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Alemanha Ocidental. Por Pedro Nascimento Araujo


Gordon Craig, em sua obra seminal Os Alemães, apresenta um interessantíssimo apanhado (com a vantagem da visão estrangeira: Craig era escocês) acerca de como esse povo passou de bárbaros nos tempos dos césares para vanguarda cultural e tecnológica no Século XIX, para em seguida cair em um extemporâneo expansionismo que gerou as Guerras Mundiais (com sua dupla derrota e posterior destruição) e, reerguendo-se duas vezes, um século depois estar novamente no centro do mundo. Dessa vez, os alemães chegaram lá não com tropas, mas com trabalho duro, inventividade e paz – e, ao contrário das efêmeras expansões territoriais que as armas trouxeram entre 1914 e 1945, reunificou-se pela paz em 1990. A saga dos alemães (que inclui também os austríacos) tem nomes admirados até por seus inimigos (como Carlos Magno, Frederico II da Prússia e Otto von Bismarck) e nomes quase unanimemente odiados (Guilherme II da Alemanha e Adolf Hitler). Na primeira categoria, o pós-1945 foi particularmente frondoso e trouxe nomes como Konrad Adenauer (que conseguiu manter independência no lado ocidental após 1945 e fez surgir dos escombros nazistas e da destruição comunista uma Alemanha pacífica e democrática, que se ligaria visceralmente a seus antigos inimigos e recolocou o país na rota de volta rumo à potência econômica que sempre foi, com o chamado Wirtschaftswunder), Willy Brandt (que pavimentou a coexistência pacífica com a Alemanha Oriental por meio da Neue Ostpolitik e, assim, permitiu que a Alemanha florescesse economicamente cada vez mais) e, finalmente, Helmut Kohl – de quem falaremos hoje porque, há uma semana, Kohl morreu e, com ele, morreu o último grande nome de uma nação que não mais existe, mas que é basilar para a Europa ser o que é hoje: a Alemanha Ocidental.

A Alemanha Ocidental não mais existe de jure desde 1990, mas sobrevive firme e forte de facto. Isso é verdade primeiramente por uma razão simples: a Alemanha que conhecemos hoje nada mais é do que a Alemanha Ocidental que incorporou a Alemanha Oriental, a ponto de (literalmente) pagar para tirar do Leste o descomunal atraso acumulado em apenas 45 anos de comunismo. Mas, além disso, relembrar a Alemanha Ocidental significa relembrar a grande obra para a qual Helmut Kohl, chanceler que mais tempo permaneceu no comando germânico desde Otto von Bismarck, o primeiro chanceler alemão e artífice da unificação alemã, contribuiu muito. Se não é exagero dizer que a Alemanha como conhecemos hoje dificilmente existiria sem Bismarck (aliás, a unificação comandada por ele deliberadamente excluiu a parte germânica que restava do Império Habsburgo: a Áustria), também não é exagero dizer que a Alemanha como conhecemos hoje (reunificada) dificilmente existiria sem Helmut Kohl. E o mundo só tem a ganhar com uma Alemanha pacífica e democrática, locomotiva da Europa e farol para o mundo na política, na economia, na tecnologia e na cultura. Particularmente em uma era de incertezas, quando um líder aparentemente errático na Casa Branca se soma a uma China que busca projeção internacional como forma de legitimar sua ditadura em um momento de declínio do crescimento econômico, uma Alemanha dividida simplesmente não poderia ser líder de uma Europa unida – e sem a Alemanha à frente, a União Europeia não seria mais do que a mais bem-acabada coalizão de fracos da história. Para que a Alemanha chegasse aonde está, foi necessário primeiro que a Alemanha Ocidental desse certo, muito certo.

