Gordon Craig, em sua obra seminal
Os Alemães, apresenta um interessantíssimo apanhado (com a vantagem da visão
estrangeira: Craig era escocês) acerca de como esse povo passou de bárbaros nos
tempos dos césares para vanguarda cultural e tecnológica no Século XIX, para em
seguida cair em um extemporâneo expansionismo que gerou as Guerras Mundiais
(com sua dupla derrota e posterior destruição) e, reerguendo-se duas vezes, um
século depois estar novamente no centro do mundo. Dessa vez, os alemães
chegaram lá não com tropas, mas com trabalho duro, inventividade e paz – e, ao
contrário das efêmeras expansões territoriais que as armas trouxeram entre 1914
e 1945, reunificou-se pela paz em 1990. A saga dos alemães (que inclui também
os austríacos) tem nomes admirados até por seus inimigos (como Carlos Magno,
Frederico II da Prússia e Otto von Bismarck) e nomes quase unanimemente odiados
(Guilherme II da Alemanha e Adolf Hitler). Na primeira categoria, o pós-1945
foi particularmente frondoso e trouxe nomes como Konrad Adenauer (que conseguiu
manter independência no lado ocidental após 1945 e fez surgir dos escombros
nazistas e da destruição comunista uma Alemanha pacífica e democrática, que se
ligaria visceralmente a seus antigos inimigos e recolocou o país na rota de
volta rumo à potência econômica que sempre foi, com o chamado Wirtschaftswunder),
Willy Brandt (que pavimentou a coexistência pacífica com a Alemanha Oriental
por meio da Neue Ostpolitik e, assim, permitiu que a Alemanha
florescesse economicamente cada vez mais) e, finalmente, Helmut Kohl – de quem
falaremos hoje porque, há uma semana, Kohl morreu e, com ele, morreu o último
grande nome de uma nação que não mais existe, mas que é basilar para a Europa
ser o que é hoje: a Alemanha Ocidental.
A Alemanha Ocidental não mais
existe de jure desde 1990, mas sobrevive firme e forte de facto.
Isso é verdade primeiramente por uma razão simples: a Alemanha que conhecemos
hoje nada mais é do que a Alemanha Ocidental que incorporou a Alemanha
Oriental, a ponto de (literalmente) pagar para tirar do Leste o descomunal
atraso acumulado em apenas 45 anos de comunismo. Mas, além disso, relembrar a
Alemanha Ocidental significa relembrar a grande obra para a qual Helmut Kohl,
chanceler que mais tempo permaneceu no comando germânico desde Otto von
Bismarck, o primeiro chanceler alemão e artífice da unificação alemã,
contribuiu muito. Se não é exagero dizer que a Alemanha como conhecemos hoje
dificilmente existiria sem Bismarck (aliás, a unificação comandada por ele
deliberadamente excluiu a parte germânica que restava do Império Habsburgo: a
Áustria), também não é exagero dizer que a Alemanha como conhecemos hoje
(reunificada) dificilmente existiria sem Helmut Kohl. E o mundo só tem a ganhar
com uma Alemanha pacífica e democrática, locomotiva da Europa e farol para o
mundo na política, na economia, na tecnologia e na cultura. Particularmente em
uma era de incertezas, quando um líder aparentemente errático na Casa Branca se
soma a uma China que busca projeção internacional como forma de legitimar sua
ditadura em um momento de declínio do crescimento econômico, uma Alemanha
dividida simplesmente não poderia ser líder de uma Europa unida – e sem a
Alemanha à frente, a União Europeia não seria mais do que a mais bem-acabada
coalizão de fracos da história. Para que a Alemanha chegasse aonde está, foi
necessário primeiro que a Alemanha Ocidental desse certo, muito certo.
