Dentre as obras-primas da música
ocidental, réquiens são uma tradição à parte. Mozart, Brahms, Verdi, Stravinsky
e muitos outros compositores notáveis escreveram suas versões para a missa de
encomenda das almas dos cristãos católicos. Basicamente, são missas cantadas,
com peças para cada parte da liturgia. Com o tempo, porém, compositores
diferentes foram tornando o réquiem cada vez menos missa e cada vez mais
sinfonia em forma de missa; nesse contexto, muitos apontam a sequência Dies iræ
(Dia da Ira) de Wolfgang Amadeus Mozart como a peça musical mais intensa já
feita – sem, no entanto, deixar de ser fúnebre. Na verdade, ouvir Dies iræ de
Mozart separadamente e sem conhecer a letra em latim causa uma impressão bem
diversa de ouvir Dies iræ no contexto e conhecendo a letra em latim. E eis o
ponto: uma mesma peça pode ser bela, dramática e virtuosa fora do contexto
adequado ou bela, dramática e trágica no contexto adequado. A recente decisão
do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de continuar no governo de
Michel Temer pode ser vista como virtuosa quando não se conhece a letra: apoio
incondicional às reformas que o Brasil tanto precisa. Quando se conhece a
letra, todavia, a decisão é trágica: manter o mandato de Aécio Neves. Um
autêntico réquiem para um partido que se queria diferente do PMDB do qual nasceu
e virou dissidência e que, na hora crucial, se provou apenas uma versão
bem-vestida dele.
O Brasil deve muito ao PSDB em
termos políticos – e isso torna sua voluntária descida ao inferno ainda mais
amarga. Quando o Regime Militar chegou ao fim, o PMDB, encarnação
multipartidária do bravo MDB, se envolveu em um ardil humilhante: sob o comando
do neófito (no PMDB, não na política!) José Sarney, o partido bancou um golpe
branco que transformou a Carta de 1988 de parlamentarista em presidencialista com
o intuito de garantir um ano a mais de governo para Sarney. Como se dizia na
piada da época: eleito para um mandato de quatro anos, Sarney renunciou a um e
ficou com cinco – e a Constituição, estruturada para um sistema
parlamentarista, trocou apenas o nome para presidencialista e, com isso, deu
gênese ao brasileiríssimo e surrealíssimo presidencialismo de coalizão, o
envergonhado semiparlamentarismo sob a égide do qual ora vivemos. Por não
concordar com os métodos da colcha de retalhos chamada PMDB, peemedebistas
históricos e ilustres foram fundar o PSDB: Mario Covas, Franco Montoro,
Fernando Henrique Cardoso, Afonso Arinos de Mello Franco, Heloneida Studart,
Artur da Távola, Ronaldo Cezar Coelho e muitos outros. Um Dream Team da
política brasileira foi montado em 1988 – ao menos no time titular, porque no
banco de reservas estavam Renan Calheiros e outros menos cotados. Embora, com o
tempo, o partido tenha depurado a lista por um lado (Calheiros rapidamente
sairia para acompanhar Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989), a
prática política levou o PSDB a um pragmatismo que culminaria com o apoio do
PMDB durante os governos de Fernando Henrique Cardoso – pragmaticamente, o PSDB
blindou setores estratégicos do governo da sanha do PMDB que eles tão bem conheciam.
Sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil derrubou a hiperinflação,
maior mecanismo de concentração de renda, e reformou o estado pela primeira vez
desde o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), feito em no governo de
Castello Branco (em plena ditadura, portanto) por Roberto Campos e Otávio
Bulhões de Gouveia. Fernando Henrique Cardoso conseguiu reformar o estado e
acabar com a hiperinflação em regime democrático, pagando para isso o preço
(talvez o plural seja mais adequado aqui) de ter o PMDB consigo. Ao menos
naquela época, associar-se ao PMDB, o PSDB tinha um objetivo que, mesmo que não
totalmente pio, era defensável. Agora, nem isso; agora, o único interesse é
garantir o mandato de Aécio Neves. Algo de fazer os fundadores mortos se
contorcerem nos túmulos e fazer os vivos que ainda guardam o espírito de 1988.
Aécio Neves virou um morto-vivo.
