Michel Miguel Elias Temer Lulia,
ou simplesmente Michel Temer (o porquê da dupla homenagem a São Miguel é um
mistério), acaba de inscrever definitivamente seu nome na história do Brasil. É
bem verdade que seu futuro político anda absolutamente incerto após as
gravações de Joesley Batista, o fato é que Michel Miguel tem mais um feito
robusto em sua curta passagem pela Presidência da República: a reforma
trabalhista. Ele já havia gravado seu nome no rol de presidentes reformistas ao
aprovar a emenda constitucional que limita o crescimento de gastos públicos.
Com a reforma trabalhista (aprovada por maioria simples, ao contrário da emenda
do teto de gastos, que exigiu o mais qualificado fórum constitucional), Michel
Miguel fez mais do que reformar uma legislação da época do fascismo brasileiro.
Talvez nem mesmo ele saiba, mas além da já histórica segunda abolição do dia de
trabalho gratuito para os sindicatos, a reforma trabalhista pode ser um Ovo de
Colombo para nosso surreal sistema trabalhista: pode ser o início do fim tanto
de uma justiça exclusiva, ineficiente e cara, que não mais seria necessária em
um ambiente de racionalidade e livre do ranço fascista da legislação, quanto de
uma anacrônica, ineficiente e cara estabilidade de emprego para o
funcionalismo. Se essas duas situações adicionais realmente entrarem na pauta
reformista a partir da reforma trabalhista, então Michel Miguel poderá ser
lembrado no futuro como um divisor de águas. Senão, vejamos.
O Ovo de Colombo é uma anedota
popular cuja moral é simples: tudo é óbvio após se conhecer a solução – na
parábola, Cristóvão Colombo é questionado sobre ser mérito ou sorte ele ter
descoberto a América e, em resposta, desafia todos a fazerem um ovo parar em pé
sobre um dos polos; como ninguém consegue, em sua vez ele simplesmente bate um
dos polos contra a mesa, tornando o ovo chato naquela extremidade e, portanto,
possível de se sustentar em pé. Ao ser questionado sobre a solução, o genovês
diz que não havia proibição alguma e que o coube somente a ele ter encontrado a
resposta ao desafio e, portanto, o pioneirismo dele não foi sorte, mas
sagacidade, e agora todos poderiam copiá-lo. Ao mexer na versão brasileira
da Carta del Lavoro de Mussolini, Michel Miguel não apenas atualizou
uma legislação pensada para uma época tão distante (era um Brasil
predominantemente agrário, com cada mulher tendo quase seis filhos e a
expectativa de vida chegando a 50 anos, no qual havia estabilidade no setor
privado e uma medieval Lei da Usura controlava o setor bancário nacional, entre
outras idiossincrasias da época de nosso fascismo (fascismo mesmo, com Vargas
cunhando sua efígie nas moedas nacionais, no melhor estilo monárquico, em que o
chefe de estado é um símbolo vivo do país), como acabou com o inacreditável dia
de escravidão para os sindicatos (imposto sindical obrigatório: todo brasileiro
era obrigado a trabalhar como escravo, sem remuneração, por um dia a cada ano)
e pode ter dado o proverbial passo na caminhada de mil milhas que será acabar
com uma inexplicável justiça exclusiva para cuidar da aplicação da lei fascista
e com os privilégios dos empregos no setor público – inclusive a estabilidade
no emprego.
A existência de uma justiça
exclusiva para as relações de trabalho é, talvez, o maior dano que a versão
brasileira da Carta del Lavoro nos legou. Em uma conta pedestre, a
justiça do trabalho arrecada em multas e afins aproximadamente o que custa aos
cofres públicos. Noves fora o fato de ser economicamente um benefício
concentrado versus um custo difuso e regressivo, trata-se de uma
instituição que não existe nas nações mais avançadas do mundo, exatamente
aquelas que melhor tratam seus trabalhadores. Curiosamente, o paternalismo,
marca registrada da justiça trabalhista, não é mais tão homogêneo: a visão
segundo a qual o empregado está certo mesmo quando está flagrantemente errado,
expressão direta desse paternalismo, não é mais consenso e já há mesmo casos
numerosos de juízes aplicando litigâncias de má-fé contra empregados que abusam
da justiça do trabalho. Já é tempo de tratar a relação trabalhista como
qualquer outra relação que tem vara própria na justiça, não justiça própria.