Em 1945, ninguém em sã
consciência apostaria na União Europeia como uma Alemanha expandida. A serpente
do III Reich tinha acabado de ser derrotada a um custo que fez a derrota da
serpente do II Reich parecer um reles ensaio geral. As democracias estavam tão
fartas do prussianismo que admirara poucas décadas antes que aceitaram dar as
mãos aos bolcheviques para derrotar os nazistas após Hitler trair Stálin, seu
sócio de primeira hora. Todos queriam vingança. Todos tiveram vingança, na
verdade. As democracias cometeram crimes de guerra horrorosos quando ficou
claro que a vitória era mera questão de tempo. Os bombardeios com bombas
incendiárias sobre as populações civis em Dresden e Düsseldorf são a maior nódoa
na biografia de Sir Winston Churchill, defensor declarado da ideia de fazer o
povo alemão sentir na pele o sofrimento que o ditador alemão impunha sobre
outros povos. As tropas soviéticas saqueavam e destruíam e estupravam para se
vingarem coletivamente – literalmente, estavam cumprindo ordens ao perpetrarem
tais atrocidades. Enquanto o governo americano debatia o Plano Morgenthau, que
simplesmente propunha levar a Alemanha de volta à era pré-industrial com o
banimento de toda atividade industrial no país, o governo soviético desmontava
e levava para além dos Montes Urais as indústrias de ponta dos alemães, junto
com seus técnicos mais qualificados devidamente transformados em convenientes
prisioneiros de guerra (em grande medida, foi com essa inteligência roubada que
o programa nuclear soviético conseguiu detonar sua primeira bomba já em 1949),
enquanto postergava cinicamente a entrega da ocupação nas partes que cabiam aos
demais vencedores e que havia recebido aquiescência para chegar primeiro graças
a [mais] um bem-urdido ardil de Stálin. Assim, não seria razoável supor que uma
população que, em duas gerações, sofreu os horrores do Tratado de Versalhes, a
dominação nazista e a derrota e passar por terra arrasada e saques em 1945,
fosse capaz de se agrupar no que ainda restava de seu território (a Áustria
sofreu destino semelhante e também foi ocupada e dividida em quatro ocupações,
com Viena tendo sido partilhada como Berlim) e voltar a ser uma potência. E, no
entanto, na parte ocidental, isso aconteceu: Konrad Adenauer fez uma
desnazificação firme, mas jamais vingativa. A Alemanha se uniu umbilicalmente
aos seus vizinhos na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951) e na
Comunidade Econômica Europeia (1957). Nada de exércitos. Nada de assustar os
assustadíssimos vizinhos com reveses autoritaristas. A democracia alemã
funcionava bem, muito bem – e sua economia funcionava ainda melhor: oWirtschaftwunder provava
que a capacidade alemã ainda sobrevivia. A Guerra Fria deixava claro que o,
livre da ameaça nazista, o comunismo estava pronto para tentar dominar o mundo.
Nesse cenário, não fazia sentido arrasar a parte capitalista da Alemanha e
acabar facilitando uma tentativa de unificação pela parte comunista da
Alemanha, como ocorreria com as duas Coreias em 1950 (sem sucesso) e com os
dois Vietnams (sem sucesso enquanto as tropas americanas defendiam o lado
capitalista e com sucesso dois anos após a retirada unilateral de Washington).
Sob Adenauer, a Alemanha Ocidental parecia confiável o suficiente até para fazer
parte da aliança de defesa coletiva hemisférica, a OTAN.
Enquanto isso, a Alemanha
Oriental ia ficando para trás e se fechava cada vez mais, até que o Muro de
Berlim (1961) provasse ao mundo que era uma tentativa desesperada de impedir
que entrasse em colapso por falta de pessoas: uma patética fronteira feita não
para barrar entrada, mas para barrar saída. Os comunistas conseguiram
transformar a Alemanha Oriental em uma prisão. A propaganda garantia que o país
era um rival econômico da Alemanha Ocidental, mas a verdade era bem diferente,
a ponto de hoje soar como de extremo mau gosto a velha piada sobre os alemães
serem tão eficientes que conseguiram fazer o comunismo funcionar. Enquanto
isso, Bonn comemorava que as indústrias voltaram a produzir com força total.
Mais do que isso, estava em curso uma revolução na maneira como os alemães eram
percebidos no Ocidente. Culturalmente, a imagem dos alemães como vilões foi
amenizada: em 1961, Ludwig von Drake (Professor Ludovico no Brasil), um tio
austríaco do Pato Donald, entrou para a galeria de personagens da Disney como
um tipo afável, prestativo e muito inteligente – além, claro, de levemente
trapalhão. Na televisão, de 1955 a 1971, Hogan’s Heroes mostrava ocidentais em
um campo de prisioneiros de guerra comandado por militares alemães muito
abilolados que em nada lembravam os cruéis nazistas, e nunca sofriam torturas
ou crueldades. Exibindo bom comportamento e crescendo bastante (obviamente,
algumas centenas de milhares de soldados americanos permanentemente prontos
para agir eram uma boa garantia de que nada sairia errado: embora o número
atual seja pouco maior do que 30 mil, chegou a atingir cerca de 300 mil), a
Alemanha Ocidental era a Alemanha – e, mais do que amiga do Ocidente, era parte
do Ocidente. O marco alemão (ocidental) voltou a ser uma moeda de reserva, a
convivência pacífica com o vizinho comunista foi garantida pela Neue
Ostpolitik de Willy Brandt (que render-lhe-ia um Nobel da Paz em 1971).
