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O Ovo de Michel Miguel. Por Pedro Nascimento Araujo


Michel Miguel Elias Temer Lulia, ou simplesmente Michel Temer (o porquê da dupla homenagem a São Miguel é um mistério), acaba de inscrever definitivamente seu nome na história do Brasil. É bem verdade que seu futuro político anda absolutamente incerto após as gravações de Joesley Batista, o fato é que Michel Miguel tem mais um feito robusto em sua curta passagem pela Presidência da República: a reforma trabalhista. Ele já havia gravado seu nome no rol de presidentes reformistas ao aprovar a emenda constitucional que limita o crescimento de gastos públicos. Com a reforma trabalhista (aprovada por maioria simples, ao contrário da emenda do teto de gastos, que exigiu o mais qualificado fórum constitucional), Michel Miguel fez mais do que reformar uma legislação da época do fascismo brasileiro. Talvez nem mesmo ele saiba, mas além da já histórica segunda abolição do dia de trabalho gratuito para os sindicatos, a reforma trabalhista pode ser um Ovo de Colombo para nosso surreal sistema trabalhista: pode ser o início do fim tanto de uma justiça exclusiva, ineficiente e cara, que não mais seria necessária em um ambiente de racionalidade e livre do ranço fascista da legislação, quanto de uma anacrônica, ineficiente e cara estabilidade de emprego para o funcionalismo. Se essas duas situações adicionais realmente entrarem na pauta reformista a partir da reforma trabalhista, então Michel Miguel poderá ser lembrado no futuro como um divisor de águas. Senão, vejamos.

O Ovo de Colombo é uma anedota popular cuja moral é simples: tudo é óbvio após se conhecer a solução – na parábola, Cristóvão Colombo é questionado sobre ser mérito ou sorte ele ter descoberto a América e, em resposta, desafia todos a fazerem um ovo parar em pé sobre um dos polos; como ninguém consegue, em sua vez ele simplesmente bate um dos polos contra a mesa, tornando o ovo chato naquela extremidade e, portanto, possível de se sustentar em pé. Ao ser questionado sobre a solução, o genovês diz que não havia proibição alguma e que o coube somente a ele ter encontrado a resposta ao desafio e, portanto, o pioneirismo dele não foi sorte, mas sagacidade, e agora todos poderiam copiá-lo. Ao mexer na versão brasileira da Carta del Lavoro de Mussolini, Michel Miguel não apenas atualizou uma legislação pensada para uma época tão distante (era um Brasil predominantemente agrário, com cada mulher tendo quase seis filhos e a expectativa de vida chegando a 50 anos, no qual havia estabilidade no setor privado e uma medieval Lei da Usura controlava o setor bancário nacional, entre outras idiossincrasias da época de nosso fascismo (fascismo mesmo, com Vargas cunhando sua efígie nas moedas nacionais, no melhor estilo monárquico, em que o chefe de estado é um símbolo vivo do país), como acabou com o inacreditável dia de escravidão para os sindicatos (imposto sindical obrigatório: todo brasileiro era obrigado a trabalhar como escravo, sem remuneração, por um dia a cada ano) e pode ter dado o proverbial passo na caminhada de mil milhas que será acabar com uma inexplicável justiça exclusiva para cuidar da aplicação da lei fascista e com os privilégios dos empregos no setor público – inclusive a estabilidade no emprego.

