É incompreensível, ao menos no
primeiro momento, um político voluntariamente destruir seu futuro em praça
pública. A crônica política nacional registra momentos memoráveis de
incoerências que vão de Bernardo de Vasconcellos (cerrou fileiras com os
liberais e com os conservadores) a Dilma Rousseff (reelegeu-se garantindo que
nada mudaria na política econômica e, imediatamente após ser eleita, anunciou
uma nova equipe econômica de viés diametralmente oposto), passando pelo surreal
pedido de Fernando Henrique Cardoso para que os brasileiros se esquecessem do
que ele havia escrito antes de ser presidente, entre muitos outros exemplos.
Mas também registra declarações deploráveis, de pura grosseria, como Figueiredo
dizendo que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo, Collor de Mello com
o “aquilo roxo”, Maluf com o abjeto “estupra, mas não mata” e Marta Suplicy com
o insensível “relaxa e goza” para os brasileiros que tiveram suas férias
estragadas pelo caos aéreo – sem contar os caminhões de sandices proferidas por
Lula da Silva em décadas de carreira. Declarações estapafúrdias, como se vê,
não são novidade em terras tupiniquins. Porém, são raras, muito raras.
Políticos tendem a saber evitar Ciro Gomes conseguiu a proeza de entrar para o
seleto grupo ao dizer que, caso Sérgio Moro (metonímia para a Operação
Lava-Jato) tomasse alguma decisão de prendê-lo, iria receber “a turma dele na (sic)
bala” e ponto final. Com uma frase, Ciro Gomes conseguiu a incrível proeza de
acabar com as suas nada desprezíveis chances de vencer a eleição presidencial
de 2018.
Ciro Gomes é um político sui
generis. É parte de uma oligarquia que remonta aos primórdios do século passado
e que até hoje controla com mão de ferro seus rincões no interior do Ceará. Não
que isso sirva para desqualificar Ciro Gomes per se, como se nascer em uma
determinada família fosse condição para se julgar alguém. Porém, é razoável se esperar
um pouco mais de comedimento em declarações públicas de quem nasceu em família
de políticos e fez política a vida inteira. Ciro, todavia, não a possui, como
já provou reiteradas vezes. E fez o mesmo em entrevista concedida hoje
(27-Mar-2017) ao jornal Folha de São Paulo. A oportunidade que Ciro Gomes jogou
fora não é uma barbada, mas também não é infactível, dependendo dos cenários.
Ciro Gomes já disputou duas vezes a presidência (1998 e 2002) e perdeu, como se
sabe, mas teve desempenho decente, chegando a mais de 10% em ambos os casos.
Surgiu como uma liderança nordestina jovem e moderna, embora de família de
políticos tradicionais. Como se vê, um quê de Fernando Collor de Mello sempre
esteve presente em sua biografia, com a diferença de que Ciro ostentava uma
precoce calvície quando despontou no cenário nacional. Mas o lado Collor de
Mello de Ciro Gomes vai além da origem familiar e se mostra mais presente nas
declarações desastrosas. Nisso, aliás, o cearense supera o alagoano nascido no
Rio de Janeiro. Ciro Gomes tem momentos em que mais parece um destemperado.
Arrogante como só filhos de coronéis conseguem ser, disse que um eleitor era
“burro” em cadeia nacional e já foi capaz de declarar a jornalistas que o papel
mais importante de sua esposa (à época, a atriz Patrícia Pillar) era o de
dormir com ele. Já discutiu com pessoas em fila de hospital Pois é. Difícil
acreditar que um sujeito com esse histórico poderia ganhar a eleição, mas é
possível – com os avanços das investigações, supondo-se que Ciro Gomes não seja
atingido e Lula da Silva seja. Nesse caso, Ciro Gomes seria o herdeiro da
esquerda tradicional que ficou órfã de Lula da Silva, um contingente bastante
robusto. O plano não era ruim. O executor que é boquirroto.
