Nesta semana, o mundo assistiu a
um espetáculo de apoteótica bajulação a Xi Jinping durante o Congresso do
Partido Comunista da China. Diante de mais de dois mil delegados, que faziam o
papel de figurantes, ele formalizou sua confirmação como o secretário-geral do
PCC – na prática, presidente da China. O Congresso do PCC é um show de
coreografia: todos vestidos de maneira semelhante, aplausos demorados,
decoração de fazer inveja a Hitler e Stalin. E ainda é o local de uma perversa
ironia, uma vez que é ali que ocorre a única eleição da China: Xi Jinping foi
eleito para mais um lustro à frente do Politburo chinês – por unanimidade, como
sói ser a uma ditadura, um resultado só igualado por Saddam Hussein. Enfim, a
grandiosidade do evento é incontestável: é milimetricamente calculada e
impressiona; na verdade, impressiona até demais. A intenção deliberada de
aparentar poder incomoda. A China quer demais mostrar-se potência mundial e Xi
Jinping quer demais mostrar-se líder inconteste da China. E esse é o problema:
líderes mundiais são líderes mundiais porque são líderes mundiais. Não precisam
vociferar isso aos quatro ventos – literalmente, todo o mundo sabe quem são e
ponto final. Seria apenas um algo ridículo sintoma de insegurança juvenil essa
obsessão dual da China e de Xi Jinping em ter suas lideranças reconhecidas por
seus supostos liderados, mas também pode ser algo que, no futuro, entendamos
como tendo sido um sintoma claro de uma decadência em curso de ambos que passou
despercebido pelos mais renomados analistas políticos do mundo. De fato, o
Congresso de 2017 do Partido Comunista da China pode ter marcado o início do
fim do controle totalitário do PCC sobre a China. Como se diria no Brasil:
quanto mais fome a tribo passa, maior o cocar do cacique. E o cocar que Xi
Jinping exibiu no Congresso do PCC seria digno de receber nota máxima no
quesito Alegorias & Adereços do Carnaval do Rio de Janeiro.
A exibição de unidade e de
projeção de poder que a China orquestrou disfarça, mas não esconde, as
fragilidades intrínsecas do país e da ditadura que comanda o destino de uma
população bilionária com mão de ferro há quase seis décadas. A situação da
China é tão frágil estruturalmente que o mais espantoso é que parcela da intelligentsia
ocidental compra com entusiasmo o discurso oficial chinês de inquebrantável
solidez. O discurso de projeção de poder, simbolizado pela Nova Rota da Seda
(mal comparando: uma espécie de versão chinesa do programa apodado Guerra nas
Estrelas de Ronald Reagan – um programa tão colossal que é simplesmente
inviável mesmo hoje, três décadas de avanços tecnológicos depois), calou fundo
nos medos primais das democracias ocidentais: uma China cada vez mais poderosa
imporia seu modelo de ditadura planificada ao mundo diante de um Ocidente cada
vez mais decadente. O vistoso cocar de Xi Jinping funciona.
Os problemas e desafios chineses
no campo econômico são gigantescos. Há uma inegável necessidade de se fazer uma
um esvaziamento das três bolhas que mantém a economia chinesa funcionando,
antes que um estouro leve a China a repetir a saga japonesa desde os anos 1990:
imóveis, ações e créditos. Uma retroalimenta a outra, diga-se. A origem da
bolha chinesa é uma alavancagem sem precedentes. Das vésperas do 15-Nov-2007,
quando a Grande Recessão foi oficialmente inaugurada pela falência do Lehman
Brothers exatamente pelo estouro de uma bolha imobiliária (a chamada Crise das
Subprimes), o crédito chinês dobrou. Sim, o dobro de crédito em menos de 10
anos. Mais do que isso: a dívida interna da China cresceu em 25 trilhões de
dólares desde 2007. Se 25 trilhões de dólares a mais em dívida pública é um
número assustador per se (a título de comparação: o PIB dos Estados Unidos é de
quase 20 trilhões de dólares), mais assustador é pensar em termos relativos: o
PIB da China é menos da metade desse valor (pouco menos de 12 trilhões de
dólares). Xi Jinping sabe que terá de fazer um ajuste seriíssimo na relação
dívida/PIB da economia chinesa antes que o mercado o faça e literalmente quebre
o país. Ele também sabe que a beleza de seu cocar impressiona tanto aos seus
comandados quanto aos caciques das outras tribos e que o medo será crucial para
que consiga impor medidas impopulares. Esse é um problema inerente a ditaduras:
elas simplesmente não possuem legitimidade para pedir sacrifícios ao povo.