Voltando à estabilidade no emprego, no Brasil já foi lei ter estabilidade no
emprego no setor privado, obtida após 10 anos trabalhando na mesma empresa. Foi
apenas após o golpe de 1964, quando Roberto Campos e Otávio Bulhões fizeram o
Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), que isso acabou. Compensações
foram criadas, todavia, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS,
uma das melhores maneiras de o governo fazer caixa às custas dos salários do
povo). O governo de Castello Branco, convém lembrar, deveria ter sido apenas
uma transição e, portanto, se propôs a fazer as reformas modernizantes (até
então, o Brasil sequer tinha um Banco Central), mas, depois, os militares da
chamada “linha dura” se enamoraram do poder, deram um golpe dentro do golpe e
só retornariam à caserna duas décadas depois, após terem quebrado o país. A
estabilidade no setor público, todavia, permanece como um anátema da vida
nacional. Aconteça o que acontecer, todo o funcionalismo é, na prática,
intocável. Evidentemente, há algumas pouquíssimas funções exclusivas do estado
para as quais algum tipo de estabilidade é importante, mas isso certamente não
se aplica à vastíssima maioria das funções – e nem vamos citar aqui o disparate
de estabilidade para membros do judiciário que são indicados pelo anacrônico
Quinto Constitucional. Essa estabilidade é nociva aos funcionários, aos
pagadores de impostos e ao próprio governo.
Aos funcionários, a estabilidade
é um aleijão que desestimula o progresso e a eficiência na máquina
governamental. Se não há possibilidade de depurar o quadro de pessoal após a
contratação por concurso, não há como se criar uma meritocracia digna desse
nome. A ascensão ao funcionalismo por meio de concurso público é o meio mais
justo, mas está longe de ser o mais eficiente simplesmente porque não é capaz
de avaliar habilidades emocionais e cognitivas necessárias para o aprimoramento
profissional e o trabalho em equipe, por exemplo. Ademais, a estabilidade é um
péssimo incentivo para os funcionários que buscam produzir mais: nivela por
baixo. Pior é para nós, pagadores de imposto. Pagamos proventos a funcionários
que podem simplesmente optar por não se dedicar ao trabalho e não há o que
possamos fazer para mudar a situação: somos obrigados a pagar muito
(trabalhamos cinco meses do ano para sustentar o governo) por um serviço que,
salvo as exceções de praxe que mais confirmam do que desmentem a regra, é
sofrível – para dizer o mínimo. Mais do que nivelar por baixo, a estabilidade
contamina e empurra em favor de uma homogeneização na mediocridade. Por fim,
para o governo é terrível. Ao não poder demitir e precisar sempre acrescentar
funcionários, o governo perde agilidade para atender às necessidades da
sociedade em diferentes recortes temporais e sob a égide de inovações
tecnológicas cada vez mais ligeiras. Se o governo contratou pessoas para uma
função que simplesmente não existe mais, é obrigado a ficar com elas até o
final das suas vidas – e, pior, precisará contratar novas pessoas para
desempenhar as funções que a tecnologia tornou obsoletas. Surreal, mas funciona
exatamente assim. Em um mundo no qual especialistas apontam para um mercado de
trabalho baseado em habilidades e não em funções, a estabilidade é a mais
anacrônica das práticas. Se, além de acabar com a herança escravagista do dia
de trabalho gratuito anual, a reforma trabalhista for um passo no sentido de
igualar a justiça trabalhista à justiça comum e de acabar com a estabilidade de
emprego no setor público, Michel Miguel será estudado e entendido por muitas
gerações como um grande reformador, alguém que lançou as bases para um país
mais próspero, justo e moderno, alguém que, como na fábula envolvendo Colombo,
ousou quebrar a casca do ovo – ainda que tal imagem seja indelevelmente
manchada pelo fato de ter sido gravado em conversas nada republicanas com um
empresário “campeão nacional” em um encontro às escuras na garagem do palácio
presidencial.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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