo. Por ora, é sempre interessante relembrar os porquês de o que acontece na
Britannia, como os romanos chamaram o assentamento que lá estabeleceram há mais
de dois milênios, repercute tanto no mundo.
O Brexit é um daqueles
raros momentos em que a inépcia de uma pessoa muda a história. Ao contrário do
que defendem historiadores de matriz marxista, pessoas importam – e a história
britânica está coalhada de exemplos. Pensemos na própria Carta Magna. Aos olhos
de hoje, parece inacreditável que aquele documento seja considerado um marco da
democracia dada a quantidade de privilégios reais que lista. E, no entanto, é
exatamente isso: pela primeira vez, os privilégios reais foram compilados e,
com isso, delimitados. João sem Terra, o rei cuja inabilidade o levou a fazer
jus ao ridículo título com que entrou para a posteridade quando os barões se
recusaram a seguir sob seu comando após mais uma de suas desastradas – e caras
– campanhas militares contra os francos (os inimigos par excellence dos
anglo-saxões desde sempre) e lhe impuseram a humilhante limitação de poderes da
Carta Magna. Sem a incompetência de João Sem Terra, não sabemos como seria a
limitação dos poderes dos governantes – na verdade, nem podemos garantir que
haveria limitação dos poderes dos governantes: desde de João Sem Terra, o
governante (no caso, o rei) somente pode fazer o que a lei permite, enquanto os
governados somente não podem fazer o que a lei proíbe. Parece sutil,
mas essa diferença mudou o mundo e foi apenas questão de [muito] tempo até que,
há poucos anos, a maioria da humanidade estivesse vivendo em locais nos quais
os governantes não apenas têm seus poderes limitados pelas leis, mas também são
eleitos pelo povo. Como a História não abarca hipóteses, o fato é que o que
entendemos hoje como democracia é tributário da Carta Magna, não por acaso
sinônimo de constituição até hodiernamente, oito séculos após; gostemos ou não,
graças à incompetência de João Sem Terra.
Outro episódio que mudou o mundo
foi a Revolução Gloriosa. Se a Carta Magna deixa dúvidas acerca da limitação do
poder soberano, a Revolução Gloriosa está acima de qualquer suspeita. Após um
violento interlúdio quase republicano com a ditadura de Oliver Cromwell em 1653
(militar com ancestralidade em baixa nobreza, Cromwell era quase um plebeu para
os padrões dos aristocratas ingleses), os britânicos retomaram a ordem e
limitaram definitivamente o poder real, que manteve a origem divina, mas foi
paulatinamente sendo limitado ao papel de Chefe de Estado, até chegarmos ao
adágio atual que o mundo conhece: Elizabeth II reina, mas não governa.
Obviamente, entre depor e decapitar um rei (e episódios bizarros como o
julgamento de um cadáver e a decapitação de outro, além de atos de genocídio
contra católicos, irlandeses e escoceses) e literalmente importar um rei da
Holanda, os ingleses passaram maus bocados e decidiram se unir no arranjo
bicameral (Lordes e Comuns) que, mais de três séculos depois, se mantém firme e
forte. Tão fabulosa foi a experiência inglesa que foi copiada por outros povos,
embora imprecisamente: Montesquieu, o brilhante filósofo que levou a separação
dos poderes para a Europa Continental e seria inspirador da Revolução
Americana, entendeu errado o sistema britânico e igualou o Poder Executivo ao
Poder Legislativo, sendo que, na Britannia, o chefe do Poder Executivo é
escolhido pelo Poder Legislativo e a ele presta contas, podendo ser
literalmente apeado do cargo a qualquer momento conforme a vontade do Poder
Legislativo – este, eleito pelo povo, em sua Câmara Baixa – e, portanto, lhe
sendo subordinado, não igual. Ainda assim, os ingleses inspiraram a criação dos
Estados Unidos da América a tal ponto que o presidente é muito mais um rei que
reina mas não governa do que dono de um poder igual ao do Parlamento; afinal,
também lá palavra final é do Poder Legislativo. Democracia, restrição do poder
do governante, direitos humanos... Melhor parar por aqui: a lista é longa. Não
bastasse tudo isso, daquelas ilhas ainda vieram as Revoluções Industriais e
inúmeros avanços tecnológicos, sem contar ícones culturais de toda sorte, de
Shakespeare aos Rolling Stones, da máquina a vapor à penicilina, passando por
Adam Smith, Francis Bacon, John Locke e tantos mais que não há como se negar a
importância daquela Europa perto da Europa. Todavia, a história inglesa é
dependente de pessoas. E decisões personalíssimas mudariam o mundo.