A existência de uma justiça exclusiva para as relações de trabalho é, talvez, o maior dano que a versão brasileira da Carta del Lavoro nos legou. Em uma conta pedestre, a justiça do trabalho arrecada em multas e afins aproximadamente o que custa aos cofres públicos. Noves fora o fato de ser economicamente um benefício concentrado versus um custo difuso e regressivo, trata-se de uma instituição que não existe nas nações mais avançadas do mundo, exatamente aquelas que melhor tratam seus trabalhadores. Curiosamente, o paternalismo, marca registrada da justiça trabalhista, não é mais tão homogêneo: a visão segundo a qual o empregado está certo mesmo quando está flagrantemente errado, expressão direta desse paternalismo, não é mais consenso e já há mesmo casos numerosos de juízes aplicando litigâncias de má-fé contra empregados que abusam da justiça do trabalho. Já é tempo de tratar a relação trabalhista como qualquer outra relação que tem vara própria na justiça, não justiça própria. Voltando à estabilidade no emprego, no Brasil já foi lei ter estabilidade no emprego no setor privado, obtida após 10 anos trabalhando na mesma empresa. Foi apenas após o golpe de 1964, quando Roberto Campos e Otávio Bulhões fizeram o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), que isso acabou. Compensações foram criadas, todavia, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS, uma das melhores maneiras de o governo fazer caixa às custas dos salários do povo). O governo de Castello Branco, convém lembrar, deveria ter sido apenas uma transição e, portanto, se propôs a fazer as reformas modernizantes (até então, o Brasil sequer tinha um Banco Central), mas, depois, os militares da chamada “linha dura” se enamoraram do poder, deram um golpe dentro do golpe e só retornariam à caserna duas décadas depois, após terem quebrado o país. A estabilidade no setor público, todavia, permanece como um anátema da vida nacional. Aconteça o que acontecer, todo o funcionalismo é, na prática, intocável. Evidentemente, há algumas pouquíssimas funções exclusivas do estado para as quais algum tipo de estabilidade é importante, mas isso certamente não se aplica à vastíssima maioria das funções – e nem vamos citar aqui o disparate de estabilidade para membros do judiciário que são indicados pelo anacrônico Quinto Constitucional. Essa estabilidade é nociva aos funcionários, aos pagadores de impostos e ao próprio governo.

Aos funcionários, a estabilidade é um aleijão que desestimula o progresso e a eficiência na máquina governamental. Se não há possibilidade de depurar o quadro de pessoal após a contratação por concurso, não há como se criar uma meritocracia digna desse nome. A ascensão ao funcionalismo por meio de concurso público é o meio mais justo, mas está longe de ser o mais eficiente simplesmente porque não é capaz de avaliar habilidades emocionais e cognitivas necessárias para o aprimoramento profissional e o trabalho em equipe, por exemplo. Ademais, a estabilidade é um péssimo incentivo para os funcionários que buscam produzir mais: nivela por baixo. Pior é para nós, pagadores de imposto. Pagamos proventos a funcionários que podem simplesmente optar por não se dedicar ao trabalho e não há o que possamos fazer para mudar a situação: somos obrigados a pagar muito (trabalhamos cinco meses do ano para sustentar o governo) por um serviço que, salvo as exceções de praxe que mais confirmam do que desmentem a regra, é sofrível – para dizer o mínimo. Mais do que nivelar por baixo, a estabilidade contamina e empurra em favor de uma homogeneização na mediocridade. Por fim, para o governo é terrível. Ao não poder demitir e precisar sempre acrescentar funcionários, o governo perde agilidade para atender às necessidades da sociedade em diferentes recortes temporais e sob a égide de inovações tecnológicas cada vez mais ligeiras. Se o governo contratou pessoas para uma função que simplesmente não existe mais, é obrigado a ficar com elas até o final das suas vidas – e, pior, precisará contratar novas pessoas para desempenhar as funções que a tecnologia tornou obsoletas. Surreal, mas funciona exatamente assim. Em um mundo no qual especialistas apontam para um mercado de trabalho baseado em habilidades e não em funções, a estabilidade é a mais anacrônica das práticas. Se, além de acabar com a herança escravagista do dia de trabalho gratuito anual, a reforma trabalhista for um passo no sentido de igualar a justiça trabalhista à justiça comum e de acabar com a estabilidade de emprego no setor público, Michel Miguel será estudado e entendido por muitas gerações como um grande reformador, alguém que lançou as bases para um país mais próspero, justo e moderno, alguém que, como na fábula envolvendo Colombo, ousou quebrar a casca do ovo – ainda que tal imagem seja indelevelmente manchada pelo fato de ter sido gravado em conversas nada republicanas com um empresário “campeão nacional” em um encontro às escuras na garagem do palácio presidencial.

Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com

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