Em ditadura, por definição quem
comanda nada mais é do que um usurpador da soberania popular, por mais popular
que possa ser. Tipicamente, ditaduras sustentam-se com base em um frágil
arranjo de cinismo: enquanto a economia cresce, muitas pessoas fazem vista
grossa; contudo, quando a economia entra em crise, os mesmos apoiadores
incondicionais de antanho convertem-se em críticos de primeira hora – eis o
cinismo levado ao paroxismo. Foi assim aqui (por exemplo, muitos dos
autoproclamados campeões da democracia apoiaram o Regime Militar durante seu
início, como OAB e ABI), é assim em qualquer lugar: enquanto a ditadura dá à
sociedade dinheiro em troca de silêncio, a legitimidade não é contestada;
quando o dinheiro acaba, acaba o frágil arranjo de cinismo e a ditadura ou
endurece para valer (a China, durante o reinado das péssimas ideias econômicas
de Mao Zedong, não fez outra coisa) ou começa a acabar (como no caso de
Pinochet, no Chile). Xi Jinping se mostra forte, portanto, porque tem medo das
reações quando, na melhor das hipóteses, tiver de levar a China a uma recessão
para evitar uma depressão quando alguma das bolhas estourar. Pode ser a da
dívida interna, mas pode ser também a imobiliária: segundo a Reuters, há algo
em torno de 15 milhões de propriedades em excesso construídas na China.
Provisão para o futuro? Decididamente não, em um país que anda envelhecendo
rapidamente e hoje está mais preocupado com a perda de população do que com a
superpopulação. Como uma bolha alimenta a outra, há um caso muito próximo
àquele que afetou os Estados Unidos há quase uma década: toda essa quantidade
colossal de imóveis está registrada nos bancos chineses como ativos com valor
de mercado irreal; afinal, se os bancos precisarem transformar esses imóveis excedentes
em dinheiro, o preço real será muito inferior àquele que consta no livro-razão
correspondente. Em suma, uma senhora bolha imobiliária que pode estourar a
qualquer momento e, com ela, levar o setor bancário de roldão e, assim, forçar
a um default da dívida interna quando Beijing tentar se endividar ainda mais
para socorrer o setor bancário. E um país com bancos quebrados, ativos em queda
livre e sem capacidade de endividamento não tem como financiar sua produção com
créditos estatais que são cobertos por superávits internacionais gigantescos.
Uma crise alimenta a outra. A China, que tanto quis seguir o modelo do Japão,
está perigosamente perto demais de seguir o Japão rumo à estagnação constante,
com o agravante de que ainda não é um país desenvolvido – e de que sua economia
é mais soviética do que japonesa.
As bolhas que a China enfrenta
não constituem ineditismo, nem na China e nem em outros países. Por exemplo,
aqui no Brasil, estamos saindo da maior recessão de nossa história, causada por
uma bolha de crédito e de dívida pública decorrente da infame Nova Matriz
Macroeconômica de Dilma Rousseff. Nos Estados Unidos, uma bolha imobiliária
está na raiz da Grande Recessão, que nada mais foi do que um brutal ajuste que
o mercado impôs a ativos supervalorizados, exatamente como na China – a favor
dos americanos, diga-se que eram imóveis supervalorizados, não imóveis
excedentes; no caso dos chineses, há simplesmente excesso de oferta de imóveis
no mercado, o que deve tornar o ajuste ainda mais pesado. Na China, a
combinação da bolha imobiliária com o excessivo endividamento interno e o
esgotamento do modelo de crescimento baseado na superexploração de pessoas e de
recursos naturais, financiado por uma bolha de crédito, forma uma incômoda
necessidade de ação imediata para impedir que a sensação de desastre iminente
deixe de ser apenas uma sensação. O risco para a China é maior porque sua
economia ainda mantém fortes traços soviéticos: altamente estatizada e com
controle de produção delegado a caciques locais do PCC, a eficiência é baixa
demais. Evidentemente, há ilhas de excelência no país, notavelmente nas áreas
mais dinâmicas e integradas às cadeias globais de valor, mas a existência de um
modelo de metas de produção nos moldes soviéticos é um convite à ineficiência e
à falsificação de dados, exatamente como acontecia na extinta União Soviética.
No caso de um estouro de bolha, o grande temor é que a economia chinesa passe
por um processo de ajuste tão forte que a lance não em uma estagnação nos
moldes japoneses, mas em uma recessão forte o suficiente para apear o PCC do
poder. É contra esse pano de fundo potencialmente turbulento que Xi Jinping
exibe seu vistoso cocar, evidenciado pela inclusão de seu “pensamento” nas
diretrizes do país e pela ausência de indicação de um sucessor no Politburo, o
mais claro indicativo de concentração de poder visto no país desde 1949. Para
manter o seu controle sobre o PCC e o controle do PCC sobre a China, Xi Jinping
vai tentar desinflar as bolhas e, com isso, fugir da inevitável débacle
decorrente do estouro das bolhas. Caso consiga evitar o desastre, ainda terá de
enfrentar os sérios descontentamentos decorrentes da deterioração econômica,
que certamente levarão a questionamentos sérios acerca da ditadura do PCC. Por
não terem a legitimidade do mandato popular para enfrentar crises, Xi Jinping e
o Partido Comunista Chinês precisarão, mais do que nunca, de unidade e de
concentração de poder para sobreviver. Daí o tamanho do cocar que o cacique
exibiu.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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