A inabilidade e a arrogância de
Jorge III (que muitos atribuem a uma fase inicial da loucura que acabaria por
dominá-lo) foi mais responsável pela saída dos Estados Unidos da Coroa
Britânica do que qualquer outro fator – na sequência natural dos fatos, a
América do Norte inteira deveria ser hoje como uma Austrália setentrional: uma
monarquia parlamentarista enorme e independente, mas com Elizabeth II como
Chefe de Estado e o Union Jack no canto superior esquerdo da
bandeira. Não aconteceu basicamente por conta do fator humano da incapacidade
de atender aos mais básicos anseios dos colonos por parte de Jorge III; afinal,
como se sabe, foi a intolerância e a arrogância do rei que transformaram um
pleito por representatividade no Parlamento em Londres (naturalmente, tanto o
pleito como a própria existência do Parlamento só foram possíveis porque houve
antes deles a Carta Magna e a Revolução Gloriosa). Assim como a independência
da Irlanda não pode ser desvencilhada de ações individuais de perseguição ao
catolicismo que se arrastaram por séculos, a Revolução Americana, que até hoje
inspirara movimentos de independência em todo o mundo (da Revolução Francesa de
1789 – vale lembrar que boa parte dos revoltosos acorria à embaixada americana
em Paris, comandada por ninguém menos do que Benjamin Franklin, para aprender
sobre os valores dos autodenominados Founding Fathers – à Revolução
Haitiana de 1792, passando pela Inconfidência Mineira, virtualmente todas as
lutas de independência desde que George Washington criou o Exército Continental
em 1775 tiveram inspiração na incrível façanha dos americanos:
autodeterminação, algo impensável à época), é indissociável da ação pessoal de
Jorge III. Querendo ou não, o fato é que sem os britânicos não haveria a
independência americana e o mundo certamente seria outro. E quando não é uma
pessoa que muda, basta um pequeno grupo; afinal, foi uma pequena parcela de
cidadãos britânicos que esteve à frente de uma campanha civil que acabou com
uma prática tão antiga quanto a própria humanidade: a escravidão. Nunca é
demais lembrar que pressão popular pelo fim da escravidão só foi bem-sucedida (mais
do que isso, só foi possível) porque, graças à Carta Magna e à Revolução
Gloriosa, havia uma opinião pública capaz de mudar os rumos da nação – e
poderosa a ponto de fazer não apenas poderosos britânicos perderem dinheiro com
o fim da escravidão, mas também levar o Governo de Sua Majestade, então o mais
poderoso do mundo, a exigir que outras nações abolissem. Os britânicos também
foram o bastião de resistência contra tiranos autoritários que tentaram dominar
a Europa, de Napoleão a Hitler e Stálin. Em suma, o que acontece nas Ilhas
Britânicas acaba afetando o mundo há 800 anos, para o bem (como nos exemplos
acima) e para o mal (não devemos em hipótese alguma nos esquecer dos inúmeros
crimes perpetrados, patrocinados ou vergonhosamente tolerados pelo Reino Unido,
de genocídios raciais e religiosos até covardes crimes de guerra, como os
bombardeios com bombas incendiárias sobre civis em Dresden e Düsseldorf quando
a Alemanha já estava derrotada de facto – embora ainda não de
jure – ao final da II Guerra Mundial) e, por isso, não há de se esperar
que será diferente após o Brexit.
O Brexit é, em última
análise, obra dileta da incompetência de uma só pessoa, um sujeito chamado
David Cameron, que há de ser lembrado como um dos maiores patetas a jamais
morar no Número 10 de Downing Street – se não o maior deles. Cameron
simplesmente apostou décadas de trabalho diplomático em um jogo de dados no
qual apenas uma combinação (a dele) não levaria à saída do Reino Unido da União
Europeia. Política internacional é, por definição, política de longo prazo.