Em 1945, ninguém em sã consciência apostaria na União Europeia como uma Alemanha expandida. A serpente do III Reich tinha acabado de ser derrotada a um custo que fez a derrota da serpente do II Reich parecer um reles ensaio geral. As democracias estavam tão fartas do prussianismo que admirara poucas décadas antes que aceitaram dar as mãos aos bolcheviques para derrotar os nazistas após Hitler trair Stálin, seu sócio de primeira hora. Todos queriam vingança. Todos tiveram vingança, na verdade. As democracias cometeram crimes de guerra horrorosos quando ficou claro que a vitória era mera questão de tempo. Os bombardeios com bombas incendiárias sobre as populações civis em Dresden e Düsseldorf são a maior nódoa na biografia de Sir Winston Churchill, defensor declarado da ideia de fazer o povo alemão sentir na pele o sofrimento que o ditador alemão impunha sobre outros povos. As tropas soviéticas saqueavam e destruíam e estupravam para se vingarem coletivamente – literalmente, estavam cumprindo ordens ao perpetrarem tais atrocidades. Enquanto o governo americano debatia o Plano Morgenthau, que simplesmente propunha levar a Alemanha de volta à era pré-industrial com o banimento de toda atividade industrial no país, o governo soviético desmontava e levava para além dos Montes Urais as indústrias de ponta dos alemães, junto com seus técnicos mais qualificados devidamente transformados em convenientes prisioneiros de guerra (em grande medida, foi com essa inteligência roubada que o programa nuclear soviético conseguiu detonar sua primeira bomba já em 1949), enquanto postergava cinicamente a entrega da ocupação nas partes que cabiam aos demais vencedores e que havia recebido aquiescência para chegar primeiro graças a [mais] um bem-urdido ardil de Stálin. Assim, não seria razoável supor que uma população que, em duas gerações, sofreu os horrores do Tratado de Versalhes, a dominação nazista e a derrota e passar por terra arrasada e saques em 1945, fosse capaz de se agrupar no que ainda restava de seu território (a Áustria sofreu destino semelhante e também foi ocupada e dividida em quatro ocupações, com Viena tendo sido partilhada como Berlim) e voltar a ser uma potência. E, no entanto, na parte ocidental, isso aconteceu: Konrad Adenauer fez uma desnazificação firme, mas jamais vingativa. A Alemanha se uniu umbilicalmente aos seus vizinhos na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951) e na Comunidade Econômica Europeia (1957). Nada de exércitos. Nada de assustar os assustadíssimos vizinhos com reveses autoritaristas. A democracia alemã funcionava bem, muito bem – e sua economia funcionava ainda melhor: oWirtschaftwunder provava que a capacidade alemã ainda sobrevivia. A Guerra Fria deixava claro que o, livre da ameaça nazista, o comunismo estava pronto para tentar dominar o mundo. Nesse cenário, não fazia sentido arrasar a parte capitalista da Alemanha e acabar facilitando uma tentativa de unificação pela parte comunista da Alemanha, como ocorreria com as duas Coreias em 1950 (sem sucesso) e com os dois Vietnams (sem sucesso enquanto as tropas americanas defendiam o lado capitalista e com sucesso dois anos após a retirada unilateral de Washington). Sob Adenauer, a Alemanha Ocidental parecia confiável o suficiente até para fazer parte da aliança de defesa coletiva hemisférica, a OTAN.

Enquanto isso, a Alemanha Oriental ia ficando para trás e se fechava cada vez mais, até que o Muro de Berlim (1961) provasse ao mundo que era uma tentativa desesperada de impedir que entrasse em colapso por falta de pessoas: uma patética fronteira feita não para barrar entrada, mas para barrar saída. Os comunistas conseguiram transformar a Alemanha Oriental em uma prisão. A propaganda garantia que o país era um rival econômico da Alemanha Ocidental, mas a verdade era bem diferente, a ponto de hoje soar como de extremo mau gosto a velha piada sobre os alemães serem tão eficientes que conseguiram fazer o comunismo funcionar. Enquanto isso, Bonn comemorava que as indústrias voltaram a produzir com força total. Mais do que isso, estava em curso uma revolução na maneira como os alemães eram percebidos no Ocidente. Culturalmente, a imagem dos alemães como vilões foi amenizada: em 1961, Ludwig von Drake (Professor Ludovico no Brasil), um tio austríaco do Pato Donald, entrou para a galeria de personagens da Disney como um tipo afável, prestativo e muito inteligente – além, claro, de levemente trapalhão. Na televisão, de 1955 a 1971, Hogan’s Heroes mostrava ocidentais em um campo de prisioneiros de guerra comandado por militares alemães muito abilolados que em nada lembravam os cruéis nazistas, e nunca sofriam torturas ou crueldades. Exibindo bom comportamento e crescendo bastante (obviamente, algumas centenas de milhares de soldados americanos permanentemente prontos para agir eram uma boa garantia de que nada sairia errado: embora o número atual seja pouco maior do que 30 mil, chegou a atingir cerca de 300 mil), a Alemanha Ocidental era a Alemanha – e, mais do que amiga do Ocidente, era parte do Ocidente. O marco alemão (ocidental) voltou a ser uma moeda de reserva, a convivência pacífica com o vizinho comunista foi garantida pela Neue Ostpolitik de Willy Brandt (que render-lhe-ia um Nobel da Paz em 1971). Ninguém considerava uma reunificação possível, entretanto. E, entretanto, ela veio e a Alemanha Ocidental acabou.

