“Coragem irlandesa” é a forma
pejorativa como os americanos chamam a ingestão de bebidas alcoólicas fortes.
Eivada de estereótipos formados quando da grande imigração irlandesa para o
país no Século XIX, a ideia de que os irlandeses são um povo dado a brigas,
bebedeiras e filhos sem parar (não necessariamente nessa ordem) permanece
fortemente enraizada no imaginário popular dos Estados Unidos até os tempos
hodiernos. Muito disso tem a ver com a ancestral desconfiança dos católicos que
têm os herdeiros dos puritanos que emigraram no Mayflower para fugir de
perseguições religiosas nas ilhas britânicas. O tempo passou e os católicos
irlandeses passaram a ser vistos como simplórios e atrasados em relação a
costumes, mas esse estereótipo pode estar com os dias contados. Nos últimos
dois anos, os eleitores da Irlanda tiveram uma coragem legítima e sóbria de
avançar em uma das pautas mais delicadas em direitos humanos: diversidade
étnica e sexual. Para um país que tem no catolicismo uma fonte de identidade
(os católicos respondem por quase 80% dos pouco mais de cinco milhões de
irlandeses), eleger um premier gay e filho de imigrantes indianos (os brancos
respondem por mais de 80% da população) é realmente um feito. Mostra tanto como
o catolicismo pode ser compatível com a miríade de etnias e orientações sexuais
quanto como um país pode modernizar suas instituições sem perder sua
identidade. Por isso, vale conhecer mais sobre Leo Varadakar, o filho gay de
indianos que é Taoiseach (premier) da branca e católica República da Irlanda.
Às duas novidades que Leo
Varadakar (ser gay e não ser branco) traz, pode-se ainda acrescentar uma
terceira: será o mais novo premier da Irlanda (tem apenas 38 anos). Com tudo
isso, Varadakar é um reforço para o lado liberal no que parece ser uma guinada
internacional rumo a novidades que seriam absolutamente improváveis há apenas
um ano. A primeira – e, levando-se tudo o mais em conta, ainda a mais
surpreendente – foi a saída do Reino Unido da União Europeia (relembrando: há
pouco mais de um ano, David Cameron colocou a existência de um projeto de
estado extremamente complexo e que consumiu esforços de gerações para ser
decido por uma só geração em uma só votação com uma só pergunta, deu-se o
previsível desastre e Cameron entrou para a história como o pateta que é), mas
há outras. A eleição de Donald Trump foi outro fato impensável há dois anos
(embora o evento fosse mais adequadamente descrito se a ênfase fosse na
arrogância dos democratas, que insistiram uma candidata eleitoralmente tão
fraca que, oito anos antes, perdera a indicação do partido para um desconhecido
jovem senador chamado Barack Obama), assim como a eleição de Emmanuel Macron há
poucos meses pode ser mais creditada à rejeição a Marine Le Pen do que a
qualquer outro fator isolado. Aliás, se quisermos pensar em exemplos mais
próximos, basta pensar em Rio de Janeiro e São Paulo: ninguém, em sã
consciência, apostaria todas as fichas que o rejeitadíssimo Marcello Crivella e
o desconhecido João Doria Jr estariam nas respectivas prefeituras – e, no mesmo
diapasão, as eleições de 2018 no Brasil também dar-se-ão sob a égide da
completa imprevisibilidade de resultados. Todavia, é difícil comparar qualquer
um desses casos com o caso de Leo Varadakar: filho de imigrantes indianos e gay
como chefe de governo na República da Irlanda é algo completamente inesperado.
E, no entanto, aí está Varadakar. Vale conhecer um pouco mais sobre ele –
provavelmente, o maior símbolo de uma época em que aspectos não relevantes para
o exercício da função pública estão se tornando exatamente isso, ao menos no
Ocidente: aspectos não relevantes para o exercício da função pública.