Assim, a política externa é caracterizada por ser transcendente e forçar todos
os governos de qualquer país a manterem compromissos anteriores assumidos,
ainda que tenham sido firmados por seus mais figadais adversários. Em bom
português, governos mandam em política interna, mas negociam em política
externa – nesta seara, as margens de manobra são muito menores. Política
externa, portanto, não é assunto de qualquer governo específico, mas sim de
todos. O corolário é bem direto: política externa não deve estar sujeita às
oscilações da política interna; afinal, troca-se de governo e cada novo governo
tem os seus compromissos, mas o país permanece o mesmo, assim como os seus
compromissos. Política externa não é assunto para plebiscitos em forma de
perguntas objetivas nos quais inúmeros outros fatores efêmeros interferem na
decisão. É, como dissemos, assunto de estado, não de governo – política externa
é sempre de longo prazo, normalmente com tratados de séculos ou mesmo sem fim
definido. Não obstante isso, Cameron, o Pateta, transformou a suadíssima
entrada do Reino Unido na União Europeia (foram anos de tentativas até que De
Gaulle fosse substituído por Georges Pompidou e a França retirasse seu veto à
entrada britânica) em um referendo sobre seu governo mais do que qualquer outra
coisa. Não poderia dar certo – e não deu: com baixíssimo comparecimento, a
saída foi aprovada e agora os britânicos inauguram uma nova e desconhecida era
para eles, para a União Europeia e para o mundo. Convém, todavia, não desprezar
os efeitos do Brexit. A História já nos mostrou, por inúmeros exemplos,
que as Ilhas Britânicas não apenas tendem a ser vanguarda, como tendem a ser
imitadas. Na verdade, o recrudescimento dos nacionalismos vem na esteira de
mais uma grave crise do liberalismo (a segunda em menos de um século – a
primeira, em 1929, deixou como legado uma virtual hegemonia de uma aliança
entre os autoritarismos fascista e comunista, com todas as variações entre um e
outro, passando pelo imperialismo japonês e muitos outros, que seria vencida
basicamente pelo mundo britânico estendido: Reino Unido, Estados Unidos,
Canadá, Austrália etc., além de inúmeras colônias) e teve no Brexit seu
principal incentivador. Não há como se entender Donald Trump na Casa Branca sem
se levar em conta o Brexit. Mais além, não há como se entender a
impensável aproximação de Trump com Putin I da Rússia em um mundo sem o Brexit como
pano de fundo. O recrudescimento mundial do nacionalismo autoritarista (pouco
importa se religioso ou laico, se de direita ou de esquerda: todos os
nacionalismos autoritaristas são almas gêmeas) que estamos observando
hodiernamente tem no Brexit seu marco zero. As Ilhas Britânicas ainda
importam, e importam muito. Os britânicos, naturalmente, estão preocupados com
o novo cenário diante deles: de impensável a inevitável e, agora, incerta, a
União Europeia ainda é uma página sendo escrita, enquanto o Reino Unido parecia
estável demais depois de os escoceses recusarem a saída. Com um detalhe
crucial: um dos principais motivos a favor da manutenção dos escoceses como
súditos de Elizabeth II foi exatamente o possível novo país estar
automaticamente fora da União Europeia. Também não há como se negar a
importância da União Europeia na Irlanda do Norte: com o Brexit, uma
votação popular a favor de uma unificação da parte de maioria protestante
(Ulster, no Norte) com a parte de maioria católica (Eire, no Sul) em uma
República da Irlanda contemplando toda a Ilha da Irlanda, considerada
impossível até a pacificação no começo da década passada, passa a ser possível
– e, até mesmo, provável. Além da Irlanda do Norte, a Escócia, por sua vez,
deve convocar um novo plebiscito sobre sua permanência no Reino Unido, no que
pode ser seguida pelo País de Gales. Em suma, o Reino Unido, ao olhar-se no
espelho, vê um retrato de Dorian Gray às avessas, se desfazendo rapidamente. O
impacto do Brexit no mundo se fará sentir por muitos anos no futuro.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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