Novo
ciclo no Cone Sul
A América do Sul é uma região
muito mais homogênea do que aparenta. À primeira vista, poderia ser dividida
entre América Espanhola e América Portuguesa, mas como aquela virou vários
países e esta apenas um (ou dois, se levarmos em conta que o Uruguay ficou
independente de Portugal com o Brasil em 1822 e depois ficou independente do
Brasil em 1828), a conta não seria justa. A semelhança não é tão direta. Em que
pesem diferenças de idioma e de cultura herdados da Península Ibérica, sem
contar a formação monárquica brasileira em contraposição ao republicanismo de
primeira hora dos demais, o fato é que as semelhanças grassam: o subcontinente
se tornou independente quase na mesma época, os países vivenciaram ditaduras
(positivistas, sindicalistas, militares, populistas etc.) quase na mesma época,
sofreram crises econômicas conjuntas e, de algum modo, parecem caminhar juntos.
Foi assim nos anos 2000, quando governos populistas de esquerda comandaram a
América do Sul. E tudo indica parecer que será assim na década corrente e na
próxima, quando os mesmos governos populistas de esquerda estão paulatinamente
sumindo da região, para dar lugar a governos austeros de centro-direita. O caso
emblemático foi dado pela ascensão de Mauricio Macri na Argentina, mas há
outros exemplos: Nicolás Maduro e Dilma Rousseff, os respectivos arremedos sem
um grama de carisma de Hugo Chávez e de Lula da Silva agonizam em praça
pública, estão correndo riscos nada desprezíveis de não terminarem os mandatos
– ele, por um provável recall eleitoral e ela por cassação de
mandato. E, agora, Evo Morales perdeu no voto popular a chance de perpetuar-se
no poder.
Evo Morales é um presidente
bastante popular. Em seu governo, a economia da Bolívia, tradicionalmente um
dos países mais atrasados da América do Sul, cresceu bastante: uma média de 5%
na última dezena de anos – quando se pensa que o Brasil encolheu 4% no ano
passado, tem-se claramente uma razão para a diferença de popularidade entre
Morales e Rousseff. Todavia, a popularidade de Morales não foi suficiente para
que ele ganhasse no voto o direito de emendar a constituição boliviana e
disputar um quarto mandato. Eis o paradoxo da democracia: os bolivianos aprovam
o governo de Evo Morales, mas preferem que haja alternância de poder. Se
Morales tivesse realizado o referendo do quarto mandato há apenas um ano, entretanto,
muito possivelmente o resultado seria outro. A mudança na América do Sul
começou quando o chamado Superciclo das Commodities começou a se esvair, no
começo desta década. As quedas foram pesadíssimas – mais de 50% em muitos
casos. Antes, com as commodities em alta basicamente por conta da demanda
chinesa, os países da região acumularam reservas internacionais (no caso
boliviano, Morales saiu de menos de um bilhão de dólares para mais de 15
bilhões em apenas uma década) e viram suas moedas se valorizarem perante o
dólar; na prática, isso tornou suas populações comparativamente mais ricas do
que antes. Em suma, tudo parecia dar certo. Com dinheiro no bolso, o populismo
de esquerda foi a escolha do continente. E tudo corria bem para todos, naquele
típico movimento sul-americano que todos fazem ao mesmo tempo e sem combinar.
E, então, tudo mudou.
2014 foi o ano do último suspiro
da recente onda de populismo de esquerda na América do Sul. Inebriados com o
dinheiro do Superciclo das Commodities, presidentes da região se lançaram em
toda espécie de demagogias. Esnobaram uma proposta de Washington para criar uma
área de livre comércio que uniria do Alaska à Patagônia: em 2005, na Cúpula das
Américas em Mar del Plata (Argentina), Hugo Chávez pegou os microfones para
fazer uma rima grosseira em espanhol envolvendo a ALCA sob olhares cúmplices de
nomes como Lula da Silva, Néstor Kirchner e Evo Morales. A arrogância dos
sul-americanos não tinha limites. Lula da Silva só percebeu que suas gafes não
eram levadas a sério internacionalmente quando protagonizou o vexame
diplomático da Declaração de Teerã (2010). Ainda assim, foi prepotente o
suficiente para fazer troça com a eleição de Dilma Rousseff, um “poste” que ele
conseguiu eleger. Não foi diferente nos demais países. Maduro foi o “poste” de
Chávez e, em última análise, Cristina Kirchner também era um “poste” de Néstor
Kirchner. Em 2014, tudo havia mudado. Maduro só foi eleito com uso intensivo de
máquina e Dilma Rousseff foi reeleita no photochart com uma campanha
tida como exemplo de baixaria e de mentiras – e ambos enfrentam recessões e
rejeições recordes. Cristina Kirchner não conseguiu eleger seu sucessor. Evo
Morales acaba de perder um plebiscito sobre ele continuar no poder ou não.
Rafael Correa, que conseguiu reeleições livres no Equador, anuncia publicamente
que não concorrerá para não antecipar a campanha contra si. A mudança não vai
parar tão cedo. Se 2015 terminou com a débacle efetiva do populismo
de esquerda na Argentina (fim do kirchnerismo) e na Venezuela (oposição com
maioria qualificada para aprovar recall no parlamento), 2016 começou
na mesma toada. Dilma Rousseff é o pato mais manco que o Brasil conheceu desde
que Collor de Mello caiu em desgraça e nem mesmo os bons números da economia
levaram o povo da Bolívia a aceitar a possibilidade de mais uma eleição com Evo
Morales. Não resta dúvidas de que um novo ciclo começou a se estabelecer no
Cone Sul. Felizmente, desta vez não é autoritário: o continente já tem
caudilhos – positivistas, sindicalistas, militares, populistas etc. – demais,
tanto de esquerda quanto de direita, em sua conturbada história. Desde que seja
democrático, todo novo ciclo é bem-vindo na América do Sul.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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