Em homenagem ao centenário do eterno
tricolor Nelson Rodrigues, tomo a liberdade e, reproduzo aqui a épica crônica
sobre o meu Flamengo.
Crônica de Nelson Rodrigues
Crônica Esportiva
(*) Nelson Rodrigues
Corria o ano de 1911. Vejam vocês: - 1911! O bigode do
kaiser estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava
paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e
intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: - é impossível não ter uma funda
nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de
catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil.
Convenhamos: - grande época! grande época! Pois bem. Foi
em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos, das valsas em primeira
audição e do busto unilateral de Mata-Hari, que nasceu o Flamengo. Em tempo
retifico: - nasceu a seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas
já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradição náutica. Em 1911,
aconteceu uma briga no Fluminense. Discute daqui, dali, e é possível que tenha
havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: - cindiu-se o Fluminense e a
dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no Flamengo de
regatas, o Flamengo de futebol.
Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: - a torcida
tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta coisa sublime:
- quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que
empobrece liricamente o futebol atual: - a inexistência do histerismo feminino.
Difícil, muito difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os
homens torciam como espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A
bola tinha uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a
pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax
e baços adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a
ferocidade dos velhos tempos. Mas raciocinemos: - em 1911, ninguém bebia um
copo d’água sem paixão.
Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de
1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige.
Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais.
Essa fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: - não se
trata de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e
torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro
clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não
afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-negro, não. Se entra um gol
adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele
sangra como um césar apunhalado.
Também é de 1911, da mentalidade anterior à Primeira
Grande Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto
quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já
tem acontecido várias vezes o seguinte: - quando o time não dá nada, a camisa é
içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas
tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em
que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada.
Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a
camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.”
Demerval V. Soares é Bacharel em Administração e Pós-
Graduado em Gestão
Empresarial.
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