Faroleiro é uma gíria comum da
primeira metade do século passado para se referir a um indivíduo que conta
vantagens, mente, exagera, distorce fatos para obter louros. Um gabola, como
também se dizia na época. Hoje, conhecemos pessoas assim como um fanfarrão –
ou, para usar um termo ainda mais antigo, um parlapatão. Em suma, alguém que
pode até ser bom no que faz, mas que se enrola por falar demais, por contar
farol demais, como se dizia à época. Um faroleiro é, em última instância, um
sujeito inseguro, que precisa da aprovação dos outros para seguir em frente. É
um tipo bem comum, que pode ser encontrado em qualquer área de atuação.
Inclusive na política. E, uma vez lá, faroleiros também podem ascender ao topo.
No caso em tela, há um Olimpo bem definido: ser presidente ou premier. Para um
americano, o topo é ser inquilino da Casa Branca, residência do homem mais
poderoso do mundo. Pois bem. É lá que atualmente reside Donald Trump, um
faroleiro que parece se enrolar cada vez mais na sua sanha de contar vantagens
e buscar aprovação popular. Ocorre que a Casa Branca também é o local de
comando do país mais poderoso, admirado e respeitado do mundo: os Estados
Unidos da América, um país sem nome (convenhamos: Estados Unidos é tão nome
quanto Reino, República, Confederação etc. e América é tão nome quanto Oceania,
Bálcãs, Leste, Sul etc.) e que foi criado para ser a cidade na colina cujo
farol serviria de guia para o mundo rumo à liberdade. Quando um faroleiro passa
a comandar o farol do mundo, há um risco considerável de ideal e prática
entrarem em choque, como vimos na decisão de Trump de cumprir sua promessa
eleitoral de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. Como o ideal é mais
forte do que o homem (por definição), a decisão de Trump vai enfraquecê-lo, por
mais paradoxal que possa parecer: Donald Trump está ficando isolado porque está
cumprindo suas promessas.
A ideia de cidade na colina tem
inspiração bíblica, como aliás tinha quase tudo o que os Founding Fathers dos
Estados Unidos da América faziam, e remete ao Sermão da Montanha, quando Jesus
(Mateus 5:14) diz aos seus seguidores que eles são “a luz do mundo” e que “não
se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte” e, portanto, que (Mateus
5:18) “resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras” – para os criadores do país, os Estados Unidos seriam exatamente a obra
viva, exposta para o mundo ver, de aplicação da ética cristãos e dos preceitos
iluministas. O novo país precisaria ser bem-sucedido e outros povos seguiriam
seu exemplo. Não é errado dizer que os Founding Fathers lograram êxito: até
hoje, é dos americanos que o mundo espera a liderança rumo a um futuro de paz,
democracia, prosperidade. E responsabilidade ambiental. Desde quando os
comunistas diziam que preocupação com ecologia era apenas um “luxo burguês” e
poluíam e destruíam sem dó (os exemplos soviético e chinês falam por si), os
americanos faziam a conscientização ambiental e aprovavam leis cada vez mais
rígidas. Os governos, como sempre, têm suas próprias velocidades – e, como sói
ser, estão sempre atrás dos avanços das sociedades. Os Estados Unidos não
aderiram ao Protocolo de Kyoto, mas, ainda assim, o país lidera o mundo nas
tecnologias de redução de emissão de gases causadores do efeito-estufa: de 1990
a 2014, a população americana cresceu 28%, o PIB americano cresceu três vezes e
o país aumentou suas emissões totais em apenas 7%. Isso porque as empresas
americanas seguem legislações (municipais, estaduais e federais) cada vez mais
restritivas, independentemente de o país participar de tratados internacionais
sobre o assunto. Os cidadãos exigem, as empresas agem, os políticos reagem: o
sistema funciona. Assim, a participação americana em Paris seria mais pelo
simbolismo do farol na montanha – do mesmo modo que as metas de Kyoto foram cumpridas
sem que o país fosse parte, as metas de Paris serão cumpridas com folgas, mesmo
sem Washington participando dele. O dano não é para o mundo, mas para o farol
na colina.