Há um século (1916), a Irlanda
era parte do Reino Unido e começou um levante para ficar independente, o
Levante da Páscoa – que seria massacrado pelos britânicos com crueldade
exemplar. Com a Grande Guerra em um impasse instransponível (os americanos,
fator de desempate contra os alemães, ainda não haviam sido atraído para o
embate pelos próprios alemães, e os bolcheviques, que tirariam os russos da
guerra, ainda eram apenas mais um grupo minoritário na miríade de
oposicionistas ao tzar), ninguém imaginaria que, dois meses após a proverbial
undécima hora do undécimo dia do undécimo mês, uma nova guerra eclodiria na
Europa: a Guerra de Independência da Irlanda. Claro que os poucos mais de dois
mil mortos pareceriam um grão de areia diante dos estimados vinte milhões que o
conflito iniciado em 1914 gerou, mas ainda assim foi um choque – e, para muitos
historiadores, o início do pôr do Sol no Império Britânico. As feridas foram
tão grandes que apenas há seis anos a Rainha Elizabeth II efetuaria a primeira
visita de um monarca britânico ao país exatamente um século após seu avô
(George V) ter estado lá. As clivagens entre católicos e anglicanos são
visíveis até hoje na paisagem de Belfast, capital do Ulster (Irlanda do Norte,
parte do Reino Unido). O Eire (Irlanda do Sul ou simplesmente República da
Irlanda, independente), que tem o catolicismo conservador como sinônimo de sua
própria identidade nacional, não seria a aposta óbvia para um país pioneiro em
eleger um premier jovem, gay e filho de imigrantes. E Leo Varadakar vem
chamando a atenção da Europa não por ter a pele escura ou ser gay, mas por suas
atuações políticas, notadamente no que diz respeito ao sempre controverso
Brexit.
O Taoiseach tem em mente que a
nova fronteira entre Eire e Ulster (Reino Unido) será uma fonte de problemas
com o Brexit – e está capitalizando em cima disso para pressionar por uma
unificação irlandesa. Falando em termos práticos: se o movimento de Varadakar
der certo, o Reino Unido implode. Senão, vejamos. Hoje não há fronteira entre
ambas as Irlandas: de carro ou de trem, simplesmente se passa de um país ao
outro sem postos de controle; afinal, ainda que o Reino Unido nunca tenha
aderido ao Acordo Schengen, a livre circulação de pessoas é uma das quatro
liberdades da União Europeia e, sendo ambos (Reino Unido e Irlanda) membros da
União Europeia, simplesmente não fazia sentido ter fronteiras internas. Tudo
muda com o Brexit, todavia. E Varadakar está instrumentalizando isso com
maestria. Ele simplesmente disse que não traçará fronteiras com o Reino Unido.
Nas palavras dele, se o Reino Unido quer sair, então o Reino Unido que defina
como quer as fronteiras com a Europa. É um golpe de mestre porque coloca uma
pressão enorme sobre os norte-irlandeses. A ideia de uma fronteira seca fechada
na Irlanda acabaria com décadas de cooperação (exemplo lúdico: o unificado Team
Ireland compete na Copa do Mundo de Rugby) e isolaria o Ulster – obviamente,
haveria também uma fronteira no Mar da Irlanda. Quando Varadakar fala que não quer
uma fronteira entre as duas Irlandas, joga o problema para o frágil governo de
Theresa May. Mais do que isso: Varadakar ora deixa escapar acha que um segundo
referendo pode reverter o Brexit e ora fala que vai lutar que que haja uma
união alfandegária que garanta o livre comércio com o Reino Unido. Em suma, ele
vem lançando balões de ensaio com vistas a uma eventual reunificação irlandesa
sob seus auspícios, mantendo-se sob os holofotes e levando a questão irlandesa
consigo. Que um não branco, filho de imigrantes indianos, gay e jovem possa ser
o artífice da reunificação independente da branca e católica Irlanda é algo que
nem os mais criativos escritores do Século XX poderiam imaginar. O termo
“coragem irlandesa” pode estar prestes a ganhar um novo significado.
Pedro Nascimento Araujo é
econmista
nascimentoaraujo@hotmail.com
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