Suas conversas com Joesley Batista são o que de mais baixo surgiu desde que uma
pequena loja de câmbio em um posto com serviço de lavagem expressa começou a
ser investigada em Curitiba e deu origem à Lava-Jato. O nível é tão baixo que é
difícil se acreditar que propinas e palavrões fluam com tanta naturalidade nos
bastidores de um homem que quase foi eleito presidente do Brasil em 2014 – e
que era a principal aposta para 2018. O espantoso no áudio de Neves é a como a persona
privada difere da persona pública. Nos tempos de Torquemada, certamente alguém
falaria em possessão demoníaca, dada a diferença entre as, digamos, instâncias
de Aécio Neves. Não há como a opinião pública não depreender das gravações que
o Aécio Neves de verdade é o da coxia e não o da ribalta. Politicamente morto,
Aécio Neves propôs ao PSDB que se sacrifique em meio a algum pentagrama
invertido para salvá-lo. Bizarramente, o PSDB aceitou. Em troca de o PMDB
barrar a cassação de Aécio Neves (corolário da cassação: a quase certa prisão
imediata pelas mãos de Sérgio Moro) no Conselho de Ética do Senado, o PSDB
aceita barrar a autorização para o STF julgar Michel Temer no plenário da
Câmara dos Deputados. É um enredo tão aloprado que é risonho imaginar um
político do PSDB explicando aos filhos/sobrinhos/netos de sete anos de idade
que está protegendo um corrupto para proteger um obstrutor de justiça – e a
ordem respectiva pouco muda aqui: ambos estão investigados pelos dois crimes.
Obviamente, se não é possível explicar claramente um negócio a uma criança de
sete anos de idade sem ser questionado sobre a moralidade de tal negócio, então
muito provavelmente se trata de um negócio imoral, para dizer o mínimo.
Ocorre que o negócio imoral (para
dizer o mínimo) de tentar fazer do abraço de afogados entre Michel Temer e
Aécio Neves uma tábua de salvação mútua é um péssimo negócio, mesmo
desconsiderando-se toda a ausência de moralidade nele contida. É um péssimo
negócio porque tem chances remotas de dar certo. Primeiro porque os
aproximadamente 50 milhões de eleitores que votaram em Aécio Neves no segundo
turno de 2014 não são devotos do mineiro, como eram muitos dos também aproximadamente
50 milhões de eleitores que votaram na ungida de Lula da Silva no mesmo pleito:
esses eleitores querem que Aécio Neves pague pelo que fez. E, segundo, porque
dificilmente vai dar certo no final. O cenário mais provável é Aécio Neves ser
preso e Michel Temer não terminar o mandato. PMDB e PSDB sabem disso. Por que,
então, esse abraço de afogados? O PMDB não tem um nome a zelar há muito;
afinal, foi exatamente essa falta de compromisso com os ideais de Ulysses
Guimarães que levou a dissidência de notáveis (não podemos nos esquecer de que
Renan Calheiros também estava lá) a criar o PSDB em 1988. Mas o PSDB tem e,
mais do que isso, tem intenções de voltar a ocupar o Palácio do Planalto em
2018. Mais do que isso: o PSDB defende a necessária retomada da reforma do
estado, com reformas previdenciária, trabalhista, tributária, eleitoral etc.
etc. etc. E, por fim, o argumento mais óbvio e negligenciado de todos: o PSDB
tem quadro livre da Lava-Jato para disputar em 2018. Com Doria na disputa, os
tucanos têm um candidato que pode apontar o dedo para os demais e dizer que é a
novidade e que não participou da corrupção generalizada e institucionalizada
que virou o condomínio de poder PT-PMDB a partir de 2003 – afinal, foi Lula da
Silva quem inventou a nefária prática da “porteira fechada” na administração
federal. Assim, o PSDB tinha tudo para ser o vencedor em 2018: sairia do
governo Temer e se comprometeria a continuar votando a favor do seu próprio
programa, independentemente de quem estiver despachando no Palácio do Planalto.
Seria coerente e ético. Entraria para ganhar ano que vem com João Doria e
comemoraria sua volta por cima com um vibrante Allegro. O roteiro estava
pronto. Ao invés disso, todavia, o PSDB parece ter optado por ensaiar seu
próprio réquiem para 2018.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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