Donald Trump está cumprindo suas
promessas e faz um tremendo farol sobre isso, embora escorregue na gabolice por
vezes – a mais emblemática foi quando disse que foi eleito para defender os
cidadãos de Pittsburg e não de Paris, apenas para ter de ouvir do prefeito de
Pittsburg que ele não apenas perdeu de lavada na cidade, como também Pittsburg
cumprirá suas metas independentemente da decisão dele. Mas o fato é que ele
cumpre as promessas e se orgulha disso. Daí, a primeira conclusão é óbvia: não
há como se criticar um político pelo raro fato de ele cumprir suas promessas.
Simplesmente, não seria correto; afinal, ele foi eleito com aquela plataforma.
A segunda conclusão, entretanto, é que às vezes uma promessa pode ser
simplesmente uma péssima ideia. É o caso do Acordo de Paris: a plataforma de
Trump nesse assunto é simplesmente errada, tão errada que as principais
empresas americanas já anunciaram que vão ignorar o fato de os Estados Unidos
terem se juntado a Síria e Nicarágua como os únicos países de fora dessa
unanimidade mundial. Vale lembrar: a Síria não participa porque as negociações
ocorreram com o governo do país em plena guerra civil e a Nicarágua não
participa para protestar contra o que considera metas e punições fracas demais.
Empresas americanas querem liderar o mundo em uma economia de baixo carbono – e
sabem que o mundo está caminhando para isso inexoravelmente, concorde Trump com
isso ou não. Não é de se estranhar, portanto, que vão ignorar a decisão
presidencial e continuar a se preparar para o mundo vindouro, desenvolvendo
produtos para os dias pós-carvão e pós-petróleo. É nas faculdades americanas
que se criam as novas técnicas (com financiamento das empresas americanas) que
permitirão ao mundo viver sem carvão e sem petróleo como combustíveis. Empresas
e universidades não perderão competitividade porque Donald Trump cumpriu sua
promessa. O farol da cidade vai continuar brilhando no topo da colina, mas
Trump fica progressivamente isolado internacionalmente e domesticamente –
porque está cumprindo uma promessa de campanha. Para um faroleiro, esse é o
pior dos mundos: ser criticado, não admirado. E ainda há outras promessas que
ele precisa cumprir, como murar a fronteira terrestre com o mestiço e pobre
México (e não há como não se notar que nada foi dito sobre a fronteira com o
branco e rico Canadá), renegociar o NAFTA, fazer os demais países (OTAN
principalmente, mas também Japão, Coreia do Sul e Monarquias do Golfo) pagarem
pelo sustento das tropas americanas no exterior etc. Uma lista de potenciais
conflitos comerciais também aguarda sua vez, como os déficits com China e Alemanha,
por exemplo – sem falar na OMC. Na política externa, ainda há todas as questões
de segurança do mundo, da Coreia do Norte ao Irã, passando pela questão
israelense, pela carnificina na Síria, pela anexação ilegal da Crimeia etc.
etc. etc. E, claro, há as questões internas, desde a acusação de obstrução de
justiça (fraca, ao menos por enquanto) à reforma do sistema de saúde e o corte
de impostos corporativos.
É muita coisa muito séria e ao
mesmo tempo para se resolver de maneira simplória e ficar contando vantagem.
Trump é um furacão, mas parece obcecado demais em cumprir suas promessas e não
percebe que terá de negociar e ceder. Ele é presidente de um país democrático,
não de uma empresa: a palavra dele não é ordem sempre, e mesmo quando é (como no
caso de acordos internacionais), seria mais sábio agir sempre em consonância
com o Congresso e com a vontade dos eleitores. Assim, sempre que ficar claro
que a maioria dos americanos prefere que ele não cumpra uma promessa, ele fica
livre de cumpri-la, sem constrangimentos. Os Estados Unidos seguirão sendo a
cidade no alto do morro que serve de farol para o mundo no que diz respeito a
ecologia, com Trump ou sem Trump – e as metas do Acordo de Paris serão
cumpridas, com as empresas americanas liderando o mundo que surgirá do tratado,
apesar de Trump ter tirado o país de lá. Donald Trump ainda não percebeu que
engrandecer os Estados Unidos é ser fiel aos princípios que formam o país: os
Estados Unidos da América são o resultado de ideais encontrando um território
para vicejar. Um faroleiro não sabe tirar vantagem disso e se limita a cumprir
suas promessas mecanicamente, sem sequer verificar se o povo realmente deseja
que ele as cumpra, apenas para fazer farol – e faroleiros simplesmente não são
capazes de agradar muita gente por muito tempo.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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