Por Pedro Nascimento Araujo
No período em que se relembra os 30 anos do início da breve guerra entre Argentina e Reino Unido sobre a soberania das Ilhas Falkland, iniciada com a invasão platina ao território britânico em 02 de abril de 1982, a diplomacia sulamericana vê-se tomada por uma agenda estridente da presidente argentina, que envergonha a todos os seus vizinhos, notadamente o Brasil. Explico.
A invasão argentina às Ilhas Falklands (nunca é demais relembrar: a Argentina foi a agressora que invadiu as ilhas unilateralmente, o que o Direito Internacional considera violação grave e que enseja resposta armada legítima por parte do agredido) foi condenada pela ONU através da resolução 502 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que era taxativa sobre a retirada das forças argentinas das Ilhas Falkland. A decisão de invadir as Ilhas Falkland foi uma estupidez estratégica de Galtieri, líder da impopular Junta Militar (à decadência econômica argentina, fato inédito no mundo de um país que saiu do primeiro mundo para entrar no terceiro, catapultada por Perón, estava entrando em um período particularmente dramático de hiper-inflação, somava-se a brutal repressão política) que comandava a ditadura do país. De fato, há historiadores que sustentam que, caso as negociações continuassem, o Reino Unido, na época mais difícil da retomada thatcheriana, poderia repassar as Falklands à administração argentina, ainda que com salvaguardas semelhantes àquelas da devolução de Hong Kong à China. Galtieri, todavia, apostando em um imobilismo britânico devido às más situações nos campos político e econômico do arquipélago, preferiu a ação espetaculosa e invadiu as Ilhas Falkland.
Com um efetivo militar absolutamente sucateado e inferior, jovens argentinos, sem treinamento, equipamento e suprimentos adequados, foram presas fáceis dos britânicos e das severas condições climáticas e 942 morreram. Os britânicos, diga-se, trataram os prisioneiros de guerra argentinos de acordo com a lei internacional e com dignidade - segundo relatos de alguns soldados portenhos, melhor que seus próprios comandantes, que os humilhavam e torturavam. Findos os combates, os combatentes argentinos ainda sofreriam uma humilhação maior: no retorno ao lar, foram tratados, segundo relatos dos próprios, não como bravos combatentes que, malgrado as péssimas condições, mantiveram a honra, mas como traidores e covardes. O governo e boa parcela da população argentina os hostilizava e discriminava, como se tivessem sido eles os responsáveis pela decisão estúpida de invadir com soldados maltrapilhos uma localidade defendida por uma das melhores e mais experientes forças armadas do mundo. A vida desses jovens não poderia ser pior: humilhados em combate e na paz. Argentina e Reino Unido romperam relações diplomáticas até 1990. As minas terrestres plantadas pelos argentinos nos poucos dias em que estiveram nas Ilhas Falkland continuam lá e a Argentina continua defendendo seu direito à soberania pelas Ilhas Falkland em fóruns internacionais, com o apoio do Brasil e dos vizinhos. Até aí, tudo bem: reclamar soberania sobre territórios é um pleito legítimo de países.
O problema reside no fato de que, ao defender sua soberania sobre as Ilhas Falkland, o governo argentino ignora o desejo manifesto dos pouco mais de 3 mil habitantes locais, os kelpers, de que as Ilhas Falkland permaneçam como Estado independente associado ao Reino Unido. E isso muda tudo. De fato, a legitimidade do pleito argentino simplesmente derrete diante de um princípio básico do Direito Internacional: a autodeterminação dos povos. E os kelpers querem continuar sendo súditos de Elizabeth II: seu direito à autodeterminação está expresso na atual constituição das Ilhas Falkland, aprovada em 2009. E eis porquê defender o pleito argentino nos envergonha internacionalmente: em todos os momentos, o Brasil sustenta suas posições internacionais com base nos melhores princípios de Direito Internacional, os que compõem o chamado ius cogens, que tem como um dos pilares o direito à autodeterminação dos povos. Ignorar isso é defender colonialismo. Senão, vejamos.
Apoiar a Argentina em seu pleito sobre soberania nas Ilhas Falkland independentemente do que desejam os kelper equivale a defender a partilha da África do Congresso de Berlim de 1885, de onde vem a famosa foto de líderes europeus debruçados sobre um mapa do continente, calmamente escolhendo seus quinhões, alheios às vontades dos povos. Apoiar a Argentina em seu pleito sobre soberania nas Ilhas Falkland independentemente do que desejam os kelper equivale a apoiar a criação dos países do Oriente Médio na Conferência do Cairo de 1921, onde interesses franco-britânicos e de líderes locais decidiram quais seriam as fronteiras, juntando inimigos milenares nos mesmos países. Apoiar a Argentina em seu pleito sobre soberania nas Ilhas Falkland independentemente do que desejam os kelper equivale a apoiar o Pacto de Moscou (Ribbentropp-Molotov), no qual Hitler e Stálin decidem onde ficarão as fronteiras de seus países dentro do território da Polônia. Apoiar a Argentina em seu pleito sobre soberania nas Ilhas Falkland independentemente do que desejam os kelper equivale a apoiar a anexação do Tibete pela China em 1950. Enfim, apoiar a Argentina em seu pleito sobre soberania nas Ilhas Falkland independentemente do que desejam os kelper equivale a ir contra princípios que o Brasil e seus vizinhos - Argentina inclusive! - defendem em fóruns mundiais: não-intervenção e autodeterminação dos povos. O Brasil, então, faz inúteis malabarismos diplomáticos para tentar manter o apoio ao seu ex-rival e atual [e, esperamos, para sempre] aliado. Não precisamos ser incoerentes para manter a amizade argentina. Melhor faremos se formos corretos e coerentes: respeitemos a vontade dos kelpers.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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