Em 1989, o edifício comunista ruiu sob seu próprio peso. Ineficiente, injusto, cruel, antiquado, poluidor, intervencionista, expansionista, genocida: a lista de adjetivos negativos associados ao Império Soviético e seus suseranos é extensa e verdadeira. A potência construída com base nos padrões do Século XIX não conseguiria chegar ao final do Século XX. Sem os tanques do Kremlin, países mantidos artificialmente juntos se separaram, como a Iugoslávia, mas não houve reunificações; do contrário, independências foram a regra. E, invariavelmente, veio o questionamento sobre a possibilidade de reunificação alemã. E, mais invariavelmente, vieram as resistências dos líderes europeus à ideia; afinal, a Alemanha Ocidental já era a maior potência da Europa e eles temiam que o poderio econômico de uma Alemanha unificada pudesse levar a um poderio militar igual numa hora em que a Europa deixaria de ser centro geopolítico do mundo e os EUA poderiam retomar seu isolamento histórico. É um medo que soa pueril hoje, mas que certamente fazia sentido à época e à luz da mente de quem viveu os horrores de uma Alemanha rica e belicosa. Na época, Margareth Thatcher, François Mitterrand, George W. B. Bush e Mikhail Gorbatchov se diziam simpáticos à reunificação em público e trabalhavam para impedi-la nos bastidores. Todos concordavam com o que Yitzhak Shamir (premier israelense) dizia abertamente: havia medo de que a Alemanha reunificada formasse o país mais poderoso do mundo – e sedento por vingança contra todos e disposto a retomar a perseguição aos judeus. Havia também uma questão prática: o país que tinha um muro virtualmente contínuo separando seus dois lados (na prática a Alemanha inteira era Berlim em escala nacional) era o ponto mais quente da Guerra Fria, com mais de um milhão e meio de soldados de nove nacionalidades em seu solo e incontáveis ogivas termonucleares, tanques e aviões – ninguém teria como garantir que, reunificada, a Alemanha simplesmente não usasse todo o aparato militar para começar ataques com absurdas vantagens sobre os vizinhos. E a falta de confiança impedia a reunificação porque, legalmente falando, a Alemanha ainda era um país sob ocupação estrangeira: desde 1945, a Alemanha não poderia tomar qualquer ação internacional sem o beneplácito dos seus ocupantes – os soviéticos chegaram ao ponto de ter o direito por escrito de representar internacionalmente a Alemanha Oriental quando desconfiavam que seus títeres em Berlim não teriam capacidade de fazê-lo; em outras palavras, enquanto Alemanha Ocidental, rica e avançada, tinha sua soberania limitada, a Alemanha Oriental, pobre e atrasada, era um mero suseranato soviético. Que os controladores antagônicos de duas Alemanhas mantidas deliberadamente na rédea curta temessem a reunificação não espanta. Espante que tenham aceitado. E é aí que entra Helmut Koh, com seu famoso discurso no qual apresenta um plano de 10 pontos para reunificar a Alemanha menos de um mês após a queda do Muro – decidiu fazer isso sozinho, sem apoio dos países ocupantes, sob desconfiança dos vizinhos e para surpresa dos correligionários. Com esse ato, Helmut Kohl fez a roda da história começar a girar inexoravelmente em favor da reunificação. Era questão de tempo: Helmut Kohl estava matando a Alemanha Ocidental para fazê-la virar o coração da Alemanha e da Europa. O normal é que os países conheçam seus ápices e invariavelmente iniciem um mergulho sem volta rumo aos seus nadires. Com a Alemanha Ocidental, não: Helmut Kohl a abateu no auge. A Alemanha Ocidental, talvez o mais improvável exemplo do sucesso que um povo pode obter mesmo quando tem tudo contra, morreu pelas mãos de Helmut Kohl para que, com o barro feito das suas cinzas, se moldasse primeiro a Alemanha reunificada e depois a própria Europa.

Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com

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