Ninguém considerava uma reunificação possível, entretanto. E, entretanto, ela
veio e a Alemanha Ocidental acabou.
Em 1989, o edifício comunista
ruiu sob seu próprio peso. Ineficiente, injusto, cruel, antiquado, poluidor,
intervencionista, expansionista, genocida: a lista de adjetivos negativos
associados ao Império Soviético e seus suseranos é extensa e verdadeira. A
potência construída com base nos padrões do Século XIX não conseguiria chegar
ao final do Século XX. Sem os tanques do Kremlin, países mantidos
artificialmente juntos se separaram, como a Iugoslávia, mas não houve
reunificações; do contrário, independências foram a regra. E, invariavelmente,
veio o questionamento sobre a possibilidade de reunificação alemã. E, mais
invariavelmente, vieram as resistências dos líderes europeus à ideia; afinal, a
Alemanha Ocidental já era a maior potência da Europa e eles temiam que o
poderio econômico de uma Alemanha unificada pudesse levar a um poderio militar
igual numa hora em que a Europa deixaria de ser centro geopolítico do mundo e
os EUA poderiam retomar seu isolamento histórico. É um medo que soa pueril
hoje, mas que certamente fazia sentido à época e à luz da mente de quem viveu
os horrores de uma Alemanha rica e belicosa. Na época, Margareth Thatcher,
François Mitterrand, George W. B. Bush e Mikhail Gorbatchov se diziam
simpáticos à reunificação em público e trabalhavam para impedi-la nos
bastidores. Todos concordavam com o que Yitzhak Shamir (premier israelense)
dizia abertamente: havia medo de que a Alemanha reunificada formasse o país
mais poderoso do mundo – e sedento por vingança contra todos e disposto a
retomar a perseguição aos judeus. Havia também uma questão prática: o país que
tinha um muro virtualmente contínuo separando seus dois lados (na prática a
Alemanha inteira era Berlim em escala nacional) era o ponto mais quente da
Guerra Fria, com mais de um milhão e meio de soldados de nove nacionalidades em
seu solo e incontáveis ogivas termonucleares, tanques e aviões – ninguém teria
como garantir que, reunificada, a Alemanha simplesmente não usasse todo o
aparato militar para começar ataques com absurdas vantagens sobre os vizinhos.
E a falta de confiança impedia a reunificação porque, legalmente falando, a
Alemanha ainda era um país sob ocupação estrangeira: desde 1945, a Alemanha não
poderia tomar qualquer ação internacional sem o beneplácito dos seus ocupantes
– os soviéticos chegaram ao ponto de ter o direito por escrito de representar
internacionalmente a Alemanha Oriental quando desconfiavam que seus títeres em
Berlim não teriam capacidade de fazê-lo; em outras palavras, enquanto Alemanha
Ocidental, rica e avançada, tinha sua soberania limitada, a Alemanha Oriental,
pobre e atrasada, era um mero suseranato soviético. Que os controladores
antagônicos de duas Alemanhas mantidas deliberadamente na rédea curta temessem
a reunificação não espanta. Espante que tenham aceitado. E é aí que entra
Helmut Koh, com seu famoso discurso no qual apresenta um plano de 10 pontos
para reunificar a Alemanha menos de um mês após a queda do Muro – decidiu fazer
isso sozinho, sem apoio dos países ocupantes, sob desconfiança dos vizinhos e
para surpresa dos correligionários. Com esse ato, Helmut Kohl fez a roda da
história começar a girar inexoravelmente em favor da reunificação. Era questão
de tempo: Helmut Kohl estava matando a Alemanha Ocidental para fazê-la virar o
coração da Alemanha e da Europa. O normal é que os países conheçam seus ápices
e invariavelmente iniciem um mergulho sem volta rumo aos seus nadires. Com a
Alemanha Ocidental, não: Helmut Kohl a abateu no auge. A Alemanha Ocidental,
talvez o mais improvável exemplo do sucesso que um povo pode obter mesmo quando
tem tudo contra, morreu pelas mãos de Helmut Kohl para que, com o barro feito
das suas cinzas, se moldasse primeiro a Alemanha reunificada e depois a própria
Europa.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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