Se não falamos sobre corrupção é
porque, até o momento, Ciro Gomes não aparece nas listas de corruptos – e Lula
da Silva e Aécio Neves aparecem cada vez mais nelas; aliás, não só eles:
virtualmente, todos os principais políticos tradicionais candidatos à eleição
presidencial de 2018, talvez à exceção dos radicais de direita e de esquerda,
provavelmente estarão com as imagens na lona. Ceteris paribus, pode-se
dizer o óbvio: caso se só haja políticos tradicionais dentre os candidatos
competitivos, Ciro Gomes seria um dos favoritos; afinal, bastaria que ele não
falasse novas besteiras e demonstrasse amadurecimento – não estando envolvido
nas corrupções e se mostrando moderado ele teria a seu favou um recall elevado
e poderia realmente ser visto como uma solução palatável para tucanos e petistas
diante de uma polarização de segundo turno contra um Bolsonaro, por exemplo.
Ciro Gomes já esteve junto a ambos, embora sempre entre tapas e beijos, em
momentos distintos. Devidamente temperado, Ciro Gomes deveria ser a terceira
via, um político tradicional que não estaria envolvido nas falcatruas atuais.
E, aparentemente, vinha trabalhando para se consolidar como tal. Até a
desastrosa entrevista publicada hoje.
O que deveria ser mais uma etapa
na construção de uma candidatura foi uma prova de que, em duas décadas, Ciro
Gomes somou mais 20 anos de e zero de temperança. As pontes com tucanos e
petistas estavam sendo bem erigidas. Ciro Gomes alternava críticas à corrupção
nos governos petistas com elogios pontuais a Lula da Silva e exaltação a algumas
políticas adotadas pelo PT. Idem em relação aos tucanos, aos empresários e aos
autodenominados movimentos sociais. Se não era um primor de harmonia, a relação
de Ciro Gomes com diversos atores da cena política nacional não era intragável
e passava a ideia de que ele estava mais aberto a fazer política do que outra
coisa. Ledo engano. A entrevista é um desastre enorme não por conta dos
destemperos nos ataques a políticos, que fazem parte do jogo e sempre são
relativizados, mas pelo ataque direto àquele que corporifica a insatisfação
nacional contra a classe política: Sérgio Moro. Ao dizer que receberia uma
ordem de um juiz federal “na (sic) bala”, Ciro Gomes não assassinou somente a
sempre vilipendiada língua portuguesa: assassinou suas próprias chances para
2018. Sem estar envolvido em denúncias de corrupção, conseguiu registrar em
vídeo que é contra o combate à corrupção. Impressionante: Ciro Gomes é o maior
gênio às avessas da política brasileira. Noves fora a postura coronelista de
anunciar que vai receber à bala, o que ele fez falou foi de uma estupidez tão
grande que simplesmente o colocou em situação pior do que aquela dos políticos
envolvidos em denúncias de corrupção: ao menos em público, protocolarmente,
eles não apenas juram inocência, como também declaram apoio à Lava-Jato. São
poucos segundos que colocaram um teto em toda uma carreira política. Não que
Ciro Gomes não tenha vidraças – tem, e muitas, desde seus destemperos no
passado a atuações muito além de questionáveis de seu irmão Cid Gomes no comando
do Ceará, como levar a sogra em jatinho para passear na Europa, entre muitas
outras situações espúrias. Mas a estufa de cristal de ser contra a Lava-Jato
ele não tinha. Agora, tem. Indelevelmente. E por ação própria e direta. Na
verdade, ao sair da disputa por força e obra do próprio destempero proverbial,
Ciro Gomes fez um último ato político involuntário: ao atacar João Dória,
posicionando-o como seu principal oponente de facto para 2018, o
boquirroto colocou o arrivista prefeito de São Paulo sob os holofotes. Pois é:
ser atacado por um desequilibrado como Ciro Gomes é a melhor propaganda que
João Dória poderia sonhar ter. Merecida sina de um boquirroto.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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